31/07/2024

Informação (306)


Interrupção estival


Como é habitual, o Blog interrompe as suas publicações regulares durante o mês de Agosto.

Conta-se retomar o ritmo habitual das publicações em princípios de Setembro.

MTS 


Bibliografia (1138)

 
-- Andreas, Hermann, Zuständigkeitsvereinbarungen im internationalen Rechtsverkehr / Wirksamkeitsanforderungen und Wirkungen von Gerichtsstandsvereinbarungen unter dem Geltungsregime von HGÜ und Brüssel Ia-VO (Duncker & Humblot: Berlin 2024)
 

Jurisprudência 2023 (225)

 
Certificados de aforro;
prescrição


1. O sumário de RL 21/12/2023 (23037/22.4T8LSB.L1-6) é o seguinte:

- O processo civil norteia-se pelo princípio do dispositivo, segundo o qual, com algumas excepções, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas (art.º 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e não provados (art.º 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil). Em princípio, não é lícito ao juiz ao resolver o litígio socorrendo-se de factos não alegados pelas partes, com as excepções expressamente previstas na lei (vg. factos notórios).- Relativamente à série de certificados de aforro, denominada «série B», o Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho, estabeleceu que são nominativos, reembolsáveis, só transmissíveis por morte e assentados apenas a pessoas singulares.

- Actualmente, por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efectivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhes deram origem, ou o respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tiver à data em que o reembolso for autorizado.

- Para a contagem desse prazo, deverá ser adoptado o sistema subjectivo, que considera que respectivo início só se dá quando o credor tenha conhecimento dos elementos essenciais relativos ao seu direito.

- O Estado não pode impor aos herdeiros um dever de exaustiva procura de bens e direitos do de cujus, quando nada indiciará a sua existência.

- Para a procedência da excepção de prescrição do artigo 7.º, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho, seria necessário que a ré alegasse e demonstrasse que decorreram dez anos desde o momento em que os herdeiros, após a aceitação da herança, tiveram conhecimento que os certificados de aforro da série B a integravam, até ao momento em que requereram a transmissão da titularidade ou o resgate.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"3.4. Uma vez que a ré não questionou o direito de MC titulado pelos certificados de aforro e se mostra demonstrada a habilitação-legitimidade dos autores para que lhes seja reconhecida a transmissão desse direito ou o reembolso, o recurso está centrado nas conclusões relativas à questão da excepção de prescrição.

O artigo 14.º, do Decreto-lei 43453, de 30 de Dezembro, autorizou o Ministro das Finanças a mandar emitir, por intermédio da Junta do Crédito Público e nos termos a estabelecer, títulos da dívida pública nominativos e amortizáveis, denominados certificados de aforro, destinados a conceder uma aplicação remuneradora aos pequenos capitais.

Relativamente à série de certificados de aforro, denominada «série B» - que é o caso sub judice – o Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho, estabeleceu que são nominativos, reembolsáveis, só transmissíveis por morte e assentados apenas a pessoas singulares. Mais ainda, o artigo 7.º, desse diploma estabelecia que:

1 - Por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de cinco anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efectivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhes deram origem, ou o respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tiver à data em que o reembolso for autorizado.
2 - Findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respectivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição.
 
Esse n.º 1, do artigo 7.º, foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 122/2002, de 4 de maio, que lhe conferiu a seguinte redacção:

1 - Por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efectivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhes deram origem, ou o respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tiver à data em que o reembolso for autorizado.

Esse mesmo Decreto-Lei n.º 122/2002, de 4 de maio, também estipulou que: “Aplicam-se aos certificados de aforro as disposições gerais relativas à prescrição dos juros e do capital de empréstimos da dívida pública, constantes da Lei n.º 7/98, de 3 de Fevereiro” – art.º 7.º.

Por último, o Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de Março, conferiu a seguinte redacção ao artigo 7.º, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho:

1 - Por morte do titular de um certificado de aforro, podem os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos:
a) A transmissão da totalidade das unidades que o constituem; ou
b) O respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tenha à data em que o reembolso seja autorizado(…).
 
O tempo é um importantíssimo facto jurídico que pode afectar as relações jurídicas de várias formas, nomeadamente em termos de extinção de direitos. O artigo 297.º, do Código Civil, estabelece que:

1. Estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição.        
2. Quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição.

Por outro lado, o artigo 306.º, n.º 1, do mesmo código refere que: O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo da prescrição.

Subjacente a este instituto temos os princípios basilares da segurança e certeza, pressupondo, geralmente, a inércia do titular do direito.

Vistas estas considerações, desde já importa afirmar que a consagração de um prazo prescricional de 5 anos, depois alargado para 10 anos, não se traduz em qualquer favorecimento ou protecção dos titulares dos certificados de aforro, mas sim da entidade emitente. Esta é que beneficia da significativa redução do prazo ordinário de prescrição (extintiva) de 20 anos (art.º 309.º, do Código Civil) para 10 anos (em vigor no momento em que faleceu o titular dos certificados de aforro).

Ao contrário do que a apelada defende, não se vislumbra que o legislador tenha optado pela contagem do prazo a partir do momento do falecimento do titular. Pelo menos, essa alegada opção não é clara ou expressa. A lei extravagante não refere o momento a partir do qual se deverá iniciar a contagem do prazo. A lei simplesmente menciona um evento (Por morte do titular de um certificado de aforro) e estatui um prazo (poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos, a transmissão da totalidade das unidades ou o reembolso).

Tendo presente as altíssimas considerações e valores que norteiam estes instrumentos financeiros (o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de Março, apela à sua criação especificamente para captar a poupança das famílias e com distribuição directa ao retalho; difusão generalizada que levou a que hoje em dia represente cerca de 16 % da dívida em circulação do Estado; o cumprimento de uma finalidade de financiamento do Estado; e o estímulo à aplicação das poupanças familiares) seria espectável que o legislador consagrasse, de forma expressa e clara, que a morte do titular desencadearia logo a contagem do prazo especial e reduzido para o exercício dos direitos pelos seus herdeiros – se fosse essa a sua intenção – cfr. artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil. A importância social e económica do direito, a necessidade de tutelar especiosamente a confiança do público a quem é dirigido (pessoas singulares e, particularmente, as famílias) e a necessidade de acautelar a segurança deveriam consagrar essa solução. Mas a lei extravagante não estipulou o momento a considerar para o início da contagem desse prazo prescricional, pelo que teremos que recorrer às regras gerais da prescrição.

Também não oferece dúvida que o Estado pode limitar ou condicionar o direito dos subscritores dos certificados de aforro, nomeadamente reduzindo o prazo de prescrição ordinário. O acórdão do Tribunal Constitucional n.º 396/2020 citado pela apelada já se pronunciou pela não inconstitucionalidade artigo 7.º do Regime dos Certificados de Aforro Série B, mas apenas na vertente e pressupostos que estavam aí em discussão. Esse juízo esgotou-se na questão concretamente colocada ao tribunal e que difere substancialmente do presente caso, pois ali provou-se que: “Em 15-02-2006, a Autora, na qualidade de herdeira e munida da documentação necessária, dirigiu-se aos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, onde participou o óbito de sua mãe e relacionou os bens por ela deixados, de onde constam os referidos Certificados de Aforro”. Ou seja, a herdeira sabia da existência dos certificados de aforro e omitiu o pedido de transmissão ou resgate. Esse pressuposto factual não se verifica no caso em apreço.

Quanto ao início da contagem do prazo, o acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 11/5/2023, citando Menezes Cordeiro, refere que, em termos de direito comparado, se observam dois grandes sistemas: o objectivo e o subjectivo.

Pelo sistema objectivo, o prazo começa a correr assim que o direito possa ser exercido e independentemente do conhecimento que, disso, tenha ou possa ter o respectivo credor. Pelo subjectivo, tal início só se dá quando o credor tenha conhecimento dos elementos essenciais relativos ao seu direito”. O sistema objectivo é o tradicional sendo compatível com prazos longos ao invés do sistema subjectivo que postula, em regra, prazos curtos.
O Código Civil optou, como regra, pelo sistema objectivo, veja-se o art.º 306º, nº1.
Há, no entanto, situações em que o Código adoptou o sistema subjectivo: a prescrição só se inicia a contar do momento em que o credor tenha conhecimento do direito que lhe compete, como sucede com os casos previstos no art.º 482º (prescrição do direito à restituição do enriquecimento, e no art.º 498º (prescrição do direito à indemnização).
No caso particular da contagem do prazo de prescrição do pedido de reembolso dos certificados de aforro, o Supremo Tribunal de Justiça, de forma unânime, que se saiba, tem seguido o sistema subjectivo, basicamente por duas ordens de razões: por a questão se colocar num contexto sucessório, e pelo fundamento específico da prescrição, a saber, a negligência do titular do direito e que, por isso, só a exigência do conhecimento da existência e titularidade do direito satisfaz o pressuposto de o direito poder ser exigido, referido no art.º 306º do CC" – disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 10463/21.5T8LSB.

Acompanha-se o entendimento desse douto aresto – aliás, no seguimento da demais jurisprudência aí citada – por ser o conforme à lei e necessariamente justo. Na verdade, o legislador nacional sentiu a necessidade de adoptar o sistema subjectivo na contagem de alguns prazos, afastando-se da solução exclusivamente objectiva. Subjacente a essa distinção está o desconhecimento por parte do titular da existência do próprio direito. A realidade sociológica evidencia que os herdeiros geralmente desconhecem em toda a extensão a universalidade que compõe a herança. O próprio legislador reconhece essa realidade e dificuldade dos herdeiros como é salientado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/2/2021 (citado no anterior aresto): “Ora, na transmissão de bens por via sucessória, os herdeiros, muitas vezes, podem não ter conhecimento da totalidade dos bens que integram o património do de cujus, realidade que se reflete em alguns aspectos do regime sucessório, como a possibilidade do herdeiro pedir judicialmente, a todo o tempo, a restituição de bens da herança a quem os possua (art.º 2075º do CC), a do legatário poder reivindicar a entrega dos bens legados sem dependência de prazo (art.º 2279º do CC), ou a previsão de partilhas adicionais, quando se verifique a omissão de bens (art.º 2122º do CC).  (…)

Assim sendo, o prazo de prescrição de 10 anos aqui em análise deve ser considerado um prazo sujeito a um sistema subjectivo, cuja contagem só se inicia quando, após a aceitação da herança, os herdeiros têm conhecimento da existência de certificados de aforro da série B no património do de cujus, sem prejuízo do decurso do prazo de prescrição ordinária, cuja contagem se inicia com a aceitação da herança, nos termos do art.º 306º do CCivil”.

O Estado – como pessoa de bem – deverá acautelar os interesses das famílias que lhe confiam as suas poupanças, particularmente nas situações de transmissão por morte da titularidade de direitos sobre certificados de aforro, não onerando os herdeiros com encargos e deveres desproporcionados, particularmente quanto a factos que desconhecem e não estão obrigados a conhecer.

A própria instituição de um registo central de certificados de aforro através do Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de Março, evidencia as dificuldades no acesso à informação, se bem que não seja claro se a sua criação se deveu à premência de informar os interessados ou ao interesse do Estado na pronta prescrição dos valores de reembolso.

O Estado não pode impor aos herdeiros um dever de exaustiva procura de bens e direitos do de cujus (certificados de aforro na Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública, contas bancárias na Suíça, imóveis em todos os Registos Prediais do país, etc.), quando nada indiciará a sua existência.

Ao contrário do que é sustentado pelos apelantes, entende-se que não se verifica a invocada nulidade da sentença por excesso de pronúncia, porquanto o tribunal foi expressamente chamado a conhecer da excepção de prescrição – o que fez dentro dos limites e com a liberdade que lhe é concedida pela lei: O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – art.º 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

No caso dos autos, o titular dos certificados de aforro, MC, faleceu no dia 23-11-2002. Para a procedência da excepção de prescrição do artigo 7.º, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho, seria necessário que a ré alegasse e demonstrasse que decorreram dez anos desde o momento em que os herdeiros, após a aceitação da herança, tiveram conhecimento que os certificados de aforro da série B a integravam, até ao momento em que requereram a transmissão da titularidade ou o resgate.

Era à ré que competia a alegação e comprovação dos factos em que assenta a invocada prescrição – cfr. citado art.º 342.º, n.º 2, do Código Civil. Não o tendo feito, a excepção será julgada improcedente."

[MTS]

30/07/2024

Bibliografia (1137)


-- Rapp, J. P., Revision, Kassation, Final Appeal / Letztinstanzliche Zivilverfahren zwischen Individualrechtsschutz und Rechtsfortbildung (Mohr: Tübingen 2024) [OA]

Jurisprudência 2023 (224)

 
Acta da assembleia de condóminos;
título executivo; aplicação da lei no tempo

 
1. O sumário de RP 27/11/2023 () é o seguinte:

I - Com a nova redação dada ao artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 de outubro, pela Lei n.º 8/2022, de 10 de janeiro, passou a ser inquestionável que as sanções pecuniárias (aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas em regulamento do condomínio) estão abrangidas no título executivo que constitui a ata da reunião da assembleia do condomínio – cf. atual artigo 6.º, n.º 3 do referido Decreto-Lei.

II - A nova Lei tem natureza interpretativa.

III - Independentemente dessa natureza, sempre há que considerar que qualquer lei que fixe requisitos menos exigentes de exequibilidade do título é de aplicação imediata.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Sustenta o apelante, em síntese, que não pode ser executado relativamente aos juros e sanções pecuniárias, uma vez que a Lei n.º 8/2022, ao alterar o disposto no artigo 6.º do Decreto-lei n.º 268/94, de 25 de outubro, tem caráter inovatório, não podendo considerar-se, diferentemente do que considerou a sentença, uma Lei interpretativa.

Relativamente aos juros, a questão verdadeiramente não o é: independentemente de a Lei nova consagrar (ou não) a obrigação de juros, sempre os juros de mora legais podiam ser pedidos na execução, atento o disposto no artigo 703, n.º 2 do CPC. Efetivamente, como refere Marco Carvalho Gonçalves [
Lições de Processo Civil Executivo, 5.ª edição, Almedina, 2022, págs. 62/63.], “o título executivo circunscreve os limites da execução, ou seja, o credor não pode pedir mais do que aquilo que o título executivo expressamente lhe dá (...) Porém, nada obsta a que o credor peticione o pagamento de juros de mora, contabilizados à taxa legal, da obrigação constante do título, ainda que o mesmo seja omisso quanto a essa obrigação de pagamento de juros (art. 703.º, n.º 2)” [No mesmo sentido, José Lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3.º, 3.ª Edição, Almedina, 2022, págs. 345/346.].

Relativamente às sanções pecuniárias, o apelante considera a Lei n.º 8/2022 inovatória, afirmando na sua Conclusão XXI que “o diploma em causa é inovador, aplicando-se apenas aos casos futuros, até porque a jurisprudência ao longo dos anos sempre foi uniforme ao não considerar como título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante, bem como as sanções pecuniárias”.

Discorda-se da conclusão (diploma inovador) e do – e em razão do - pressuposto (a jurisprudência foi uniforme ao não considerar as sanções pecuniárias como abrangidas no título).

Em acórdão relatado por este relator, e no qual interveio, concordantemente, o aqui segundo Adjunto, já se deixou sumariado [
Acórdão de 25.09.2023, proferido no Processo n.º 681/22.4T8VLG-A.P1, in dgsi.]: “1 – Com a nova redação dada ao artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 de outubro, pela Lei n.º 8/2022, de 10 de janeiro, passou a ser inequívoco que as sanções pecuniárias (aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas em regulamento do condomínio) estão abrangidas no título executivo que constitui a ata da reunião da assembleia do condomínio – cf. atual artigo 6.º, n.º 3 do referido Decreto-Lei. 2 – Esse é o entendimento a ter, mesmo em relação às execuções instauradas antes da entrada em vigor da alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 8/2022, de 10 de janeiro, uma vez que – perante as divergências jurisprudenciais anteriores – esta Lei deve considerar-se interpretativa”.

Salvo devido respeito por outro entendimento, a nova Lei tem efetivamente um sentido interpretativo, pois, diversamente do que sustenta o apelante, não havia um entendimento uniforme quanto à abrangência no título executivo das sanções pecuniárias. A título exemplificativo, citamos o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.04.2019 (com um voto de vencido), “I. A assembleia de condóminos pode fixar penas pecuniárias para a inobservância das suas deliberações, nomeadamente, penas pecuniárias a aplicar ao condómino em mora no pagamento das quotas de condomínio. II. A ata da reunião da assembleia de condóminos que deliberou a aplicação e o montante dessas penas constitui título executivo contra o proprietário em mora”; o acórdão do mesmo Tribunal de 20.02.2014, “I. A ata da reunião da assembleia de condóminos, que delibere sobre a fixação de penas pecuniárias, por falta de pagamento da quota-parte, no prazo estabelecido, constitui título executivo. II. Sendo a sanção pecuniária de € 10,00, por cada mês de atraso no pagamento da quota-parte, correspondente a uma quantia mensal superior a € 30,00, não se afigura como sendo manifestamente excessiva, tanto do ponto de vista abstrato como concreto”; o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 17.05.2016, “A ata da assembleia de condóminos, na parte em que se aplica sanções a estes, vale como título executivo” e de 3.03.2008, “I - A ata da assembleia do condomínio é título executivo da deliberação não só sobre o montante das contribuições periódicas, mas também das sanções que o regulamento impuser para a falta de pagamento. II - Aí se podem englobar igualmente os honorários já pagos e as despesas efetuadas em anterior acção intentada para cobrança do débito do faltoso” e, ainda, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22.10.2015, “I - A ata da reunião da assembleia do condomínio que tiver deliberado as contribuições a pagar pelos condóminos, nos termos do art.º 6º, n.º 1 do Dec. Lei n.º 268/94, constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte, desde que esteja assinada por todos os condóminos que nela participaram e deixaram de pagar (art.º 1º do Dec. Lei n.º 268/94). II- No âmbito da ata, enquanto título executivo, cabem o montante das “contribuições devidas ao condomínio”, nelas se incluindo as despesas necessárias à conservação e à fruição das partes comuns do edifício, as despesas com inovações, as contribuições para o fundo comum de reserva, o pagamento do prémio de seguro contra o risco de incêndio, as despesas com a reconstrução do edifício e as penalizações ou penas pecuniárias fixadas nos termos do art.º 1434º do Cód. Civil”, todos eles consultáveis em dgsi.

Como ensinou João Baptista Machado, “são de sua natureza interpretativas aquelas leis que, sobre pontos ou questões em que as regras jurídicas aplicáveis são incertas e o seu sentido controvertido, vêm consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adotado” [
Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador (12.ª Reimpressão), Almedina, 2000, pág. 246.].

Em suma, os juros legais podem sempre ser pedidos na execução pelo credor, mesmo que não constem do título e a Lei 8/2022, de 10 de janeiro, quanto às sanções pecuniárias, é uma lei interpretativa.

Cumpre ainda dizer o seguinte: mesmo que o não fosse, mesmo que a Lei fosse inovadora, tendo a execução sido instaurada na sua vigência [---] (ou, mesmo, estando pendente), chegaríamos ao mesmo resultado, ou seja, à abrangência das sanções pecuniárias no título, como decorre da doutrina consagrada pelo Assento 9/93, de 18 de dezembro [---], e tal como referem José Lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes/Isabel Alexandre, a páginas 346 do Código de Processo Civil Anotado, já citado em anterior nota [
“de acordo com a doutrina expendida pelo Assento (...) a lei que fixe requisitos menos exigentes de exequibilidade do título é de aplicação imediata, mesmo em execuções pendentes”.].
 
[MTS]
 

29/07/2024

Jurisprudência 2023 (223)

 
Advogado;
sigilo profissional; prova ilícita

 
I. O sumário de STJ 12/12/2023 (1178/21.5T8FNC.L1.S1) é o seguinte:

O depoimento prestado em violação do sigilo profissional do advogado determina a aplicação do regime específico do artigo 92.º, n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"16. A primeira questão consiste em averigar se, de acordo com o artigo 92.º, n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados, o depoimento do Dr. FF e os documentos juntos à petição inicial com os n.ºs 21 e 22 podem fazer prova em juízo.

17. A Autora, agora Recorrente, deduz como causa de pedir da presente acção o facto de o contrato de transacção descrito nos factos dados como provados sob as letras M-O ter sido concluído na pressuposição de que a Ré, agora Recorrida, concluiria com a Autora, agora Recorrente, um contrato de compra e venda de toda a fracção autónoma designada pelas letras BX, integrada no prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número 679/960325 e inscrito na matriz sob o artigo 3266.

Ou seja — a metade da fracção autónoma designada pelas letras BX teria sido atribuída à Ré, agora Recorrida, DD [---], para que a Ré, agora Recorrida, a vendesse, na totalidade, à Autora, agora Recorrente, AA. [...]

19. Entre os meios de prova relevantes para o efeito encontrar-se-iam o depoimento do Dr. FF e os documentos n.ºs 21 e 22.

— o depoimento do Dr. FF incidiu sobre as negociações com o advogado da Ré, agora Recorrida, acerca da venda da fracção autónoma designada pelas letras BX;

— os documentos n.ºs 21 e 22 confirmariam o seu depoimento, ao darem conta de que entre os dois foram trocados e-mail, em que se discutiam as razões por que o contrato-promessa de compra e venda não fora concluído.

20. Ora, o artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados é do seguinte teor:

Artigo 92.º— Segredo profissional

1. — O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2. — A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3. —O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

4. — O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.

5. — Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

6. — Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.

7. — O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.

8. — O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever.

21. O Tribunal de 1.º instância e o Tribunal da Relação consideraram que o depoimento do Dr. FF e os documentos n.ºs 21 e 22 incidiam sobre factos “cujo conhecimento lhe [advinha] do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços” [---] — e os argumentos deduzidos pelas instâncias devem subscrever-se, sem qualquer reserva.

22. Em primeiro lugar, o artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados não permite que o advogado seja dispensado dos seus deveres de sigilo pela parte que representa, ou que o advogado seja dispensado dos seus deveres de sigilo para que seja feita a prova de que, no decurso das negociações, foi concluído um acordo, ainda que não formalizado, com o advogado que representa a contraparte [---]

23. Em concreto, a prova de que foi concluído um acordo, ainda que não formalizado, sempre seria condição necessária da prova de que o acordo foi ou não foi cumprido.

24. Em segundo lugar, a convicção de que o depoimento prestado pelo Dr. FF nunca poderia determinar uma confiança justificada da Autora, agora Recorrente, sempre significaria uma convicção contrária a disposições legais que a Autora, agora Recorrente, conhecia ou, ainda que não conhecesse, devia conhecer [---]

25. A decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância e pelo Tribunal da Relação não pode de forma nenhuma representar-se como uma capaz de frustrar uma confiança justificada da Autora, agora Recorrente — e, em especial, que a decisão proferida pelas instâncias não pode de forma nenhuma representar-se como uma decisão surpresa.

26. O raciocínio só pode ser reforçado pela circunstância de a questão do segredo profissional ter sido evocada na audiência de julgamento.

27. O Tribunal de 1.ª instância chama a atenção para que, “no decurso do depoimento da testemunha foi a questão do sigilo relembrada e referidas as necessárias repercussões de tal circunstância teria na ponderação da prova” e o Tribunal da Relação para que “o tribunal, apesar de ter ouvido a testemunha sem declarar logo a prova inadmissível”:

I. — “foi sempre perguntando [à testemunha] se as negociações entre os advogados foram públicas, levadas a cabo à frente de todos os intervenientes, nomeadamente da notária que presidiu ao acordo, ao que a testemunha foi sempre dizendo que sim”,

II. — foi sempre perguntando aos mandatários das partes “se estavam conscientes de que o depoimento em questão poderia eventualmente estar a violar o sigilo profissional”.

28. Em resposta à primeira questão, dir-se-á que, de acordo com o artigo 92.º, n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados, o depoimento do Dr. FF e os documentos juntos à petição inicial com os n.ºs 21 e 22 não podem fazer prova em juízo.

29. A segunda questão consiste em averiguar se o depoimento prestado em violação do sigilo profissional determina a aplicação do regime das nulidades principais, ou a aplicação do regime das nulidades secundárias, ou a aplicação de um regime autónomo, distinto do regime das nulidades processuais.

30. A Autora, agora Recorrente, alega que está em causa uma nulidade processual secundária, dependente de invocação pelo interessado e, sobretudo, sanável.

31. Ora, entre o caso comum de prestação de um depoimento em violação de um dever de sigilo profissional e o caso específico de prestação de um depoimento em violação do dever de sigilo profissional do advogado há uma diferença fundamental.

32. Os casos comuns de prestação de depoimento em violação de um dever de sigilo profissional podem porventura reconduzir-se ao conceito e ao regime das nulidades processuais secundárias — daí que o conhecimento da nulidade dependa de uma reclamação do interessado 7, dentro dos prazos do artigo 199.º do Código de Processo Civil 8.

33. O caso específico em violação do dever de sigilo profissional do advogado, esse, não pode reconduzir-se ao conceito e, sobretudo, não pode reconduzir-se ao regime das nulidades processuais secundárias:

34. O artigo 92.º, n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados ao determinar que “[os] actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”, contém uma cominação específica 9.

35. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2022 — proceso n.º 126/20.4T8OAZ-A.P1.S1 — di-lo de forma explícita:

“O n.º 5, do […] artigo 92.º, estabelece como consequência da violação do sigilo profissional do advogado, que as provas que desrespeitem o dever de segredo não são idóneas a fundamentar a demonstração dos factos revelados nas negociações […].

“com esta cominação específica, a produção dos meios de prova com esta incidência não constitui uma simples nulidade inominada secundária, a ser arguida, nos termos dos artigos 195.º e 199.º do Código de Processo Civil […], revelando-se antes uma violação de uma proibição de produção de prova, cuja consequência é a proibição da sua valoração, tendo essa violação um tratamento autónomo do que se encontra previsto para as nulidades processuais, podendo, designadamente, tal infração ser conhecida em recurso, sem que a nulidade da produção do respetivo meio de prova tenha que ser arguida nos termos previstos no artigo 199.º do Código de Processo Civil”.

36. Entendendo-se, como se entende, que o depoimento prestado em violação do sigilo profissional do advogado determina a aplicação de um regime autónomo, distinto do regime das nulidades processuais, deve conhecer-se do vício e decidir-se a terceira questão — se deve ser determinada a anulação de todo o processo a partir do depoimento do Dr. FF e o regresso à fase processual em que deveria ter sido requerido o incidente de levantamento do sigilo profissional.

37. Ora, não há nenhuma razão para dar à Autora, agora Recorrente, uma segunda oportunidade para fazer a prova dos factos dados como não provados sob os n.ºs 12-14.

38. A consequência jurídica da prestação de depoimento em violação do dever de sigilo profissional do advogado é a inidoneidade do meio de prova para a demonstração dos factos alegados.

39. O juízo sobre se o facto está ou não provado deve formular-se como se não tivesse sido prestado o depoimento, ou como se não tivessem sido apresentados os documentos relacionados com factos sujeitos a sigilo profissional — se o facto tiver sido dado como provado com fundamento exclusivo no depoimento do advogado, deverá ser dado como não provado [---]; se não, poderá ser dado como provado ou como não provado, em função dos demais meios de prova.

40. O resultado só pode ser reforçado pela circunstância de ter sido perguntado aos mandatários das partes “se estavam conscientes de que o depoimento em questão poderia eventualmente estar a violar o sigilo profissional” — se a Autora, agora Recorrente, decidiu correr o risco, não há razão, para que, depois de concretizado o risco, lhe seja concedida uma segunda oportunidade para fazer com que o depoimento do Dr. FF e os documentos n.ºs 21 e 22 sejam considerados na decisão final."

[MTS]

26/07/2024

Jurisprudência 2023 (222)

 
Apresentação de documentos;
apresentação antes da audiência final*

1. O sumário de RG 19/12/2023 (7057/18.6T8BRG-A.G1) é o seguinte:

I – Para que a petição inicial seja considerada apta, basta que nela sejam alegados, de forma substanciada, os factos essenciais, que são aqueles que permitem fundamentar o pedido à luz do enquadramento jurídico feito pelo autor – “as razões de direito que servem de fundamento à ação”, no dizer do art. 552/1, d), do CPC – e, assim, individualizar a ação.

II – Não sendo esses factos enquadráveis na previsão das normas jurídicas em que o autor estriba o pedido, nem na de quaisquer outras suscetíveis de conduzirem ao mesmo resultado, a petição inicial será inconcludente, o que terá como consequência a improcedência da ação.

III - Para aferir da legitimidade direta não relevam elementos externos ao objeto formal do processo, mas apenas a posição das partes em relação a esse objeto, tal como ele é gizado pelo autor na petição inicial.

IV – É de admitir a junção aos autos de documentos apresentados até vinte dias antes da data em que se realize a audiência final e que não sejam impertinentes para a prova dos factos que integram os temas da prova.

V – Sem prejuízo, deve ser condenada em multa a parte que apresenta documentos que, não obstante terem sido produzidos depois do articulado em que foram alegados os factos que se destinam a provar, são do seu conhecimento e estão no seu poder há mais de três anos.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"§ 116. º 6).5. Analisando a situação dos autos à luz das precedentes considerações, importa começar por dizer que permanecem controvertidos e integram os temas da prova os factos que substanciam a execução do plano de apropriação da participação da Autora no capital social da Ré EMP01..., SA. Permanecem também controvertidos os factos que substanciam o móbil de toda a atuação dos Réus – alegadamente, a obtenção dos lucros provenientes da exploração do lítio na região de ... a que a titularidade daquela quota permitirá aceder, por via indireta, através do direito de quinhoar no lucros da sociedade beneficiária da concessão.

§ 117.º Os documentos em causa, na medida em que demonstram a celebração do contrato de exploração do lítio e, bem assim, o papel que os Réus AA, BB, por si e na qualidade de gerente da Ré EMP02..., e JJ, alguns dos alegados coautores do ato ilícito, tiveram nesse processo, são idóneos, a partir do plano abstrato em que, neste momento, nos situamos, a contribuir para a formação de um juízo probatório sobre os factos referidos  no § anterior, o que permite refutar a tese da sua impertinência e, assim, justificar a sua junção aos autos.

§ 118.º A questão que se coloca a seguir prende-se com o momento em que tais documentos foram apresentados – depois da petição inicial, articulado em que, como vimos, foram alegados os factos para os quais podem ter relevo.

§ 119.º É sabido que o CPC vigente introduziu significativas alterações em sede de apresentação de prova documental, concretizadas no respetivo art. 423, com as quais se pretendeu disciplinar a tramitação processual e, no dizer de António Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa (Código de Processo Civil cit., p. 499), “contrariar uma certa tendência, que se constituíra em verdadeira estratégia processual, traduzida em protelar a junção de documentos para o decurso da audiência final.”

§ 120.º Assim, no preceito em causa começa por se definir o regime-regra, de acordo com o qual “[o]s documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes” (n.º 1). De seguida, prevê situações de exceção: - no n.º 2, permite que “[s]e não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado”; - no n.º 3, acrescenta que “[a]pós o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.”

§ 121.º O regime assim definido funciona até ao encerramento da discussão, como decorre do art. 425 (“Apresentação em momento posterior”), onde se admite que, depois “do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.

§ 122.º No caso, não tendo ainda sido indicada data para a realização da audiência final, situamo-nos no âmbito de aplicação da exceção do n.º 2, pelo que não há obstáculo temporal à junção dos documentos.

§ 123.º Afigura-se, no entanto, que deve haver lugar a multa: é que, não obstante estarem em causa documentos ulteriores à petição inicial, o que torna evidente a impossibilidade da sua apresentação com este articulado, certo é que a Autora os tem em seu poder, pelo menos, desde 19 de junho de 2019, conforme demonstra o facto de nessa data os ter para prova dos factos alegados no articulado superveniente que veio a ser rejeitado pelo despacho de 6 de fevereiro de 2020. Devia, por isso, tê-los apresentado imediatamente, com o escopo que agora tem em vista (a prova de factos alegados na petição inicial), em lugar de esperar três longos anos para o fazer, com a consequente perturbação da tramitação da causa.

§ 124.º Não ignoramos que a Autora apresentou os documentos nos dez dias subsequentes à notificação do despacho de enunciação dos temas da prova.

§ 125.º De acordo com Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 676), não havendo ou tendo sido dispensada a audiência prévia, as partes podem alterar os respetivos requerimentos probatórios no prazo geral de dez dias contado da notificação do despacho previsto no art. 596/1 do CPC. Trata-se de uma solução, obtida por analogia com a prevista no art. 598/2, que visa garantir às partes o exercício do mesmo direito que teriam se houvesse lugar ou não tivesse sido dispensada a audiência prévia.

§ 126.º Entendemos, porém, que, como salientam os mesmos Autores (ob. cit., p. 676), o art. 598 não se aplica à prova documental, uma vez que esta está sujeita a um regime próprio de apresentação (arts. 423 a 425). No mesmo sentido, Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil cit, p. 705.

§ 127.º Em resumo, o despacho recorrido deve ser revogado no sentido do deferimento da junção dos documentos apresentados pela Autora com a condenação desta no pagamento de multa, situada entre 0,5 UC e 5 UC’s (art. 27 do RCP), sendo que, no caso, tendo em conta o número de documentos apresentados e, bem assim, o hiato temporal entre o momento em que a Recorrente devia ter feito a apresentação e aquele em que a fez, temos como adequado fixar a multa em duas unidades de conta.
 

*3. [Comentário] No acórdão reconhece-se "estarem em causa documentos ulteriores à petição inicial, o que torna evidente a impossibilidade da sua apresentação com este articulado". Sendo assim, não é possível concluir, salvo melhor opinião, que a multa pode ser fundamentada no disposto no art. 423.º, n.º 2, CPC.

A RG alega que a Autora tinha os documentos em sua posse há mais de três anos, dado que -- segundo se percebe -- apresentou esses documentos com um articulado superveniente que veio a ser indeferido. Nestes termos, o fundamento para a aplicação de uma multa não poderia ser o disposto no art., 423.º,, n.º 2, CPC, mas antes a eventual a litigância de má fé dessa Demandante (art. 542.º, n.º 1, e 2, al. d), CPC). No fundo, a censura que pode ser dirigida à Autora é a de não ter voltado a apresentar os documentos logo que o articulado superveniente foi indeferido.

MTS