Matéria de facto; recurso;
controlo pela Relação*
I. O sumário de RE 11/1/2024 (129/21.7T8SLV.E1) é o seguinte:
1 – A valoração da prova deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação coerente da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada.
1 – A valoração da prova deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação coerente da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada.
2 – As declarações de parte podem estribar a convicção do juiz de forma auto-suficiente, mas inexiste qualquer hierarquia apriorística entre este meio de prova e a restante prova produzida, devendo cada uma delas ser individualmente analisada e valorada.
3 – Em caso de colisão, o julgador deve recorrer a tais critérios sopesando a valia relativa de cada meio de prova, determinando no seu prudente critério qual o que deverá prevalecer e por que razões deve ocorrer tal primazia.
4 – A alocução fundamento para impor decisão diversa, nos termos proclamados pelo n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, não se basta com a possibilidade de uma alternativa decisória antes exige que o juízo efectuado pela Primeira Instância esteja estruturado num lapso relevante no processo de avaliação da prova.
5 – Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela Primeira Instância, em observância da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova.
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"O Tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão (n.º 3 do artigo 466.º do Código de Processo Civil). No capítulo das declarações de parte dos legais representantes é de atender à natureza supletiva [---] e as cautelas que doutrinal [---] [---] [---] [---] e jurisprudencialmente [---] são enumeradas a este propósito, face à existência de um interesse próprio, directo e imediato na resolução da causa. Neste enquadramento, somos adeptos da tese que admite a validade da prova por declarações de parte quando a mesma se reporta essencialmente a «acontecimentos do foro privado, íntimo ou pessoal dos litigantes» [Remédio Marques, «A aquisição e a Valoração Probatória dos Factos (Des)Favoráveis ao Depoente ou à Parte», Julgar, Jan-Abril, 2012, n.º 16, pág. 168.] [---]
Ao reconhecer os problemas associados à fiabilidade deste meio de prova, a nível doutrinal e jurisprudencial foi construída uma linha de actuação que se baseia na ideia que inexistindo outros meios de prova que minimamente corroborem a versão da parte, a mesma não devia ser valorada, sob pena de se desvirtuar na totalidade o ónus probatório, evitando que as acções se decidam apenas com base nas declarações das próprias partes [---] [---] [---].
No entanto, pese embora as especificidades das declarações de parte e as cautelas anteriormente anunciadas, entendemos que as declarações de parte podem estribar a convicção do juiz de forma auto-suficiente [---] no contexto atrás referenciado de apuramento de acontecimentos do foro privado ou pessoal, como sucede neste caso.
Recorde-se que na versão apurada pelo Tribunal [factos 8 a 12] o Autor tinha o veículo KR estacionado na berma, em frente ao (…), e pretendia ingressar numa via de acesso à rotunda ali existente. E, assim, com o intuito de sair do local, o Autor iniciou a sua marcha a fim de inverter a marcha para a sua esquerda e passar para a faixa de rodagem em direcção à Rotunda (…). Neste momento, a viatura conduzida por (…) já circulava na Rua do (…), mas devido à chuva o Autor não se apercebeu da aproximação do veículo segurado na Ré. E, apesar da travagem feita pelo (…), o embate foi inevitável.
Na sua construção, o Autor diz que tomou as precauções necessárias para iniciar a marcha e que o outro veículo seguia a velocidade excessiva e com as luzes apagadas, o que motivou o embate.
Tendo a Relação reapreciado meios de prova indicados relativamente aos pontos de facto impugnados pelo recorrente, não está o Tribunal da Relação impedido de alterar outros pontos da matéria de facto, cuja apreciação não foi requerida, desde que essa alteração tenha por finalidade ou por efeito evitar contradição entre a factualidade que se pretendia alterar e foi alterada e outros factos dados como assentes em sede de julgamento [---] [---].
Neste caso, a versão do Tribunal a quo e a proposta de modificação não são verdadeiramente contraditórias ou auto-excludentes e, por conseguinte, o Autor deveria ter impugnado também a versão inscrita na matéria de facto provada, a qual é prejudicial aos seus interesses processuais. Por outras palavras, a prevalência da tese propugnada pelo Autor não eliminaria aquilo que se apurou na Primeira Instância quanto ao modo de entrada na rotunda e à causa ali impressa.
Na verdade, no plano ontológico, é possível que um condutor circule desatento e o outro possa circular em excesso de velocidade e sem luzes accionadas. Porém, caso se alterasse a decisão no sentido pretendido, ainda assim por via da manutenção do acervo factual constante dos pontos 8 a 12 dos factos provados, mesmo que se comprovasse toda a proposta da parte activa, continuaria a existir culpa do Autor e, a final, neste cenário hipotético, estar-se-ia perante uma eventual situação de concorrência de culpas.
Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela Primeira Instância, em observância da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova [---] [---]
Neste campo específico, as declarações de parte tomadas ao Autor não impressionaram e, ao longo deste depoimento, também se reconhecem sinais de algum pendor proteccionista dos seus interesses particulares e algumas incoerências de discurso que não permitem justificar cabalmente o modo como se deu o choque entre as viaturas.
E, em contraponto, na sua essência, a descrição do acidente resulta do depoimento do guarda da GNR (…), que elaborou o Auto de Participação do Acidente de Viação e que, a partir dessas duas fontes probatórias, foi possível concluir que o Autor, com o intuito de inverter a marcha para a sua esquerda, não preveniu os possíveis perigos dessa manobra, não verificando se então alguma viatura circulava. E esta falta de diligência provocou a colisão entre os dois veículos, não estando o acidente, na perspectiva factual, associado com o consumo de álcool por parte do condutor do automóvel com matrícula portuguesa.
É impressivo este testemunho quando relata que: o veículo de matrícula portuguesa circulava na via naturalmente, independentemente da taxa de álcool do seu condutor ou não e o veículo de matrícula alemã, pela trajectória, não ia seguir em direcção à rotunda do Encalhe, ia para inverter a marcha, ao tentar inverter a marcha foi colidir na outra que circulava na via.
Neste capítulo, existiram incoerências ou inconsistências nas declarações do Autor e, certamente, influenciada pela fragilidade da prova, da audição do suporte magnetofónico resulta que a Meritíssima Juíza de Direito denotou preocupação com a evolução da produção de prova e tentou obter novos elementos relacionados com a dinâmica do acidente. Na verdade, de forma recorrente, no decurso do julgamento, em particular aquando do testemunho tomado a (…), empenhou-se em obter informação sobre a identidade da pessoa que, conhecedora do idioma nacional (…), terá entabulado conversa com as autoridades policiais que se deslocaram ao local e, de igual forma, procurou apurar quem eram os sujeitos que viajavam nos veículos que se encontravam a acompanhar o Autor naquela deslocação.
A nosso ver, subjacente a esta curiosidade estava a perspectiva de accionar o disposto no artigo 526.º [---] do Código de Processo Civil, a fim de conseguir uma compreensão mais sólida dos aspectos relacionados com a produção do acidente e com a imputação do resultado ocorrido aos intervenientes no evento estradal.
Efectivamente, do confronto entre as declarações de parte e os indícios referidos pelo agente de autoridade nas suas declarações, designadamente o posicionamento das viaturas após o embate, levam este Tribunal da Relação de Évora a sufragar o entendimento perfilhado pelo Juízo de Competência Genérica de Silves.
A matéria relacionada com o estado de conservação e melhoramento introduzido no automóvel do Autor foi conflituante com os relatórios de peritagem da (…) Consulting e com o testemunho tomado ao gestor da companhia, (…) e, pelo contrário, apurou-se que a viatura do recorrente apresentava sinais de mau estado de conservação.
E, deste modo, por força das regras atinentes à distribuição do ónus da prova, face ao accionamento da disciplina inscrita nos artigos 342.º [---] do Código Civil e 414.º [---] do Código de Processo Civil, a referida demonstração não foi perfectibilizada.
Sopesados todos os argumentos esgrimidos pelas partes e a interpretação da audição de todo o suporte magnetofónico gravado e a demais prova presente nos autos, a Meritíssima Juíza de Direito estava legitimada a decidir nos termos em que o fez.
O aqui relator vem pugnando a alocução fundamento para impor decisão diversa, nos termos proclamados pelo n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, não se basta com a possibilidade de uma alternativa decisória antes exige que o juízo efectuado pela Primeira Instância esteja estruturado num lapso relevante no processo de avaliação da prova [---]. E esse lapso não existe, face à dinâmica da prova e ao confronto valorativo entre as fontes probatórias.
Em síntese, de harmonia com os melhores contributos doutrinais e jurisprudenciais a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição da prova gravada e à análise da restante prova, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os contributos probatórios impõem decisão diversa.
Deste modo, julga-se improcedente a impugnação promovida pela parte recorrente e é com base na factualidade inscrita na decisão recorrida que será realizada a operação de subsunção dos factos ao direito."
*III. [Comentário] O acórdão (com 34 notas de rodapé...) adopta explicitamente a orientação de que, havendo dúvidas no controlo da matéria de facto pela Relação, deve valer o princípio in dubio pro iudicato. Trata-se de uma orientação pragmática e realista que se acompanha totalmente.
MTS