04/10/2024

Jurisprudência 2024 (19)

 
Patrocínio judiciário obrigatório;
requerimento da parte

 
I. O sumário de RG 25/1/2024 (1/21.5T8CHV-D.G2) é o seguinte:

1. A taxa de justiça devida só pode ser paga em prestações nos termos definidos pelo art. 33º RCP, e essa possibilidade não se aplica às multas processuais.

2. Um requerimento apresentado pela própria parte, que está representada por Advogado nos autos, a pedir o pagamento em prestações em caso em que tal não é legalmente admissível não pode ter como efeito o alargamento do prazo para pagamento da guia que tinha sido enviada ao Mandatário.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"No Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de execução ..., corre termos processo de embargos de executado em que é embargante AA e embargado BB.

No decurso da audiência de julgamento, realizada em 26.5.2022, pela ilustre mandatária do embargante foi pedida a palavra e, sendo-lhe concedida, no uso da mesma requereu a junção de documentos e a produção de prova pericial.
 
Após cumprimento do contraditório, o Tribunal proferiu despacho em que considerou ser extemporânea quer a requerida junção de prova documental quer a produção de prova pericial, pelo que indeferiu ao requerido.

O executado veio interpor recurso de apelação desse despacho proferido pelo tribunal a quo em sede de audiência de julgamento. Juntou alegações de recurso e comprovativo do pedido de apoio judiciário (fls. 85 e ss histórico).

A Segurança Social veio por ofício de 22.9.2022 informar o Tribunal que o pedido de apoio judiciário formulado pelo embargante foi indeferido, por ter sido considerado intempestivo.

Em 21.10.2022, na sequência de despacho no mesmo sentido, o Ilustre Mandatário do embargante foi notificado para, no prazo de 10 dias, efectuar o pagamento da taxa de justiça devida acrescida de uma multa de igual montante, sob pena de desentranhamento da alegação (art. 642º,1 CPC).

Por requerimento de 29.11.2022 veio o recorrente, na sequência de convite judicial, juntar aos autos cópia do requerimento de impugnação judicial da decisão de indeferimento do apoio judiciário.

A 24.1.2023 foi enviado ao Tribunal de Execução o recurso de impugnação da decisão proferida pela Segurança Social, de indeferimento.

Em 22.3.2023 foi proferido despacho final nesse recurso de impugnação, que o julgou improcedente e, em consequência, manteve a decisão proferida pelo Centro Distrital de Segurança Social de ....

A 19.5.2023 foi o Ilustre Mandatário do embargante notificado, nessa qualidade, para, no prazo de 10 dias, efectuar o pagamento da taxa de justiça devida acrescida de uma multa de igual montante, sob cominação de que a falta de pagamento da taxa de justiça e da multa no prazo assinalado implica o desentranhamento da alegação, do requerimento ou da resposta apresentada pela parte em falta.
 
Em concretização, foi enviada uma guia para pagar a quantia de € 408,00 até ao dia 1.6.2023 (sendo € 204,00 de taxa de justiça e € 204,00 de multa).

Por e-mail enviado a 25.5.2023 o próprio embargante (e não o seu Mandatário) veio informar que não tinha condições financeiras para efectuar o pagamento de uma só vez, por dificuldades económicas, e veio solicitar autorização para efectuar o pagamento em 6 prestações mensais.

O Tribunal proferiu em 27.6.2023 o seguinte despacho (o despacho recorrido):

“Compulsados os autos constata-se que, em 29/05/2023 (Cfr. ref.ª...98), a Secção procedeu à notificação do ilustre mandatário do executado AA, para, no prazo de 10 dias, efectuar o pagamento da taxa de justiça devida acrescida de uma multa nos termos legais (art. 642.º, n.º 1 do CPC), sob cominação da falta de pagamento da taxa de justiça e da multa no prazo assinalado implicar o desentranhamento dos autos, da alegação, do requerimento ou da resposta eventualmente apresentada pela parte em falta.
 
Por requerimento junto aos autos em 25/05/2023, veio o próprio executado requerer que lhe seja facultado o pagamento das quantias em dívida (taxa de justiça e multa) em prestações invocando, para o efeito, a existência de dificuldades económicas.
 
Cumpre apreciar: O requerido pelo executado/recorrente não tem fundamento legal pois não se encontra prevista a possibilidade da taxa de justiça devida e a multa respectiva de serem pagas em termos prestacionais, motivo pelo qual não pode proceder a pretensão daquele, o que se decide.
 
Assim sendo, uma vez que não se encontram comprovados nos autos os pagamentos que são devidos, a título de taxa de justiça e multa pela interposição do recurso
 
junto com o requerimento ref.ª ...30 de 13/06/2022, tem-se o aludido requerimento que
contém as alegações de recurso por extemporâneo.
 
Em face do exposto, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 642 do CPC, determina-se o desentranhamento das alegações de recurso juntas aos autos sob ref.ª ...30.
 
Custas a cargo do Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em uma (1) UC - art.7.ºdo RCP”.

O executado/embargante, não se conformando com tal despacho, veio apresentar reclamação ao abrigo do art. 643º,1 CPC.

Em síntese nossa, faz assentar a sua pretensão nos seguintes argumentos:

1. O Tribunal desconsiderou por completo o requerimento do embargante de pagamento em prestações.
2. Deveria o Tribunal conceder o prazo supletivo de 10 dias para o recorrente vir proceder ao pagamento da taxa de justiça e multa.
3. Ao agir como agiu violou o tribunal o direito de acesso à justiça consagrado no art. 20º CRP.
4. Foi proferido o despacho em crise, de desentranhamento das alegações de recurso, sem que tivesse sido dada oportunidade ao recorrente de vir proceder ao pagamento da taxa de justiça e multa, a fim de ser admitido e conhecido o objecto do recurso.
5. Não podia ter sido rejeitada a admissão do recurso com fundamento em extemporaneidade.
6. O despacho de não admissão de recurso viola o disposto no art. 642º CPC e 33º RCP e art. 20º CRP.
7. Deve ser proferida decisão que revogue o despacho que não admitiu o recurso, substituindo-o por outro que determine a notificação do recorrente para no prazo de 10 dias proceda ao pagamento da taxa de justiça e multa, e, consequentemente, admita e conheça do recurso.

Tal reclamação foi admitida a subir a este Tribunal da Relação, onde foi proferido a 26.9.2023 o seguinte despacho:

“A presente reclamação tem como objecto despacho proferido pelo Tribunal a quo a determinar o desentranhamento das alegações de um recurso apresentado pelo reclamante com fundamento na omissão do pagamento da taxa de justiça devida e respectiva multa, no qual é invocada, em suporte legal, a norma do n.º 2 do art. 642 do CPC.
 
Ora, como nota António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 225, nota 378, contra a decisão de desentranhamento arrimada no disposto no art. 642/2 do CPC cabe recurso e não reclamação.
 
Verifica-se, deste modo, um erro na qualificação do meio processual.
 
O erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz que deve determinar a observância dos termos processuais adequados, em cumprimento do disposto no art. 193/3 do CPC.
 
Analisado o requerimento, verifica-se que o mesmo foi apresentado dentro do prazo previsto para a interposição de recurso. Examinando a reclamação, verifica-se: que esta foi apresentada dentro do prazo de 15 dias para interposição do recurso (art. 638/1 do CPC e 644/2, d), do CPC, aplicado por identidade de razões); consta de alegações e conclusões.
 
Desta forma, a reclamação pode convolar-se em recurso, com vista a ser apreciada, desde que a parte reclamante pague a taxa de justiça complementar.

Nestes termos:
 
1. Convida-se os interessados a pronunciarem-se, querendo, pela convolação da reclamação em recurso de apelação.
2. Convida-se o reclamante a pagar a taxa de justiça complementar do recurso, com referência ao valor da causa adrede fixado na 1.ª instância”.


Foi então o Ilustre Mandatário do embargante notificado para efectuar o pagamento da diferença entre o valor pago e a pagar da taxa de justiça devida pelas alegações apresentadas.
O mesmo veio informar que nada tinha a opor à convolação da reclamação em recurso de apelação, e efectuou o pagamento da taxa de justiça devida, no valor de € 153,00.

Então, o Ex.mo Desembargador Relator proferiu, em 4.10.2023 o seguinte despacho:

“Considerando a declaração expressa pelo Reclamante no sentido de «concordar com a convolação» e atenta a comprovação do pagamento da taxa de justiça complementar, nos termos e pelos fundamentos que constam do despacho proferido no dia 26.09 –que, brevitatis causa, se dão por integralmente reproduzidos –, decide-se: 
 
1) convolar a presente reclamação em recurso de apelação;
2) consequentemente, julgar extinta a presente instância de reclamação prevista no art. 643 do CPC; e
3) determinar a remessa dos presentes autos ao Tribunal de 1ª Instância para que, em cumprimento do disposto no art. 641 do CPC, aprecie os requisitos de admissibilidade do requerimento ora convolado em recurso de apelação”.

Regressados os autos à primeira instância, foi então proferido o seguinte despacho, de 13.11.2023:

“Nos termos dos despachos proferidos superiormente em 26/09/2023 e em 04/10/2023 neste apenso D) que, anteriormente, seguiu termos como Reclamação (art.643.º do CPC), foi determinada a convolação da mesma em Recurso.
 
Determinou-se também que os autos baixassem à primeira instância para serem apreciados os pressupostos de admissibilidade do recurso, nos termos do art. 641.º do CPC.
 
Um dos pressupostos de admissão do recurso é a apresentação de “Conclusões”.
 
Analisado o requerimento de interposição da “Reclamação” (art. 643.º do CPC), agora convolado em requerimento de interposição de “Recurso”, não vislumbramos que o mesmo contenha as ditas conclusões.
 
A nosso ver, não tendo o executado/recorrente cumprido este ónus que sobre si recaía e não havendo lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento, apenas nos restaria rejeitar o recurso por falta de conclusões nos termos do art. 641.º, n.º 2, alínea b) do CPC.
 
Contudo, compulsado o teor do douto despacho proferido em 26/09/2023 no Tribunal da Relação verificamos que o Exmo. Sr. Juiz Desembargador fez constar, para além do mais, o seguinte: “(…) Analisado o requerimento, verifica-se que o mesmo foi apresentado dentro do prazo previsto para a interposição de recurso. Examinando a reclamação, verifica-se: que esta foi apresentada dentro do prazo de 15 dias para interposição do recurso (art. 638/1 do CPC e 644/2, d), do CPC, aplicado por identidade de razões); consta de alegações e conclusões (…)” [...]
 
Assim, por dever de obediência às decisões superiores, temos de aceitar que o requerimento de recurso contém conclusões.
 
Neste contexto, por legalmente admissível (uma vez que, entretanto, o recorrente já procedeu ao pagamento da taxa de justiça que, anteriormente, não tinha pago – cfr. ref.ª ...80 de 02/10/2023 e que foi o motivo de não ter sido admitido o recurso interposto pelo executado em 13/06/2022, sob ref.ª ...30 do Apenso B), tempestivo e interposto por quem para tal tem legitimidade, admito o recurso interposto por AA através do douto articulado junto em 10/07/2023, sob ref.ª ...34, o qual é de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo (cfr. art. 644.º, n.º 1, alínea d), 645.º, n.º 2 e 647.º, n.º 1 todos do NCPC).
 
Oportunamente, remeta os presentes autos ao Venerando Tribunal da Relação de Guimarães”.


E assim chegou este apenso de recurso de apelação a esta Relação.
 
Previamente, temos de dizer que o Tribunal recorrido apercebeu-se, e bem, que o requerimento de reclamação não continha conclusões, e fez menção disso no despacho. Porém, considerou que por dever de obediência à decisão da Relação, onde se podia ler que “analisado o requerimento, verifica-se que o mesmo (..) consta de alegações e conclusões”, deveria actuar como se as conclusões estivessem lá, e admitiu o recurso.
 
Embora se compreenda esta postura, a verdade é que mesmo que “Deus todo poderoso” diga que estão lá as conclusões, se elas lá não estiverem, não estão mesmo.

E não estão.
 
Donde, tendo o Tribunal recorrido recebido da Relação a incumbência de “apreciar os requisitos de admissibilidade do requerimento ora convolado em recurso de apelação”, em nosso entendimento deveria ter rejeitado o recurso for falta objectiva e incontornável de conclusões.
 
Porém, tendo sido admitido, e considerando toda a tramitação que referimos, e até considerando a extrema simplicidade da questão suscitada, vamos conhecer do mesmo de imediato.
 
A única questão a decidir é saber se o Tribunal recorrido andou bem quando, por despacho de 27.6.2023, determinou o desentranhamento das alegações de recurso.
 
E a resposta é que andou bem.
 
Recordando, o recorrente não goza de apoio judiciário, pretensão que foi indeferida.
 
Logo, foi notificado em 19.5.2023 para, no prazo de 10 dias, efectuar o pagamento da taxa de justiça devida acrescida de uma multa de igual montante, sob cominação de desentranhamento das alegações. Foi-lhe enviada uma guia para pagar a quantia de € 408,00 até ao dia 1.6.2023 (sendo € 204,00 de taxa de justiça e € 204,00 de multa).
 
O recorrente, apesar de representado por Advogado nos autos, veio, pessoalmente e por e-mail recebido em Tribunal a 25.5.2023, requerer o pagamento da quantia em dívida em 6 prestações mensais.
 
Sucede que a lei não permite o referido pagamento em prestações. O art. 33º,1 do Regulamento das Custas Processuais só admite o pagamento em prestações quando o valor a pagar seja igual ou superior a 3 UC, ou seja, igual ou superior a € 306,00. E a taxa de justiça devida era de valor inferior. E note-se que a faculdade concedida pelo art. 33º,1 RCP só se aplica à taxa de justiça, e não às multas ou penalidades lato sensu, como explica Salvador da Costa, in As custas processuais, 6ª edição, fls. 251.
 
E estando o recorrente representado por Advogado, é óbvio que este último sabia que a quantia em dívida não podia ser paga em prestações. O facto de ter sido a própria parte, e não o Mandatário, a vir pedir a faculdade de pagar em prestações, (não se sabendo por que tal sucedeu) não pode ter como efeito um alargamento do prazo de pagamento.
 
Assim, o despacho recorrido limitou-se a dizer que a pretensão do pagamento em prestações não tinha fundamento legal, e como o prazo limite de pagamento da guia já tinha sido em muito ultrapassado, sem o pagamento ser feito, aplicou a cominação legal prevista no art. 642º,2 CPC, ordenando o desentranhamento das alegações de recurso."

[MTS]