Inimputabilidade penal;
capacidade sucessória
1. O sumário de RL 5/12/2023 (2150/22.3T8TVD.L1-7) é o seguinte
I – Em face do teor dos artigos 623.º e 624.º do Código de Processo Civil) a factualidade dada como assente quanto aos pressupostos da punição, aos elementos do tipo legal e quanto às formas do crime, num processo penal, por homicídio, em que foi arguido aquele que é agora Réu num processo civil (em que se pede a sua indignidade para suceder à vítima), tem também aqui de se considerar assente, por – quanto a este - constituir uma presunção inilidível (quanto a terceiros seria ilidível).
II – O artigo 2033.º, n.º 1, do Código Civil estabelece um princípio geral de capacidade sucessória passiva, sendo que um sucessor é um beneficiário que vê ingressar no seu património os bens daquele que morreu.
III – O artigo 2034.º, alínea a), descreve um elenco de situações taxativo pelo que, à face desta norma, não pode ser considerado indigno relativamente a seu pai, aquele que, tendo embora praticado factos que integram o tipo penal de homicídio doloso, qualificado, na pessoa deste último, foi absolvido do crime ao ser julgado inimputável.
IV - Mas se assim é, a Ordem Jurídica, como um todo, tem mecanismos que lhe permitem evitar situações que possam ser tidas ou consideradas pela sociedade como inaceitáveis, repugnantes ou intoleráveis, impedindo – por exemplo – que alguém que tenha sido declarado inimputável e esteja a cumprir uma medida de segurança, mas não tenha qualquer limitação civil (nomeadamente com o regime do maior acompanhado), herdar todo o património da sua própria vítima.
V - É para essas situações extremas, limite, que existe o abuso de direito, aqui configurado como exercício abusivo do direito de exercer a vocação sucessória ou como exercício abusivo do direito de aceitar a herança.
VI – Considerado o Réu penalmente inimputável, em termos penais, na morte do pai, mas sem quaisquer limitações em termos de capacidade civil, deve este ver paralisado, considerado abusivo e tido como ilegítimo, o exercício do direito de aceitar a herança daquele que matou, uma vez que seria considerado chocante, violador da consciência jurídica de qualquer um/a e contrário aos bons costumes, que alguém com capacidade sucessória (nos termos dos artigos 2033.º, 2030º, 2133.º, alínea b) e 2157.º), tenha provocado directamente o funcionamento da condição (morte do pai, de cuius) de que dependia a sua concretização, ao ser ele a determinar o momento em que se abriu a sucessão (artigo 2031.º e 2032.º) e ao ser ele o único beneficiário do acto ilícito que praticou.
2. O acórdão tem o seguinte voto de vencido:
1. Diz-nos a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental que “[a] esquizofrenia é uma perturbação mental complexa e grave”, que afeta de forma séria “a capacidade de pensar da pessoa, a sua vida emocional e o seu comportamento em geral”, provocando “sintomas, conhecidos como ‘sintomas psicóticos’ (…), como alucinações (por exemplo ver ou ouvir coisas que não existem) e delírios (ter crenças de natureza bizarra ou paranoide que não se enquadram no senso comum), mas também défices cognitivos, como dificuldades em prestar atenção, concentrar-se e abstrair-se”, e sintomas “que traduzem uma espécie de dessubstancialização da personalidade, como a diminuição ou perda da vontade, a apatia, o embotamento emocional e afetivo e sintomas afetivos, como ansiedade, depressão e alterações emocionais em geral” – cfr. sppsm.org/informemente/esquizofrenia/.
1. Diz-nos a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental que “[a] esquizofrenia é uma perturbação mental complexa e grave”, que afeta de forma séria “a capacidade de pensar da pessoa, a sua vida emocional e o seu comportamento em geral”, provocando “sintomas, conhecidos como ‘sintomas psicóticos’ (…), como alucinações (por exemplo ver ou ouvir coisas que não existem) e delírios (ter crenças de natureza bizarra ou paranoide que não se enquadram no senso comum), mas também défices cognitivos, como dificuldades em prestar atenção, concentrar-se e abstrair-se”, e sintomas “que traduzem uma espécie de dessubstancialização da personalidade, como a diminuição ou perda da vontade, a apatia, o embotamento emocional e afetivo e sintomas afetivos, como ansiedade, depressão e alterações emocionais em geral” – cfr. sppsm.org/informemente/esquizofrenia/.
“No conjunto das perturbações mentais a esquizofrenia é muitas das vezes considerada como a perturbação limite. Uma das doenças mentais mais graves pela sua caraterística de alienação total da realidade, pela sua cronicidade (…). ‘A esquizofrenia tem sido uma das doenças psíquicas com maior gravidade clínica, com particular dificuldade de tratamento e reabilitação e com um prognóstico reservado’” – cfr. Marli La-Salete Pinto Nogueira, Inclusão Social e Bem-Estar da Pessoa Doente Mental, Porto, polic., 2013, p. 98, disponível em <sigarra.up.pt/reitoria/pt/pub_geral.pub_view?pi_pub_base_id=29101>.
2. Esta doença mental tem, inevitavelmente, um impacto altamente nocivo na vida do doente (e daqueles que com ele interagem familiar e socialmente). Nos casos mais graves, esta patologia pode estar na origem de comportamentos da mais elevada nocividade, incluindo, como no caso tratado na decisão recorrida, atentados contra a vida daqueles que mais protegem e gostam do doente mental… e de quem este mais gosta.
A maioria dos estudos realizados ao longo das últimas décadas tem demonstrado uma associação estatisticamente significativa entre esquizofrenia e violência – cfr. Susana Almeida Cunha, Esquizofrenia e Crime, 2003, polic., p. 30, disponível em <https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/9825>. A atividade delirante persecutória tem sido referida como tendo importância relevante para a violência na esquizofrenia – idem, p. 54. Ainda com pertinência para o caso dos autos, tem sido observada uma significativa associação entre a não adesão terapêutica e atos violentos – idem, ibidem –, sendo comum “a resistência para com a mesma devido à incapacidade de insight do doente” – cfr. Marli La-Salete Pinto Nogueira, Inclusão Social e Bem-Estar da Pessoa Doente Mental, Porto, polic., 2013, pp. 117 e 118, disponível em <https://sigarra.up.pt/reitoria/pt/pub_geral.pub_view?pi_pub_base_id=29101>. O mesmo é dizer que a não adesão à terapêutica apresenta-se já como consequência da doença, sendo insuscetível de enquadramento, por exemplo, no n.º 4 do art.º 20.º do Cód. Penal.
Tendo o doente mental, durante um surto psicótico, praticado factos tipificados como crime contra pessoas da sua família nuclear – no caso, contra o pai e contra a irmã –, não podemos deixar de considerar que, também ele, é vítima desta atuação. Na verdade, o doente mental grave é várias vezes “castigado”: é “castigado” com a doença mental que destrói a sua vida; é “castigado” com a medida de segurança aplicada (o internamento); é “castigado” com a perda dos entes queridos; é “castigado”, nos momentos de lucidez, com a consciência de que tirou a vida àqueles que mais estimava e que mais o estimavam – para além de ser socialmente “castigado” com o estigma da sua doença mental. Fazendo vencimento a posição sufragada na sentença impugnada, será, ainda, “castigado” com a segura indigência em que cairá. Tudo isto, apenas e só, porque teve o infortúnio de padecer de uma doença mental grave e crónica. A ser assim, à luz do ordenamento jurídico português, estava errado o jurisconsulto romano Herennius Modestinus, quando afirmava que “Sufficit furiosum ipso furore puniri” (é suficiente castigo para o louco a sua própria loucura). Não, não é suficiente; é só o princípio.
Conforme resulta do acórdão penal que sujeitou o réu a uma medida de segurança, “ficou demonstrado que, à data e no momento da prática dos factos, o arguido laborava sobre um estado de coisas que não correspondia à realidade, alucinando que o pai e a irmã corporizavam o mal, lhe queriam fazer mal e que tinha de deles defender-se”. E concluiu-se em tal acórdão que “o arguido deve ser declarado inimputável por referência ao objeto do processo”. Recorde-se que, nos termos previstos no n.º 1 do art.º 20.º do Cód. Penal, “é inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação”.
Não estando em causa o caso previsto no n.º 4 do art.º 20.º do Cód. Penal, esta inimputabilidade impede, inelutavelmente, a responsabilização civil do doente mental (art.º 483.º, n.º 2, do Cód. Civil), exceto nos casos especialmente previstos na lei de responsabilidade sem culpa – cfr., por exemplo, o art.º 489.º do Cód. Civil. O mesmo é dizer que, como aliás resulta do aresto, não pode, em caso algum, ser a sujeição do réu a uma medida de segurança equiparada ao caso previsto na al. a) do art.º 2034.º do Cód. Civil.
4. Na posição que fez vencimento, foi afastado o enquadramento do caso na al. a) do art.º 2034.º do Cód. Civil, por a mesma não consentir uma aplicação por analogia (analogia legis). Até aqui acompanhamos a opinião maioritária, embora acrescentemos que, ainda que a norma consentisse aplicação analógica, não existe analogia possível. Dito de um modo simples, no caso previsto na al. a) do art.º 2034.º do Cód. Civil (no que importa agora) existe um agressor (o filho) e uma vítima (o pai). No caso dos autos, filho e pai são vítimas da doença do primeiro.
No entanto, afastado o enquadramento do caso na al. a) do art.º 2034.º do Cód. Civil, no passo seguinte, foi maioritariamente entendido que o réu exerceu abusivamente o direito de aceitar a herança de seu pai. Esta solução merece-nos sérias reservas, dela resultando, parece-nos, uma infundada pena de deserdação judicial.
Por um lado, assenta ela, sempre e só, nos factos praticados pelo réu quando se encontrava afetado por um surto psicótico, causado pela doença mental de que padece. É inegável que o direito à herança é recusado ao réu porque praticou factos num estado de delírio psicótico, que não pôde controlar e que a generalidade das pessoas tem a felicidade de nunca experimentar. Esta negação surge como uma pena civil, como se o réu tivesse querido, em estado de lucidez, praticar os atos que praticou.
Por outro lado, quer se considere a atuação do réu durante o surto psicótico, quer se olhe para a restante factualidade provada, nada tem o caso de relevantemente distinto, relativamente aos demais trágicos casos excecionais em que um filho, durante um episódio de total alienação cognitiva e de incapacidade de enquadramento axiológico da sua conduta, mata o pai. Ora, se este caso nada tem de excecional (hoc sensu), afirmar o exercício abusivo do direito mais não é do que transformar em regra aquilo que a lei não quis consagrar como tal: a prática pelo inimputável dos factos previstos na al. a) do art.º 2034.º do Cód. Civil como fundamento de indignidade sucessória. Se o réu, por ter morto o pai durante um surto psicótico, não pode exercer o seu direito à herança, então em caso algum um filho que mata o pai em estado de inimputabilidade o poderá fazer. E quanto mais (extraordinariamente) chocante for a atuação do agressor, mais evidente se revela o seu estado de “loucura”. Assim se chega ao resultado que, recusando-se uma analogia legis, se negou inicialmente: o afastamento do filho da vocação sucessória (agora através de uma verdadeira analogia iuris).
Sendo este caso de parricídio tão horrível e excecional como todos os outros casos de parricídio cometidos num contexto de um surto psicótico, poder-se-ia mesmo dizer que a medida de segurança imposta a um arguido por ter morto o pai em contexto de doença mental acaba, na prática, invariavelmente por envolver, como efeito necessário, a perda do direito civil à herança, em aberto conflito com o disposto no n.º 1 do art.º 65.º do Cód. Penal e indo mesmo além do disposto no art.º 69.º-A do Cód. Penal – que apenas se refere a penas, e não a medidas de segurança.
5. Dispõe o art.º 334.º do Código Civil (abuso do direito) que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Afigura-se apodítico que o réu exerce o seu direito à herança, em si mesmo considerado, nos mesmos termos e limites que qualquer outro herdeiro exerce igual direito. Não se vê, pois, que tenham sido excedidos os limites impostos pelo fim social ou económico desse direito.
Quanto aos restantes fundamentos do instituto, afigura-se-nos que é própria penalização do doente mental que se pode constituir como “clamorosamente ofensiva da justiça” [Manuel de Andrade] e como “uma afronta ao sentimento jurídico dominante” [Vaz Serra] – sentimento este a extrair dos princípios que informam o sistema jurídico, e não das opiniões expostas nas redes sociais ou em tabloides notados pela superficialidade dos seus conteúdos. Entre estes princípios, destacam-se a proteção dos mais fracos (isto é, dos mais carecidos de proteção) e o respeito pela dignidade da pessoa humana (art.º 1.º da Cons. Rep. Port.).
Devemos evitar soluções que tendam a refletir preconceitos em torno da condição do doente mental. Estamos seguros de que, se o réu tivesse morto o seu pai em resultado de uma afetação física – por exemplo, um ataque epilético ou um estado cegueira momentânea –, a solução dada ao caso pelo tribunal a quo seria diferente, por a morte não decorrer da sua vontade (lúcida). Aliás, ainda que o réu tivesse pleno controlo da sua vontade e das suas ações, não lhe seria aplicada esta pena civil, se a sua conduta apenas revelasse culpa grave (negligência grosseira), e não dolo.
Responsabilizar o doente mental pela sua doença, sem nenhuma base factual que revele que esta foi provocada pelo próprio, representa um desrespeito pela sua dignidade humana (art.º 1.º da Cons. Rep. Port.), cunhando-o com características de personalidade altamente censuráveis num indivíduo com capacidade de autodeterminação. Quando a doença domina o doente, levando-o a cometer um crime contra quem lhe é mais próximo, “[e]ncontramo-nos então, subitamente, na presença de um acto verdadeiramente estranho e que tanto nos surpreende pela fria crueldade que revela como pela ausência total de motivos penetráveis e acessíveis à nossa compreensão” [Sobral Cid]. Na procura desta compreensão e da reposição da tranquilizadora ordem social, buscamos uma explicação extraída quadros de referências que a nossa razão alcança, a qual nos leva, inevitavelmente, a condenar a doente pela sua doença. No entanto, “[h]á que renunciar a explicar estes crimes – como a tudo que é tipicamente esquizofrénico – pelo fogo natural dos afectos e das tendências humanas” [Sobral Cid].
O doente mental e a sua doença não estão do mesmo lado. A doença ataca e está contra o doente. Respeitar a “loucura”, imputando as suas manifestações à vontade do doente mental, é desrespeitar a pessoa vítima da doença.
6. A invocação da norma enunciada na segunda parte do n.º 2 do art.º 275.º do Cód. Civil inscreve-se na analogia iuris já acima referida, de tão remota que é a sua proveniência – saltando-se do Livro V do Cód. Civil (da secção dedicada à capacidade sucessória) para o Livro I (para a secção dedicada à declaração negocial). O facto futuro e certo da morte, no contexto da vocação sucessória, nada tem a ver com a estipulada subordinação dos efeitos do negócio jurídico a um acontecimento futuro e incerto, estipulação esta, sim, objeto da referida norma. Procura-se, pois, estabelecer um paralelismo (analogia) entre o fundamento daquela solução legal, conjugados com ouras soluções legais (al. a) do art.º 2034.º do Cód. Civil), e o fundamento da decisão encontrada para o caso.
Não julgamos que exista analogia bastante. Para afastarmos o argumento, parece-nos ser suficiente repisar que o réu atuou no contexto de um surto psicótico, não resultando dos factos provados que tenha agido com o propósito (consciente) de provocar a verificação da “condição” com vista à aquisição da herança. Aliás, levando esta extrapolação ao limite, poder-se-ia dizer que a “condição” de os autores herdarem é a ocorrência da declaração de indignidade sucessória do réu – ou o reconhecimento judicial do exercício abusivo do seu direito –, provocando eles, através da propositura da ação, a verificação desta “condição” – que assim se teria por não verificada. Afigura-se-nos que toda esta linha argumentativa é improcedente."
[MTS]