03/09/2024

Jurisprudência 2023 (227)


Acção de demarcação;
taxa sancionatória excepcional


I. O sumário de RC 13/12/2023 (109/19.7T8VIS-B.C1) é o seguinte:

1. - Os articulados supervenientes apenas são admissíveis para trazer a juízo factos novos relevantes – os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes (superveniência objetiva ou subjetiva) –, sendo inconfundíveis com um requerimento em que se suscite questão de direito perante dados processuais e documentais já constantes dos autos.

2. - A causa de pedir corresponde ao conjunto dos factos que integram a previsão normativa substantiva que estabelece o efeito jurídico pretendido na ação, não podendo confundir-se factos com documentos (estes, de cariz probatório, são meios de prova daqueles), nem causa de pedir com prova documental.

3. - A causa de pedir na ação de demarcação implica a identificação, com descrição fáctica, dos prédios confinantes (e respetivo domínio) e a alegação de factos (concretos) que mostrem a indefinição da linha divisória entre eles.

4. - Diversamente, na ação de reivindicação – onde não se pretende uma demarcação entre dois prédios (mas o reconhecimento do direito de propriedade do autor e a decorrente restituição de imóvel) – cabe ao demandante o ónus da alegação e prova dos factos tendentes a demonstrar o seu direito de propriedade sobre a coisa reivindicada (prova essa através de factos de que resulte demonstrada a aquisição do domínio) e a ilicitude da ocupação.

5. - Decididas, em determinado sentido, certas questões jurídicas no processo, mediante sentença ou despacho, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz da causa nessa matéria, pelo que não pode depois aquele juiz, em nova decisão, reapreciar ou dar sem efeito o anteriormente decidido.

6. - Doutro modo, incorreria o juiz da causa em excesso de pronúncia – ao conhecer de questão que, por já decidida, não podia conhecer – e, bem assim, em ilegalidade, por violação de lei processual expressa, o que obrigaria à revogação da eventual segunda decisão.

7. - Num tal quadro, tem de ser qualificado como manifestamente anómalo e improcedente um requerimento em que a parte demandada vem pedir a extinção da instância da ação de demarcação, com fundamento em inutilidade superveniente da lide, decorrente da existência de sentença transitada em julgado em anterior ação de reivindicação entre as mesmas partes, quando na contestação da ação de demarcação deduzira já a exceção de caso julgado, fundada naquela anterior sentença, e essa exceção foi objeto de decisão prévia de improcedência no despacho saneador, do que os réus interpuseram recurso, que foi admitido para subir a final.

8. - Assim, não podiam os réus desconhecer que, pelo modo como requeriam, agiam em contrário de normas com conteúdo legal imperativo, apenas para dar guarida ao seu inconsequente inconformismo, tornando, de forma inútil, o processo mais complexo e demorado, em prejuízo da contraparte e da atividade do tribunal, o que justifica a imposição de taxa sancionatória excecional, sem esquecer, se não fosse caso de aplicação desta dimensão sancionatória, que a lei prevê a fixação, nos procedimentos ou incidentes anómalos, da taxa de justiça a que alude o art.º 7.º, n.ºs 4 e 8, do RCProc..

9. - Fora dos casos de litigância de má-fé, havendo condenação em taxa sancionatória excecional, multa ou penalidade, é sempre admissível recurso, em um grau, dessa decisão condenatória (independentemente, pois, do valor da causa ou da sucumbência).


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"D) Da não dedução de incidente anómalo, tornando inadmissível a sanção/multa aplicada

Resta saber se foi, ou não, deduzido um incidente anómalo, a dever ser sancionado, pretendendo os Recorrentes que não o foi, pelo que deverá, a seu ver, a multa aplicada de ser retirada, mediante revogação da decisão sancionatória.

Refere a parte recorrente, no seu requerimento que motivou o despacho sob recurso, que foi junto (pelos AA.) um documento falsificado – uma «sentença falsificada e junta com a petição inicial» – e que é esse documento que consubstancia a causa de pedir da ação.

Com efeito, refere, quanto a tal «sentença falsificada»: «E só neste documento é levantada a possibilidade de os autores procederem à demarcação do seu terreno. // Esta sentença é causa de pedir da presente ação. // Ora se os autores declaram que não fazem uso da sentença falsificada, então abdicam da causa de pedir e sendo assim não há demarcação a fazer».

Daí a conclusão, a que chegam os RR./Apelantes, no sentido de ocorrer «inutilidade superveniente da lide», a dever «ser expressamente declarada».

O Tribunal recorrido entendeu que a questão assim suscitada – extinção da instância por inutilidade superveniente da lide – foi objeto de decisão anterior, no despacho saneador, ao ser conhecida/decidida a exceção de caso julgado invocada pelos RR., que mereceu decisão de improcedência, decisão esta de que os mesmos RR. interpuseram (outro) recurso, o qual aguarda decisão (subida a final).

Apreciando, cabe dizer, desde logo, que a aludida sentença junta – por certidão, ou não; falsificada, ou não – é um documento, não passando de prova documental, prova essa que convoca, no tempo adequado, como qualquer prova, a respetiva valoração.

Ora, os documentos são – inquestionavelmente – meios de prova; não são factos, embora, como provas, possam referir-se a factos.

E, não sendo factos, não podem os documentos, em ação declarativa – destinada à demarcação ou a outro fim –, constituir a causa de pedir da ação, posto a causa de pedir – que pode ser linear ou complexa – se traduzir num facto ou conjunto de factos, como decorre dos art.ºs 552.º, n.º 1, al.ª d), e 581.º, n.º 4, ambos do NCPCiv., este último preceito a evidenciar que a causa de pedir se reporta ao facto jurídico, de pendor concreto, que fundamenta (de que procede) a pretensão deduzida na ação.

A causa de pedir é constituída/conformada pelos «factos constitutivos da situação jurídica» que o autor «quer fazer valer ou negar, ou integrantes do facto cuja existência ou inexistência afirma», correspondendo «ao conjunto dos factos que integram a previsão da norma ou das normas materiais que estatuem o efeito jurídico pretendido» [Assim, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, [Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º,4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019], p. 490. No mesmo sentido se pronunciam, por todos, Abrantes Geraldes e outros (op. cit., p. 605), enfatizando que a «causa de pedir tem um substrato fáctico, aí radicando a fundamentação da pretensão formulada em juízo», com reporte ao «quadro factual atinente ao tipo legal de que [o autor] pretende prevalecer-se», não prescindindo, pois, de «concretos factos» de suporte da pretensão, ao ponto de ser «exigível a indicação específica ou concreta dos factos constitutivos do direito feito valer», sendo, assim, «pela demonstração desses factos em juízo que o autor alcançará a tutela jurisdicional desejada».].

Não podendo, pois, confundir-se factos com documentos (estes, de cariz probatório, serão meros meios de prova daqueles), nem causa de pedir com prova documental, logo se verifica que não pode proceder a argumentação da parte recorrente no sentido de ser um documento, junto com a petição (ainda que uma certidão de sentença), a causa de pedir da presente ação de demarcação.

Aliás, neste particular, concorda-se com a jurisprudência expressa no Ac. STJ de 20/11/2019, Proc. 841/13.9TJVNF.G2.S1 (Cons. Ilídio Sacarrão Martins), em www.dgsi.pt, nos seguintes termos: «A demarcação é um dos poderes inerentes à propriedade imóvel, sendo configurado no artigo 1353º do Código Civil como um direito potestativo e pressupõe o reconhecimento do domínio sobre os prédios confinantes e a indefinição da linha divisória entre eles».

Assim, a causa de pedir na ação de demarcação implica a identificação, com descrição fáctica, dos prédios confinantes (e respetivo domínio) e, por outro lado, a alegação de factos (concretos) que mostrem a indefinição da linha divisória entre eles [---].

Tal documento, a que se reportam os RR./Recorrentes, não passará, pois, em qualquer caso, de um elemento de prova, um meio de prova de factos, e não os próprios factos, mormente os que sirvam de fundamento à pretensão dos AA. e que estes teriam de deixar alegados – enquanto factos de suporte da pretensão – na sua petição inicial.

Por consequência, também não pode proceder a invocação de que, se os AA. declaram que «não fazem uso da sentença falsificada» (ou seja, do documento, enquanto meio de prova de factos), então «abdicam da causa de pedir» e, por isso, deixam a ação sem fundamentos de facto, ocasionando que não haja «demarcação a fazer».

Donde que não se demonstre, por esta via, a pretendida «inutilidade superveniente da lide», que devesse «ser expressamente declarada».

Não podem, por isso, proceder nesta parte as razões dos Apelantes.

Por outro lado, é consabido que, proferida a sentença – ou prolatado o despacho –, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. É o que taxativamente resulta do disposto no art.º 613.º, n.ºs 1 e 3, do NCPCiv..

É certo, nos termos do n.º 2 deste mesmo art.º, que pode o juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, tudo nos termos dos art.ºs seguintes.

Assim, é lícito corrigir erros de escrita ou de cálculo ou outras inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto (art.º 614.º, n.º 1, do mesmo Cód.).

E também é possível, a requerimento das partes, a reforma da sentença quanto a custas e multa (n.º 1 do art.º 616.º da lei adjetiva). Porém, a reforma – sempre por manifesto lapso do juiz e a requerimento de alguma das partes – nos casos de erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica, tal como em caso de constarem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, sem mais, impliquem necessariamente decisão diversa, só será permitida se não couber recurso da decisão (n.º 2 do mesmo art.º 616.º).

Fora desse quadro excecional, que para o caso não releva, é certo que, proferida a decisão (constante de sentença ou despacho, designadamente despacho saneador que conheça de matéria de exceção), logo fica esgotado o poder jurisdicional do respetivo juiz, que não a pode reexaminar, muito menos alterar, esteja ou não sob recurso, transite ou não em julgado.

Assim, tendo os RR. deduzido, na contestação, a exceção de caso julgado – ali afirmaram que, com fundamento em sentença proferida na anterior ação de reivindicação, existe caso julgado que define os limites do terreno dos AA., impedindo o prosseguimento da ação de demarcação –, e vindo ainda, depois, em adicional argumentação, concluir pelo reconhecimento da autoridade de caso julgado da sentença proferida no processo de reivindicação, absolvendo-se os demandados do pedido, o Tribunal recorrido conheceu dessa matéria de exceção, na fase do saneamento do processo, âmbito em que decidiu no sentido da improcedência de tal exceção, por isso determinando o prosseguimento dos autos.

Entendeu aquele Tribunal que, na presente ação de demarcação, se pressupõe a existência de um litígio sobre a linha divisória entre dois prédios contíguos, o qual se mantém, por não ter sido dirimido na ação de reivindicação mencionada, inexistindo identidade de causa de pedir e de pedidos entre as duas ações.

Em coerência com o assim entendido, foi designada data para audiência final, por se considerar que o conhecimento de mérito dependia da prova a produzir.

Com o que ficou decidida a questão do invocado caso julgado e seus reflexos sobre os presentes autos, vincando-se que, na improcedência da exceção de caso julgado, a ação de demarcação teria de prosseguir para julgamento, ao que nada obstava, na ótica do julgador.

O facto de os demandados não se terem conformado com o assim decidido, inclusivamente com interposição de recurso do despacho saneador, concluindo dever ser julgada procedente – pela Relação – a dita exceção de caso julgado, recurso esse que veio a ser admitido como de apelação a subir a final, com efeito meramente devolutivo, termos em que não ocorreu trânsito em julgado, em nada altera a circunstância de ter ficado esgotado o poder jurisdicional da 1.ª instância e de ter de ser o Tribunal superior a pronunciar-se, em recurso, sobre a deduzida matéria de exceção e respetivas consequências processuais.

Daí que não fizesse o menor sentido, salvo o devido respeito, que os RR. viessem insistir na questão já decidida no saneador e em relação à qual, por isso, se extinguira o poder jurisdicional da 1.ª instância.

Restava-lhes aguardar, a seu tempo, a decisão do recurso interposto e admitido, pelo que tudo o que a respeito voltassem a trazer (em recidiva) à apreciação do julgador a quo estaria forçosamente votado ao insucesso, apenas traduzindo inconsequente inconformismo, o qual, em caso algum, poderia justificar o enxamear do processo com sucessivos requerimentos sobre matéria já decidida, que apenas teriam o condão de dificultar a tarefa de quem tem de disciplinar os autos, mantendo, por seu lado, escorreito o processado, com vista à boa e célere decisão da causa.

Ora, não foi isso que fizeram os RR., antes insistindo em (re)colocar ao Tribunal recorrido questão essencialmente já decidida, posto que já havia sido decidido que a exceção do caso julgado improcedia e os autos deviam seguir para julgamento, o que forçosamente afastava, como é bom de ver, a (depois) invocada extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, tal como a viabilidade da insistência em que a questão (da demarcação) já se encontrava dirimida na ação de reivindicação.

Ao assim agir, não podiam ignorar os RR. – patrocinados por Exm.º Mandatário – que procediam ao arrepio da normação que estabelece o esgotamento do poder jurisdicional e que determina que, interposto recurso, se aguarde a decisão do Tribunal superior, em vez de recolocar sucessivamente à 1.ª instância a questão já objeto de decisão sua e que a esta estava vedado reapreciar [---].

Por isso, o requerimento sobre que recaiu o despacho agora recorrido é, efetivamente, um requerimento processualmente descabido, que deu azo a um incidente anómalo, por totalmente fora dos cânones da lei processual civil, que esta não pode admitir, e que, ademais, é gerador de confusão e morosidade na tramitação dos autos, tornando-a mais complexa e menos célere (retardando-a sem motivo justificado).

É, pois, de manter a qualificação no sentido de se tratar, in casu, de «incidente de tramitação anómala dos autos», a dever, por isso, ser censurado com a taxa sancionatória excecional (na decisão recorrida chama-se-lhe “multa”, em jeito sancionatório, de que tal taxa se reveste) a que alude o art.º 10.º do RCProc., em conjugação com o disposto no art.º 531.º do NCPCiv., por a parte ter deduzido requerimento (corporizando pretensão) manifestamente improcedente e não ter agido, ante as circunstâncias dos autos, com a prudência/diligência que podia e devia ter adotado [---].

Mas, mesmo que assim não se entendesse (quanto à aplicação daquela taxa sancionatória excecional e respetivos pressupostos), a parte não poderia fugir à taxa de justiça devida pelo incidente/procedimento anómalo a que deu causa, nos moldes previstos no art.º 7.º, n.ºs 4 e 8, do RCProc., em conjugação com a tabela II anexa, termos em que o valor fixado (de «2 Uc’s») sempre se justificaria a esta luz, taxa de justiça essa que, todavia, não foi imputada aos RR. no despacho recorrido – nem o poderia ser agora –, sendo, por fim, que estes, enquanto recorrentes, não discutiram o concreto montante estabelecido/imposto, sobre o qual, por isso, não cabe emitir pronúncia recursiva.

Em suma, improcede o recurso, com o esclarecimento de que a imposição do montante sancionatório de «2 Uc’s» tem a qualificação de taxa sancionatória excecional, ao abrigo do disposto no art.º 10.º do RCProc., em conjugação com o art.º 531.º do NCPCiv.."

[MTS]