Jura novit curia;
causa de pedir; pedido
1. O sumário de STJ 12/12/2023 (2291/21.4T8FAR.E1.S1) é o seguinte:
Invocando-se que é a título indemnizatório, por causa de um comportamento ilícito (de apropriação de dinheiro que não lhe pertencia e de falsificação duma procuração e sua utilização) imputado ao R. e dos danos ao A., que este pretende que o R. seja condenado a pagar-lhe € 100.000,00, a compatibilização entre o princípio do conhecimento oficioso do direito e os limites fixados pelo objeto do processo não permite que o tribunal – tendo apurado que o que aconteceu foi um empréstimo de €100.000,00 do A. ao R – proceda à requalificação jurídica, de indemnização para restituição do valor do empréstimo (e condene o R. no valor do empréstimo)), uma vez que, para tal, teria o tribunal de proceder a uma verdadeira “transmutação” do objeto do processo (passando a situar-se fora do objeto processual delineado pelo A. e a conferir uma tutela de conteúdo diferente da pedida pelo A.).
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Debrucemo-nos pois – tendo presente todo o “histórico” de litígios e decisões – sobre o objeto da revista, o mesmo é dizer sobre os € 100.000,00 do pedido d):
E a primeira observação a fazer é a de que a 1.ª Instância não podia condenar o R. em tal quantia com base e a partir da relação de empréstimo que deu como provada (e que consta da alínea A) dos factos provados).
Escreveu-se na sentença da 1.ª Instância que, “subsidiariamente, o A. pretende que se condene o R. a pagar-lhe a quantia de € 100.000,00 a título de indemnização por apropriação ilícita desse valor, sendo certo que não se apurou que esse valor foi entregue ao R. na qualidade de procurador do A.”; continuando, acrescentou-se na sentença da 1.ª Instância que, “na situação dos autos, não houve qualquer apropriação ilícita desse valor, mas sim um empréstimo desse montante por parte do A. ao R., tal como resulta do facto A) dado como provado” e, não se detendo, aplicou-se na sentença da 1.ª Instância o direito a tal facto, declarando-se formalmente válido o contrato de mútuo [---] e condenando-se o R. a restituir a quantia mutuada (os 100.000,00) ao A..
Configura a aplicação do direito a tal facto – como bem considerou o Acórdão recorrido – um excesso de pronúncia e também uma condenação em objeto diverso do pedido, ou seja, a sentença da 1.ª Instância padeceu, na condenação proferida, da nulidade prevista no artigo 615.º/1/d) in fine do CPC e da nulidade prevista no artigo 615.º/1/e) in fine do CPC.” [---]
No centro de tais nulidades – mais do que o que deve entender-se por nulidade de excesso de pronúncia ou por nulidade de condenação em objeto diverso do pedido – está o modo de compatibilizar/conciliar o princípio que concede ao juiz liberdade na indagação do direito aplicável (com expressão no art. 5.º/3 do CPC) com o princípio do dispositivo, com os limites que o objeto do processo, traçado pelas partes, coloca a tal indagação.
E a concretização de tal compatibilização, sem prejuízo das considerações teóricas que o tema suscita, tem sempre que ser feita a partir dos exatos contornos do caso concreto, havendo claramente casos em que ao juiz cabe (não só pode, como deve) requalificar juridicamente as alegações das partes e outros casos em que uma determinada requalificação jurídica está vedada por ultrapassar abertamente o domínio definido pelo objeto do processo.
Para o que mais uma vez releva o longo, detalhado e exaustivo relato da petição inicial, onde em momento algum, sequer ao de leve, se alude a uma relação de empréstimo entre A. e R. [---]: fora de qualquer dúvida, refere/invoca o A. que é a título indemnizatório, por causa de um comportamento ilícito imputado ao R. e que lhe causou danos a ele/A., que este pretende que o R. seja condenado a pagar-lhe tais € 100.000,00 (aliás, a própria sentença da 1.ª Instância, imediatamente antes de dar o “salto” para o empréstimo, não deixa de reconhecer que “o A. pretende que se condene o R. a pagar-lhe a quantia de € 100.000,00 a título de indemnização por apropriação ilícita desse valor”).
Sendo este os contornos do caso, a referida compatibilização – entre o princípio do conhecimento oficioso do direito e os limites fixados pelo objeto do processo – não podia deixar de afastar, a requalificação jurídica (de indemnização para restituição do valor do empréstimo), uma vez que, para tal, o tribunal teria de proceder e operar uma “transmutação” do objeto do processo.
Como se refere no Ac. deste STJ de 18/09/2018 [---], “(…) não basta uma mera qualificação jurídica dos factos alegados diferente da pretendida pelas partes para se concluir por causa de pedir diferente, posto que ao tribunal incumbe proceder às qualificações jurídicas que tiver por corretas, ao abrigo do disposto no art.º 5.º, n.º 3, do CPC, de modo a esgotar as possíveis qualificações dos factos alegados em função do efeito prático-jurídico pretendido, segundo o denominado “princípio de exaustão”. “Importa, no entanto, moderar essa liberdade de qualificação no sentido de não permitir uma convolação qualificativa tão ampla que conduza a um modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente do visado pelo autor, extravasando o limite da condenação prescrito no art.º 609.º, n.º 1, do CPC e atentando mesmo contra os princípios do dispositivo e do contraditório, em função dos quais as partes pautaram a configuração do litígio e a discussão da causa”.
Foi exatamente o referido em último lugar que foi feito pela sentença da 1.ª Instância, conduzindo a convolação da qualificação jurídica operada a uma tutela de conteúdo diferente da pedida pelo A..
Consiste o pedido no efeito jurídico que se pretende obter com a ação (cfr. art. 581.º/3 do CPC), mais exatamente, no efeito prático-jurídico que o autor pretende obter (ou seja, num caso em que se invoque a nulidade dum contrato, o efeito prático-jurídico serão os efeitos restitutórios – a restituição do que, em razão do contrato, antes havia sido prestado).
Consiste a causa de pedir – sendo orientação corrente que a nossa lei (atual art. 581.º/4 do CPC e anterior 498.º) acolhe a doutrina da substanciação – no facto jurídico que está na base da pretensão deduzida (cfr. art.º 581.º/4, do CPC), “que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido” [Antunes Varela, Manual de Processo, pág. 234], consubstanciando-se na concreta factualidade alegada como fundamento do efeito prático-jurídico pretendido, factualidade esta que releva no quadro das soluções de direito plausíveis a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5.º/3 do CPC.
Assim, entende-se que, para delimitar a causa de pedir, não basta a mera identidade naturalística da factualidade alegada, havendo sempre que considerar a sua relevância em face do quadro normativo aplicável e em função da espécie de tutela jurídica pretendida.
Segundo Teixeira de Sousa [Algumas questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil, in Scientia Iuridica, Tomo LXII, n.º 332, 2013, pp. 395 e ss. (395, 401-402).], «A causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar a pretensão material alegada. O critério para delimitar a causa de pedir é necessariamente jurídico. É a previsão de uma regra jurídica que fornece os elementos para a construção de uma causa de pedir. (…) Os factos que constituem a causa de pedir devem preencher uma determinada previsão legal, isto é, devem ser subsumíveis a uma regra jurídica: eles não são factos “brutos”, mas factos “institucionais”, isto é, factos construídos como tal por uma regra jurídica. Isto demonstra que o recorte da causa de pedir é realizado pelo direito material: são as previsões das regras materiais que delimitam as causas de pedir, pelo que, em abstrato, há tantas causas de pedir quantas as previsões legais. (…) Assim, embora a diferenciação de causas de pedir seja feita, em regra, por via da conjugação da concreta factualidade alegada com o aludido quadro normativo aplicável, casos há em que a mesma factualidade empírica é suscetível de preencher quadros normativos distintos com estatuição de modos de tutela jurídica qualitativamente diversos. Nestes casos, tal diferenciação será feita, basicamente, em função do vetor normativo da causa de pedir. (…) Em suma, sendo o pedido e a causa de pedir conceitos de matriz e função processual, a sua densificação ou concretização, em termos de determinar em concreto cada causa de pedir, só poderá ser feita com base nas normas substantivas aplicáveis à situação litigiosa singular.»
Temos pois que a condenação do R. com fundamento em responsabilidade contratual (decorrente do incumprimento do dever de restituir a quantia emprestada) operava, a pretexto duma requalificação jurídica (não se diz, mas estaria implícito), uma alteração do pedido e da causa de pedir, situando-se fora do objeto processual delineado pelo A..
A liberdade de apreciação da matéria de direito por parte do juiz – pese embora o modo amplo como, no art. 5.º/3 do CPC, se diz que “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” – tem limites, como sejam as que decorrem do princípio do dispositivo (art. 3.º/1 do CPC), do princípio do contraditório (art 3.º do CPC), do princípio da estabilidade da instância (arts. 264.º e 265.º do CPC), das regras da preclusão (art. 573.º do CPC) ou do princípio do pedido (art. 609.º do CPC); e tal limitação ocorre quando, como era/é o caso, a requalificação se situa fora do objeto processual, quando, pretendendo o A. que lhe seja concedida uma indemnização de € 100.000,00 com origem, segundo o A., na apropriação de tal verba pelo R. (na sequência de haver recebido tal verba, em representação do A., não lha entregando e apropriando-se dela”), o tribunal é colocado perante a não ocorrência de tal apropriação, mas sim perante uma configuração fáctica totalmente diversa (sem prejuízo de esta configuração fáctica poder conduzir a um crédito de € 100.000,00 do A. sobre o R.).
O princípio segundo o qual jura novit curia – isto é, o princípio da liberdade de julgamento quanto às regras de direito – é, como se referiu, limitado pelo princípio do dispositivo e, estando o thema decidendum limitado pelo que o A. havia alegado (para obter a indemnização), não podia/devia, em rigor, o tribunal dar sequer como provado o que consta da alínea A) dos factos provados [---] e, tendo incluído tal facto no elenco dos factos provados, não o podia ter usado para requalificar juridicamente, com base nele, a pretensão do A. e para condenar o R. com base e a partir de tal requalificação.
“Requalificar juridicamente” é, com base no que, em termos essenciais, foi alegado, percorrer um outro percurso jurídico que ainda cabe no espetro da causa de pedir e do pedido traçados pelo A., “cabimento” que, admite-se, é/será controverso em certos casos e percursos jurídicos, porém, nunca há “cabimento” quando, como aconteceu na sentença, se abandona completamente o que, em termos essenciais, foi alegado [---] e se utiliza um facto essencial novo para efetuar a pretensa “requalificação jurídica”."
[MTS]
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