12/09/2024

Jurisprudência 2024 (4)

 
Agente de execução;
responsabilidade civil
 

I. O sumário de RG 11/1/2024 (621/20.5T8VRL.G1) é o seguinte:

1. O Agente de Execução actua, no exercício das suas funções, como profissional liberal, ainda que exercendo actividade de cariz judicial. Daí que a sua eventual responsabilidade civil pelo exercício das suas funções é uma responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, nos termos definidos pelos arts. 483o e seguintes do Código Civil.

2. Numa situação em que está a correr uma execução contra um executado e em que já foi realizada a venda de um imóvel por leilão judicial, tendo sido apresentada e aceite proposta de aquisição por terceiro, e se vem a saber que o executado se apresentou à insolvência, se o terceiro adquirente não conseguir obter a verba necessária para fazer o pagamento do preço oferecido antes do executado ser declarado insolvente, sibi imputet.

3. E se mesmo depois de saber que o executado foi declarado insolvente, o terceiro fizer o pagamento do preço e o pagamento do IMT e IS, e realizar a escritura de compra e venda, não pode vir mais tarde demandar o agente de execução ao abrigo do disposto no art. 483o CC, pretendendo ser indemnizado pelos danos sofridos.

4. Se antes da realização da escritura, o agente de execução foi notificado de que “a execução estava suspensa, por força da declaração da executada como insolvente”, e deu conhecimento desse facto ao terceiro adquirente, a decisão de prosseguir com a escritura, nestas circunstâncias, só responsabiliza este, e não o agente de execução.

5. Não é possível afirmar nem o nexo causal entre o facto praticado pelo AE e o dano alegado pelo adquirente, nem sequer que o AE tenha actuado com dolo ou negligência, e nem sequer que tenha ocorrido facto ilícito.

6. A questão de saber se a declaração de insolvência do executado, com a consequente suspensão de todas as execuções pendentes, se aplicava também a esta venda em concreto, em que vários dos actos em que se decompõe a venda já estavam praticados, era uma questão jurisdicional, que o agente de execução não tem competência para decidir.
 

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O Tribunal a quo considerou, em resumo nosso, o seguinte: os autores pretendem ver ressarcidos os danos de natureza patrimonial e não patrimonial que sofreram. Daí o Tribunal passou a verificar se a ré CC [agente de execução] violou algum direito dos autores, ou lei que se destinasse a proteger interesse alheio.
 
O que temos perante nós é que a ré exerceu as funções de Agente de Execução no processo que correu termos sob o n.º 357/17...., outorgou escritura de compra e venda de bem penhorado, numa execução então suspensa por força da declaração, como insolvente, da executada, o que determinou viesse a ser declarada nula a emissão do título de transmissão do aludido bem, com a ineficácia da venda ocorrida.
 
Porém, não se comprovou que a ré haja ocultado a declaração de insolvência e até a notificação da suspensão da execução aos autores.
 
À luz do disposto no artigo 88º do CIRE, tal outorga, porque em momento em que a execução estava suspensa, é ilícita, mas não se verifica o nexo causal entre essa outorga e a totalidade dos danos alegados pelos autores. Com efeito, as démarches para a licitação, as démarches para obtenção do empréstimo, o pagamento do preço, tudo estava já consumado, em nome da expectativa da aquisição. Quando os autores incorreram nos custos referidos, fizeram-no em nome de uma expectativa que sabiam periclitante, após a apresentação à insolvência por banda da executada.
 
Ficou provado que em 21/02/2019 os autores eram conhecedores da declaração de insolvência e até da suspensão da execução e, ainda, assim, decidiram outorgar a escritura.
 
Ficou assim arredado qualquer nexo causal entre o comportamento da ré e os alegados danos, quer patrimoniais quer não patrimoniais.
 
E em face do vertido em oo) dos factos provados, designadamente quanto à consideração de 18/02/2019 como a data da suspensão da execução, que pode, inclusive, perspectivar-se que, houvesse o pagamento do preço e dos impostos ocorrido entre 15/02/2019 e 17/02/2019, o desfecho do incidente de nulidade tivesse sido diferente, o que também afasta a prova do nexo causal.
 
E com efeito assim é.
 
Não é possível afirmar nem o nexo causal entre o facto praticado pela ré e o dano alegado pelos autores, nem sequer que a ré tenha actuado com dolo ou negligência. E mesmo quanto à ilicitude, temos as maiores dúvidas.
 
O facto fundamental aqui é que, antes da realização da escritura, a ré foi notificada de que “a execução estava suspensa, por força da declaração da executada como insolvente”, e deu conhecimento desse facto ao autor marido. A decisão de prosseguir com a escritura, nestas circunstâncias, tem de ser assacada aos ora recorrentes. O que queremos com isto dizer é que eles, sabendo da suspensão da execução, e sabendo do risco que estavam a correr, mesmo assim assumiram esse risco e outorgaram na escritura.
 
Mas há ainda um outro aspecto que deve ser considerado aqui.
 
A “corrida” que supra-referimos pela propriedade / posse do imóvel, entre os ora recorrentes e a massa falida, não envolve apenas factos e datas. É também e sobretudo uma “corrida” jurídica, no sentido em que envolve conceitos técnicos e um julgamento jurídico. Concretamente, coloca-se a questão de saber em que momento a venda executiva se deve considerar consumada, se com o pagamento do preço, se com a realização da escritura, se com a emissão do título de transmissão.
 
Por exemplo, no Acórdão do TRE de 6 de Dezembro de 2018 (Manuel Bargado), colocava-se a questão de saber “em que momento se deve considerar efectuada a venda judicial em processo de execução, sabido que, nos termos do disposto no art.º 847º, nº 1, do CPC, se o requerimento para liquidação da responsabilidade do executado for feito antes da venda ou adjudicação de bens, liquidam-se unicamente as custas e o que faltar do crédito do exequente”. E a questão foi aí analisada, com ponderação de doutrina e jurisprudência. E concluiu-se que “na venda executiva por leilão electrónico a transmissão da propriedade do bem vendido só se opera com o pagamento integral do preço e a satisfação das obrigações fiscais inerentes à transmissão e a emissão do respectivo título de transmissão - o instrumento de venda”.
 
Não é a solução que aí se deu que nos interessa agora. Interessa-nos perceber que sobre essa questão formaram-se posições divergentes, como aliás, em quase todas as questões de natureza jurídica.
 
Assim é que, verdadeiramente, a decisão da “corrida” não foi apenas um conjunto de factos e datas, mas antes uma questão jurisdicional, que foi decidida pelo despacho de 17/10/2019, proferido no processo de insolvência, que declarou nula a emissão do título de transmissão do imóvel em referência, o que gerou a total ineficácia da venda ocorrida.
 
A venda executiva não se traduz num só acto, mas sim num encadeado deles. E não repugna considerar que, se à data da notificação da declaração de insolvência ao agente de execução, já o pagamento do preço estivesse feito e o título de adjudicação entregue, poder-se-ia considerar que essa venda já estava consumada, não sendo abrangida pela paralisação decorrente da insolvência. Seria uma questão de aplicação no tempo da decisão que decretou a insolvência. Não estamos a dizer que é o que ocorre, apenas que é uma interpretação possível. E sendo uma questão jurisdicional não linear, não cabia à agente de execução decidir a mesma.
 
Recordemos, como escrevem Abrantes Geraldes e outros, 
[in CPC Anotado, Vol. II, Almedina, 2020], fls. 53, que “ao agente de execução é cometido um poder geral de direcção do processo de execução, tendo uma competência ampla e não tipificada, embora com natural exclusão dos actos que apresentem natureza jurisdicional, nos termos definidos no art. 723º e noutras normas avulsas. Ou seja, compete ao agente de execução a prática da quase totalidade dos actos de execução, com excepção dos materialmente jurisdicionais e especificamente daqueles cuja competência é legalmente deferida ao Juiz”.
 
E é aqui que entronca a defesa apresentada pela ré, que, a esta luz, faz pleno sentido. Afirmou ela na sua contestação que, além do mais, “uma vez que a adjudicação do bem estava feita por decisão datada de 29/01/2019, era entendimento da ré que era seu dever proceder à outorga da escritura, até porque, aquando da suspensão da execução, inclusive o preço já se mostrava depositado, pelo que apenas a afectação do preço da venda estaria em causa”.
 
Esta era, no momento, a essência do problema: saber se aquela venda executiva em concreto, que já estava quase concluída, também seria abrangida pela suspensão decorrente da declaração de insolvência.
 
“O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art. 1º,1 CIRE).

Prescreve o artigo 149.º CIRE que uma vez proferida a sentença declaratória da insolvência se deve proceder à imediata apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente. A competência para tal cabe ao administrador de insolvência (artigo 150º CIRE), juntando depois aos autos o auto do arrolamento e do balanço e elaborando um inventário dos bens e direitos integrados na massa insolvente.

O art. 88º CIRE, na redacção da Lei 16/2012, de 20 de Abril) dispunha:
 
Artigo 88º (Acções executivas) 1- A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra estes. (…) 4- Compete ao administrador da insolvência comunicar por escrito e, preferencialmente, por meios electrónicos, aos agentes de execução designados nas execuções afectadas pela declaração de insolvência, que sejam do seu conhecimento, ou ao tribunal, quando as diligências de execução sejam promovidas por oficial de justiça, a ocorrência dos factos descritos no número anterior”.
 
A questão de saber se essa suspensão abrange uma venda executiva, que é composta por vários actos sequenciais, sendo que a maior parte deles já estavam praticados, é uma questão eminentemente técnico-jurídica. E salvo melhor opinião, não cabia à ré exercer esse julgamento face à concreta venda em curso. Ela fez o que considerou ser a sua obrigação: informou os compradores da declaração de insolvência. Mesmo assim, estes decidiram outorgar a escritura. 
 
E note-se a relevância do que ficou provado na alínea ee): “acontece que no momento em que estava a ser outorgada a escritura de compra e venda, no dia 21.02.2019, no cartório da Dra. GG, em ..., alguém aludiu “à insolvência” de FF, tendo sido decidido verificar se já estava registada a insolvência no prédio, o que não sucedia, pelo que o acto prosseguiu e a escritura foi outorgada”.
 
Assim, se a própria Notária, perante a informação da insolvência, decidiu prosseguir com a escritura, e os ora recorrentes também quiseram celebrar a escritura, porque razão iria a ré / ora recorrida opor-se ?
 
Acresce que, como vimos, a questão de saber se a venda se mantinha ou era considerada ineficaz, como questão jurisdicional que era, acabou por ser levada, e bem, ao Juiz titular do processo de insolvência, o qual, após cumprimento do contraditório, a decidiu.
 
Quer-nos até parecer que a ré/recorrida agiu como agiu para tentar ajudar os ora recorrentes a adquirirem para si o prédio, por ser evidente o grande interesse que tinham nele. Mas apesar disso, não deixou de os avisar do risco que corriam.
 
Refere a recorrida EMP02..., SA nas suas contra-alegações, que “a responsabilidade civil por omissão pressupõe o dever específico de praticar um acto que, pelo menos, muito provavelmente teria impedido a consumação do dano. No caso, estaríamos perante o dever que imponha ao agente de execução a obrigação de divulgar a declaração de insolvência a terceiro que se propõe adquirir por escritura pública um bem apreendido em execução. Impor tal dever ao agente de execução seria, inclusivamente, contraditório com o carácter público da insolvência que, aliás, é publicitada por forma a ser divulgada e dada a conhecer a todos”. Ora, sucede que, sendo certo que a ré não tinha esse dever, ficou provado que a ré prestou mesmo essa informação ao terceiro adquirente. Também por essa via não existe qualquer fundamento para responsabilizar a ré pelos danos sofridos pelos autores.
 
Finalmente, da argumentação dos recorrentes parece resultar que a ré tinha o dever de os aconselhar juridicamente, quase como se fosse sua Advogada. Nada mais longe da verdade. Mais uma vez lembramos, provou-se que a ré, pelo menos em 18/02/2019 foi notificada de que a execução estava suspensa, por força da declaração da executada como insolvente (leia-se, a ré foi notificada que a executada tinha sido declarada insolvente), e que em data não concretamente apurada, mas situada entre essa data e a data aprazada para a escritura, a ré deu conhecimento desse facto ao autor marido. Mais não era obrigada a fazer (art. 719º CPC, a contrario).
 
Assim sendo, a conduta da ré que emerge da factualidade provada não preenche os requisitos do art. 483º CC para o nascimento da obrigação de indemnizar: não se verifica ilicitude, nem culpa (dolo ou negligência), nem nexo de causalidade entre o facto e o dano. Diremos mais ainda: como refere a Seguradora nas suas contra-alegações, ainda que a matéria de facto tivesse sido alterada como pretendiam os recorrentes, ainda assim a acção improcederia."

[MTS]