22/10/2024

Breve réplica a Miguel Teixeira de Sousa

 

1. Após a publicação do nosso As outras nulidades da sentença cível, Miguel Teixeira de Sousa teve a amabilidade de trocar connosco algumas reflexões, que vieram a ganhar forma numa publicação denominada "As outras nulidades da sentença cível" – resposta a uma crítica, no Blog do IPPC. Quando lhe perguntamos se ali poderíamos publicar uma “réplica” dos autores, logo respondeu afirmativamente, com a mesma abertura, gosto e franqueza com que sempre dialogou, o que saudamos e agradecemos. Eis, pois, esse terceiro articulado, necessariamente muito breve, pois visa unicamente clarificar a posição dos autores em alguns pontos e não reiterá-la ou parafraseá-la.

2. Acompanhamos, sem hesitação, a lição precursora de Miguel Teixeira de Sousa, no que também nos parece ser o essencial, isto é, no que releva para a boa decisão da questão adjetiva surgida num concreto processo. E o essencial é (i) o reconhecimento de que a patologia é inerente ao ato decisório – e, na nossa perspetiva, a uma decisão –, não devendo ser reportada a uma atividade processual pretérita, (ii) a aceitação de que essa patologia representa (pelo menos) uma nulidade (anulabilidade) do ato – ainda sem nos debruçarmos sobre a natureza desta invalidade – e, finalmente, (iii) a afirmação de que o meio apropriado à impugnação do ato decisório – melhor, na nossa perspetiva, à impugnação da decisão – é o recurso, só havendo lugar à reclamação de nulidade do ato para o seu autor quando a apelação ou a revista não sejam admissíveis. Sendo este o chão da nossa discussão, o que se segue pouco mais é do que uma cedência ao desinteressado gosto pela discussão do Processo Civil português.

2.1. A decisão racional assenta, invariavelmente, num processo. Na sua génese está o reconhecimento de uma realidade que impõe a tomada de uma decisão (um problema a resolver), seguindo-se a análise dos fatores que podem condicionar a opção por uma das diferentes alternativas disponíveis e, finalmente, a escolha da solução a adotar. Quando a solução é atuar (“decido já ou não decido?”), executar essa ação marca o fim do processo decisório.

No desenvolvimento do processo judicial, a necessidade de decidir o curso da instância é permanente. O juiz identifica situações jurídico-processuais que impõem a sua intervenção decisória e seleciona – num conjunto finito de alternativas (ações), que organiza em função do seu grau de satisfação da lei processual – a mais conforme à lei. Quando a decisão do juiz implica a prática de um ato que não é seu (as mais das vezes, um ato da parte), ela tem de ser expressamente revelada a quem o deve executar. Já não assim quando se trata do ato próprio do juiz – aqui, o decisor apenas pratica (exterioriza) o ato que decidiu praticar.

As diferentes ações (soluções) disponíveis são, frequentemente, elas próprias, novas decisões. Na direção do processo, nestes casos, a execução do ato decidido significa tomar uma nova decisão sobre um distinto objeto. A “decisão de decidir” é a decisão de atuar no processo, quando a atuação decidida é a prática de um ato decisório (tendo um específico objeto), e traz consigo a recusa da prática dos atos, decisórios ou não, alternativos.

À “decisão de decidir” – logicamente antecedente do ato decisório decidido, mas não temporalmente nem formalmente – também chamámos “decisão pressuponente” (aproveitando o neologismo celebrizado por Baptista Machado), na falta de melhor designação, pois pode ela existir sem que se refira à prática de um (subsequente) ato decisório. Temos, pois, casos de “decisão de convidar”, casos de “decisão de atuar” (não decisoriamente) e até casos de “decisão de não decidir” (595.º, n.º 4).

2.2. Quando o juiz decide, na direção do processo, que o curso processual imposto por lei é a prolação de uma decisão, pode estar em erro sobre a realidade processual, assim como pode estar em erro sobre a atividade a desenvolver imposta pela lei adjetiva. Em tal caso, o juiz decide erradamente a prática de um ato processual, pois deveria ter decidido a prática de um ato (decisório, ou não) com um diferente objeto (fim).

O erro na escolha do ato decisório com determinado fim a praticar – como o julgamento do mérito da causa, recusando a prática de um ato decisório com diferente objeto (por exemplo, a formulação de um convite dirigido a uma parte) – é um erro de julgamento de uma questão adjetiva. Pode gerar um ato (decidido e executado) irregular e, no limite, nulo (anulável), mas a decisão de o praticar pode ser analiticamente autonomizada do ato em si mesmo considerado.

A lei reconhece a existência da decisão antecedente em diversas normas, sobretudo quando esta assume o protagonismo, por não se lhe seguir uma decisão (decidida) que a subalternize. E também reconhece que ela pode constituir um objeto de recurso, pois ressalva a sua pontual inimpugnabilidade (arts. 226.º, 590.º, n.º 7, 595.º, n.º 4, e 999.º, por exemplo).

2.3. A dicotomia que tem por termos o error in judicando (erro decisório) e o error in procedendo (inobservância da forma legal)[1] permite a completa categorização das patologias (desvalores) do ato decisório. Poder-se-á, no entanto, discutir a sua utilidade, se dela não se retirarem efetivas consequências quanto ao meio de impugnação e ao âmbito da intervenção do tribunal de recurso – discussão alimentada pela unificação dos recursos por grau, pela consagração do sistema de substituição na segunda instância e pela manutenção do regime previsto no n.º 4 do art. 615.º.

Os dois planos abrangidos pelos referidos errores (o decisório e o formal ou de atuação) dizem respeito ao ato decisório decidido praticar. Já a “decisão de decidir” situa-se a montante deste, como seu antecedente lógico necessário, mas estando nele implícita – sendo, aliás (enquanto “decisão de atuar”), também um antecedente lógico de outros atos (não decisórios) do juiz. Articulação entre a “decisão de decidir” e o error in procedendo é simples: a falha naquela é uma das causas deste – ou, mais genericamente, a falha na “decisão de atuar” é uma causa deste error (que pode estar presente num ato não decisório).

Admitimos que a aceitação da relevância da “decisão de decidir” para efeitos impugnatórios contribui para a crescente irrelevância prática – mas nunca dogmática – daquela dicotomia. Ainda assim, porque é vocação do processo civil oferecer aos sujeitos processuais as melhores ferramentas para a tutela dos seus direitos, disponíveis no quadro legal existente, a maior ou menor dificuldade de convivência destas soluções mais efetivas com os quadros dogmáticos oitocentistas não pode afastar, liminarmente, a sua consideração.

3. Assim entendidos o problema e a solução, será, porventura, fácil compreender que a “decisão de decidir” não surge como variável relevante nos casos previstos nas alíneas b) a e) do n.º 1 do art. 615.º. Ela interpõe-se porque a sentença nula é sempre precedida da decisão de a decidir. Mas não se interpõe como variável relevante, nesses casos, porque não são os efeitos dessa decisão que se projetam no vício. O juiz não tomou a “decisão de decidir uma sentença sem fundamentos” ou a “decisão de decidir uma sentença omissa ou com excesso”. O juiz tomou a decisão de proferir uma sentença (primeiro momento, imutável, seja a sentença nula ou perfeita) e, quando a proferiu, omitiu fundamentos, fez uso deles em sentido oposto à decisão, conheceu de demasiadas questões, não conheceu de todas as que devia ou desviou-se do que lhe foi pedido, etc.. São hipóteses diferentes daquelas em que o erro reside logo em avançar para a prática daquele ato. No primeiro caso, a decisão de decidir está correta, o que se decidiu está errado (no sentido em que enferma de nulidade). No segundo, a decisão de decidir é errada, ainda que a sentença não seja nula.

4. Vistas as coisas neste plano, ficará claro, esperamos, que a abordagem por nós defendida não representa uma “revolução copernicana” na compreensão da impugnação da pronúncia jurisdicional. Com a aceitação do postulado “dos despachos recorre-se”, há muito que o centro do universo dos meios de impugnação foi deslocado para o recurso de decisão, abandonando a reclamação da nulidade do ato decisório. Nesta abordagem, identificando o error in judicando presente em todas as decisões ilegais do juiz, apenas aceitamos as consequências necessárias desta força centrípeta e exploramos a plasticidade da lei adjetiva.


Nuno de Lemos Jorge
Paulo Ramos de Faria


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[1] Se o error in judicando não perde com o emprego do vernáculo “erro de julgamento” (ou “erro decisório”), o mesmo já não será de dizer do error in procedendo. A melhor aproximação é a expressão “inobservância da forma legal”, impondo-se, no entanto, sublinhar que a forma legal abrange o conteúdo (objeto) do ato imposto pela lei adjetiva (arts. 608.º, 613.º e 615.º, n.º 1), incluindo o conhecimento necessário de questões adjetivas.


Nota

Agradece-se a atenção dedicada pelos Autores ao meu post.

As divergências 
-- principalmente ao nível conceptual -- entre a posição dos Autores e aquela que venho defendendo e que reafirmei no referido post estão claras, pelo que não se justifica nenhuma "tréplica" à réplica agora publicada.

MTS

Nota de actualização: corrigiu-se uma inconveniente gralha relativa ao nível das divergências.