02/10/2024

Acção popular e "processo estrutural"


1. Foi recentemente divulgado o acórdão do STJ de 19/9/2024 (28650/23.0T8LSB.S1)cujo sumário é o seguinte:

I - O pedido de condenação do Estado Português a adoptar as medidas necessárias e suficientes para assegurar, em relação aos valores de 2005, uma redução até 2030 de, pelo menos, 55% da emissão de gases de efeito de estufa (não considerando o uso do solo e florestas), as quais devem ser especificadas e calendarizadas no prazo de três meses a contar da data em que a sentença produza efeitos, é um pedido genérico, mas não ininteligível.

II – Recai sobre as autoras o ónus de o concretizar, visto que este pedido não se ajusta a nenhum dos casos em que é permitido formular pedidos genéricos (alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 556.º do CPC) e não é sobre o demandado que impende tal ónus.

O acórdão foi proferido no âmbito de uma acção popular proposta por três associações contra o Estado português.

2. a) Não cabe neste momento analisar o acórdão do STJ, mas antes chamar a atenção para a particularidade da acção popular que se encontra pendente. Note-se que não se procede a nenhuma apreciação sobre o mérito da acção. Do que agora se trata é apenas de saber como, numa perspectiva processual, se deve encarar a referida acção (algo que constitui, se assim se pode dizer, uma questão prévia) e como, na hipótese de a mesma passar da fase liminar em que se encontra, se deve enfrentar os problemas que ela suscita.

A acção popular agora pendente corresponde ao que, na terminologia da doutrina brasileira, se chama um "processo estrutural". Na opinião de três abalizados Autores (e Colegas), para se compreender o que é um "processo estrutural", há que ter presente, antes de tudo o mais, a noção de "problema estrutural":

"O problema estrutural se define pela existência de um estado de desconformidade estruturada – uma situação de ilicitude contínua e permanente ou uma situação de desconformidade, ainda que não propriamente ilícita, no sentido de ser uma situação que não corresponde ao estado de coisas considerado ideal. Como quer que seja, o problema estrutural se configura a partir de um estado de coisas que necessita de reorganização (ou de reestruturação)" (Didier Jr., F./Zanetti Jr., H./Alexandria de Oliveira, R., Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro, RMPRJ 75 (2020), 104).

Nesta base, sobre o "processo estrutural" é afirmado o seguinte: 

"O processo estrutural se caracteriza por: (i) pautar-se na discussão sobre um problema estrutural, um estado de coisas ilícito, um estado de desconformidade, ou qualquer outro nome que se queira utilizar para designar uma situação de desconformidade estruturada; (ii) buscar uma transição desse estado de desconformidade para um estado ideal de coisas (uma reestruturação, pois), removendo a situação de desconformidade, mediante decisão de implementação escalonada; (iii) desenvolver-se num procedimento bifásico, que inclua o reconhecimento e a definição do problema estrutural e estabeleça o programa ou projeto de reestruturação que será seguido; (iv) desenvolver-se num procedimento marcado por sua flexibilidade intrínseca, com a possibilidade de adoção de formas atípicas de intervenção de terceiros e de medidas executivas, de alteração do objeto litigioso, de utilização de mecanismos de cooperação judiciária; (v) e, pela consensualidade, que abranja inclusive a adaptação do processo (art. 190, CPC)" (Didier Jr., F./Zanetti Jr., H./Alexandria de Oliveira, R.RMPRJ 75 (2020), 107 s.).

b) O interesse da doutrina brasileira pela matéria relativa aos processos estruturais não é de admirar. No fundo, trata-se de uma evolução lógica a partir da tutela colectiva, um instituto que a doutrina brasileira muito estudou e fez avançar. Depois da tutela colectiva, os processos estruturais poderão vir a ser a segunda contribuição brasileira significativa para a evolução, a nível mundial, do processo civil.

3. Perante o que acima se descreveu, é fácil concluir que a acção popular agora pendente constitui para o sistema processual civil português um verdadeiro stress test. Perante uma acção popular que não é "como as outras", está lançado um verdadeiro desafio a esse sistema processual. 

Como já se referiu, o mais importante, neste momento, é saber enquadrar devidamente a acção popular. Trata-se de reconhecer que a acção popular agora pendente tem características que a distinguem das comuns acções populares. Uma vez que a acção ainda se encontra numa fase liminar, ainda se está a tempo de reconhecer as suas especificidades. Lembre-se que, no regime processual português, não há nenhuma regra de tipicidade das acções que podem ser propostas nos tribunais (e dos pedidos que nelas podem ser formulados).

Enquadrada a acção popular atendendo às suas características essenciais, é então que surgem os verdadeiros problemas. No entanto, não se pode dizer que o sistema processual civil português se encontra "desarmado" perante esses problemas. Se é verdade que se pode encontrar pouco apoio na actual (e, entretanto, "envelhecida") Lei da Acção Popular, também é verdade que o juiz da acção popular tem ao seu dispor o poder de gestão processual (consagrado no art. 6.º, n.º 1, CPC) e o poder de adequação formal (estatuído no art. 547.º CPC). Sem querer fazer futurologia, será praticamente impossível que a acção popular pendente possa vir a tramitar sem um forte recurso a esses poderes do tribunal (de preferência, utilizados em constante diálogo com as partes).

Como acima se disse, não cabe agora averiguar as possibilidades de êxito da acção popular pendente. Importa referir, no entanto, que, numa época em que se tem assistido a um claro abuso no recurso à acção popular, a acção agora pendente, qualquer que venha a ser a decisão sobre o seu mérito, volta a dignificar o instituto.

4. A temática dos processos estruturais no âmbito do processo civil não é nova na bibliografia disponível em Portugal. Pedindo-se antecipadamente desculpa por qualquer falha, divulga-se a seguinte bibliografia:

-- Costa e Silva, P., Perturbação dos contratos e processo estrutural, Ius Dictum 01 (2020), 5
 
-- Fernandez, E., Teoria das Decisões Estruturantes: Primeira Aproximação, Ius Dictum 06 (2022), 33

-- Fernandez, E., A segunda aproximação aos processos estruturais – Fundamentos iniciais para um contencioso de políticas públicas, Ius Dictum 09 (2023), 33

-- Vitorelli, E., A resolução estrutural de litígios: uma nova fase do processo civil coletivo brasileiro, Ius Dictum 09 (2023), 27

MTS