13/11/2024

Paper (518)


-- Clermont, Kevin M., Skirmishing Toward a General Theory of Evidence and Proof (SSRN 06.2024)


Jurisprudência 2024 (47)


Acção de divisão de coisa comum;
reconvenção; admissibilidade


1. O sumário de RC 20/2/2024 (183/22.9T8PNI-B.C1) é o seguinte:

I – Na ação de divisão de coisa comum, é a lei, no art. 926º, nº 3 parte final, do n.C.P.Civil, que se mostra adaptável a incluir no processo especial de divisão de coisa comum, a forma de processo comum.

II – Quando a indivisibilidade do bem comum é aceite entre as partes e o único litígio verdadeiramente existente se prende com as questões relativas à aquisição da fração autónoma em comum e na mesma proporção por ambos os comproprietários, com recurso a pedido de empréstimo bancário (mais concretamente quanto ao pagamento por um deles de empréstimo bancário relativo ao prédio, e bem assim dos montantes a título de IMI e contribuições de condomínio), numa situação em que o pagamento caberia a ambos, é admissível a reconvenção quando tenha sido suscitada a compensação de alegado crédito por despesas suportadas para além da quota respetiva, com o crédito de tornas que venha a ser atribuído ao Requerente.

III – O poder/dever de gestão processual permite a admissibilidade da reconvenção.

IV – Sendo certo que esta é a única interpretação que se harmoniza com os princípios que regem a lei processual civil, cada vez mais arredados de visões de pendor marcadamente formalista em detrimento da busca da garantia de uma efetiva composição do litígio (de acordo com o art. 37º, nos 2 e 3, do mesmo n.C.P.Civil).


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Importa no presente recurso aferir e decidir do desacerto da decisão que não admitiu o pedido reconvencional formulado pela Requerida numa ação de divisão de coisa comum.

Um dos fundamentos base de tal decisão foi o entendimento de que é requisito do preenchimento do disposto no art. 266º, nº 2, al. c) do n.C.P.Civil[3], que estejam em causa dois “créditos”, sendo que não teria essa natureza o exercício do direito potestativo de exigir a divisão – direito exercitado pela Requerente nos autos.

O outro fundamento basilar foi o de que admitir a reconvenção «apenas serviria para complicar desnecessária e intoleravelmente a tramitação da presente ação de divisão de coisa comum».

Que dizer?

Salvo o devido respeito – e releve-se o juízo antecipatório! – não se mostra bem fundado o despacho recorrido em qualquer das suas duas vertentes.

Senão vejamos.

Consabidamente, a ação de divisão de coisa comum tem como pressuposto a compropriedade sobre um determinado bem, sendo que neste caso estava em causa um imóvel.

A ação de divisão de coisa comum é um processo especial que se encontra previsto e regulado nos arts. 925º e segs. do n.C.P.Civil, tendo por objeto a realização do direito dos comproprietários à divisão, conforme o art. 1412º do C.Civil, e, no caso de indivisibilidade material da coisa, o acordo na sua adjudicação a algum dos titulares do direito de compropriedade e preenchimento dos quinhões dos restantes com dinheiro, ou na falta de acordo, a venda executiva e subsequente repartição do respetivo produto na proporção das quotas de cada um (art. 929º, nº 2, do n.C.P.Civil).

Assim, tal tipo de ação é de natureza especial comportando uma fase declarativa [cf. arts. 925º a 928º do n.C.P.Civil] e uma fase executiva [cf. art. 929º do n.C.P.Civil], aquela dirigida a definir o direito da divisão e esta a efectivá-lo.

De referir que a questão da admissibilidade da reconvenção nas ações de divisão de coisa comum tem dividido a jurisprudência, entendendo uns que se verifica incompatibilidade processual entre o pedido de divisão e o pedido reconvencional face ao disposto no art. 266º, nº 3 do n.C.P.Civil, sendo que outros ultrapassam a questão ponderando o disposto no art. 37º, nos 2 e 3, ex vi do art. 266º, nº 3 do mesmo n.C.P.Civil.

Isto para dizer que a questão recursiva não é nova, antes tem sido frequentemente colocada.

Vejamos então.

O supra enunciado primeiro fundamento da decisão recorrida traduz a exigência duma certa conexão ou relação entre o objecto do pedido reconvencional e o objecto do pedido do autor em ação de divisão de coisa comum.

Ora, se como aconteceu na presente ação especial de divisão de coisa comum, a Requerida, apesar de deduzir contestação, confessa o pedido da Requerente [quanto à aquisição do imóvel em compropriedade e a natureza indivisível da coisa], é ainda assim admissível a reconvenção quando tenha sido suscitada a compensação de alegado “crédito” por despesas suportadas para além da quota respetiva, com o “crédito” de tornas que venha a ser atribuído ao Requerente.

Na verdade, em tais circunstâncias, o litígio entre as partes centra-se essencialmente na ausência de entendimento sobre as quantias pecuniárias com que cada contribuiu para a aquisição do imóvel.

Donde, “as questões suscitadas pelo pedido de divisão”, referidas no art. 926º, nº 2, do n.C.P.Civil, acabam por ser as relativas à compensação do valor que um deles haja suportado a mais com a aquisição, com o valor das tornas a haver pelo outro. [Neste sentido vide MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA em Comentário ao Acórdão da Relação de Évora de 17 de janeiro de 2019, proc. n.º 764/18.5T8STB.E1 – disponível para consulta in https://blogippc.blogspot.com/2019/05/jurisprudencia-2019-18.html.]

Com efeito, atento o facto de o prédio não ser divisível, a divisão de coisa comum terá de se realizar com a adjudicação do prédio a um dos comproprietários, mediante o pagamento de tornas ao outro comproprietário – art. 929º nº 2 do n.C.P.Civil.

Sucede que as despesas alegadamente realizadas por um dos interessados quer no pagamento de empréstimo bancário relativo ao prédio, quer nos montantes a título de IMI e contribuições de condomínio, numa situação em que o pagamento caberia a ambos, gera na esfera jurídica da Requerida, a fazer fé no por si alegado, um direito a ser ressarcida em ½ das despesas, sendo que esse “crédito” poderá assim ser compensado com o “crédito” do Requerente em tornas.

Assim, a não se admitir a discussão ampla e prévia daquela questão do “deve” e “haver” entre as partes, na conferência de interessados, no caso de se adjudicar o imóvel a um dos comproprietários, o valor de tornas a entregar ao outro não terá em conta o verdadeiro cerne do litígio, tudo se passando como se ambos tivessem contribuído igualmente na proporção da quota respetiva.

Porém, segundo o que cada uma das partes alega, tal não aconteceu…

Dito de outra forma: não existe razão para lançar mão de outro processo judicial com vista à resolução daquilo que, efetivamente, separa as partes: o encontro entre o “deve” e o “haver”, entre a contribuição de cada um para o valor da sua quota.

Por outro lado – e aqui entrando já na apreciação do segundo fundamento basilar da decisão recorrida! – vejamos agora da salvaguarda do expediente legal inscrito no citado nº 3, do art. 266º, do n.C.P.Civil.

É certo que se traduzem as diversas formas de processo – especial [quanto à divisão de coisa comum] e comum [quanto ao apuramento do “deve” e “haver” entre as partes] – no único obstáculo formal à admissibilidade da reconvenção, mas não seguem as mesmas uma tramitação manifestamente incompatível, tanto mais que é expressamente admissível a convolação do processo especial de divisão de coisa comum em processo comum, de acordo com o art. 37º, n.os 2 e 3, do n.C.P.Civil, isto é, segundo o qual o juiz pode autorizar a reconvenção, «(…) sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio».

Sendo certo que as formas de processo especial e comum, correspondentes aos pedidos da Requerente e da Requerida, não seguem uma “tramitação manifestamente incompatível”, pois o próprio legislador prevê, no art. 926º, nº 3, do n.C.P.Civil, a transmutação do processo especial de divisão de coisa comum em processo comum.

Acresce que o art. 2º, nº 2, do n.C.P.Civil adverte para a garantia de acesso aos tribunais, mediante todos os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação, salvo se a lei disser o contrário, o que neste caso não diz.

Finalmente, temos ainda que por via do art. 6º do mesmo n.C.P.Civil, compete ao juiz adotar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a almejada justa composição do litígio em prazo razoável.

Neste sentido, tal poder/dever de gestão processual permite a admissibilidade da reconvenção, em circunstâncias como as da presente lide – sendo esta a única interpretação que se harmoniza com os princípios que regem a lei processual civil.

Princípios esses cada vez mais arredados de visões de pendor marcadamente formalista em detrimento da busca da garantia de uma efetiva composição do litígio.

Nesta linha de entendimento já foi sublinhado o seguinte em douto aresto [Trata-se do acórdão do STJ de 09/10/2019, proferido no proc. nº 385/18.2T8LMG-A.C1.S2, acessível em www.dgsi.pt/jstj.]:

«É certo de igual forma que essa tramitação não se adequa em si mesma à tramitação inerente ao pedido reconvencional.

É ainda certo que a tramitação de processo comum a seguir em atenção ao pedido reconvencional altera a tramitação prevista para o processo de divisão de coisa comum.

Todavia, importa compreender que toda essa perturbação na tramitação processual é conatural à junção num só processo de pedidos que sigam uma tramitação diversa.

E o que é facto é que a lei não enjeita a possibilidade dessa junção.

Na perspetiva da lei, o inconveniente inerente à perturbação processual que é introduzida resolve-se através da adaptação do processado aos fins da reconvenção (n.º 3 do art. 37.º do CPCivil).

Isto só não deverá ser assim quando a ação e a reconvenção devam seguir tramitação “manifestamente incompatível””.

(…) incompatibilidade manifesta (intolerável, gritante) só existirá naqueles casos em que se imporia (ou, pelo menos, em que houvesse o risco disso suceder) praticar atos processuais contraditórios ou inconciliáveis. Não basta que se esteja perante tramitações desajustadas umas das outras, pois que isso sempre acontece, em maior ou menor grau, em formas processuais diferentes.

(…) a introdução da reconvenção em causa é fonte de perturbação no processo de divisão da coisa comum, mas isso, na perspetiva da lei, não é suficiente para impedir a reconvenção. (…)»

O que tudo serve para dizer que deve a ação seguir os termos do processo comum, para que sejam decididas tais questões, só então depois se entrando na fase executiva do processo com a conferência de interessados.

Esta mesma linha de entendimento – a qual, s.m.j. é claramente maioritária a nível jurisprudencial! – já foi sublinhada em douto aresto do nosso mais alto tribunal, como flui do seguinte:

«I. Na ação especial de divisão de coisa comum, em que o Requerido, apesar de deduzir contestação, confessa o pedido da Requerente, é admissível a reconvenção quando tenha sido suscitada a compensação de alegado crédito por despesas suportadas para além da quota respetiva, com o crédito de tornas que venha a ser atribuído ao Requerente, devendo a ação seguir os termos do processo comum, para que sejam decididas tais questões, só então se entrando na fase executiva do processo com a conferência de interessados.

II. No art. 266.º, n.º 3, do CPC, o legislador salvaguarda a possibilidade de o juiz autorizar a reconvenção “quando ao pedido do Requerido corresponda uma forma de processo diferente”, nos termos previstos no art. 37.º, n.ºs 2 e 3, do mesmo corpo de ºnormas, “com as necessárias adaptações”.

III. Traduzindo-se as diversas formas de processo - especial e comum - no único obstáculo formal à admissibilidade da reconvenção, mas não seguindo as mesmas uma tramitação manifestamente incompatível, tanto mais que é expressamente admissível a convolação do processo especial de divisão de coisa comum em processo comum, de acordo com o art. 37.º, n.ºs 2 e 3, do CPC, o Juiz pode autorizar a reconvenção, “sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa-composição do litígio”.

IV. O poder-dever de gestão processual permite a admissibilidade da reconvenção, em circunstâncias como as dos presentes autos.

V. Está em causa o interesse em discutir e decidir todas as questões que, para além da divisão, envolvem os prédios dividendos. Importa evitar que o Requerido se veja compelido a propor uma outra ação para ver o seu direito reconhecido.» [Citámos agora o acórdão do STJ de 26/01/2021, proferido no proc. nº 1923/19.9T8GDM-A.P1.S1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj, onde, aliás, se faz uma resenha jurisprudencial perfilhando a mesma posição; no mesmo sentido o acórdão do STJ de 25/05/2021, proferido no proc. nº 1761/19.9T8PBL.C1.S1, este citado nas alegações recursivas; ainda no mesmo sentido e com igual resenha jurisprudencial, vide o acórdão do TRL de 24/03/2022, proferido no proc. nº 823/20.4T8CSC-A.L1-2, este acessível em www.dgsi.pt/trl]."


[MTS]


 

12/11/2024

Paper (517)


-- Lally, Martin, The Bayesian Framework and the Polkinghorne Case (SSRN 10.2024)

Jurisprudência 2024 (46)


Restituição provisória da posse;
posse; esbulho violento*


I. O sumário de RC 20/2/2024 (1822/23.0T8CVL.C1) é o seguinte:

1. A restituição provisória de posse tem natureza antecipatória, assegurando a satisfação provisória do possuidor e deverá ter lugar quando o juiz se convença da séria probabilidade da verificação dos requisitos da posse e do esbulho violento (art.ºs 368º, n.º 1 e 378º, do CPC), dependendo, pois, da verificação cumulativa de três requisitos: a posse, o esbulho e a violência.

2. É possuidor esbulhado quem foi privado da posse (enquanto poder de disponibilidade fáctica ou empírica de determinado bem) que tinha e que é impedido de continuar a exercer.

3. Falta aquele primeiro requisito, se não indiciada a “posse” (concreta e efetiva) de veículo automóvel - a sua disponibilidade fática ou empírica por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art.º 1251º do CC) - e que não decorre simplesmente de anterior e coevo registo de propriedade.


II. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"I. Em 21.12.2023, AA intentou o presente procedimento cautelar de restituição provisória da posse contra BB, relativamente ao veículo com a matrícula ..-..-AP.

Alegou, em síntese: é dona do referido veículo automóvel, que se encontrava na sua posse exclusiva desde 01.6.2023; terminou a relação de namoro com o requerido no dia 27.10.2023; então, este tirou-lhe a chave do veículo com recurso a força física e recusou devolver-lha; desconhece a localização da viatura, agora, já registada em nome da mãe do requerido, sem que a requerente assinasse declaração de venda.

Determinou-se a não audição prévia do requerido.

Produzida a prova (documental e pessoal), a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo, por sentença de 29.12.2023, julgou o procedimento cautelar totalmente improcedente, decidindo não decretar a providência cautelar de restituição provisória da posse à requerente do veículo automóvel com a matrícula ..-..-AP. [...]

"II [...] 6. A restituição provisória de posse tem natureza antecipatória, assegurando a satisfação provisória do possuidor e deverá ter lugar quando o juiz se convença da séria probabilidade da verificação dos requisitos da posse e do esbulho violento (cf. os art.ºs 368º, n.º 1 e 378º do CPC), dependendo, pois, da verificação cumulativa de três requisitos: a posse, o esbulho e a violência.

É possuidor esbulhado quem foi privado da posse (enquanto poder de disponibilidade fáctica ou empírica de determinado bem) que tinha e que é impedido de continuar a exercer (foi colocado em condições de não poder continuar a exercer a posse; o possuidor ficou privado do exercício ou da possibilidade de exercício dos poderes correspondentes à sua posse), e, em regra, o Réu/requerido/esbulhador terá de restituir a coisa, fazendo cessar a posse iniciada com o esbulho. [---]

Para que o esbulho possa servir de fundamento ao pedido de restituição provisória de posse é ainda necessário que este seja violento e, ao contrário do que sucede em relação à definição de esbulho, que não consta da lei, a doutrina e a jurisprudência entendem que o conceito de violência que para aqui releva se mostra definido no n.º 2 do art.º 1261º do CC, onde se estatui que se considera violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coação física, ou de coação moral nos termos do art.º 255º do mesmo diploma.

A coação moral, na hipótese de esbulho, ocorre quando o possuidor da coisa é forçado à sua privação pelo receio de um mal de que foi ilicitamente ameaçado, mal esse que tanto pode respeitar à sua pessoa como à sua honra ou fazenda ou de terceiro (art.º 255º do CC), enquanto a coação física supõe a completa ausência de vontade por parte daquele a quem a posse foi usurpada. [---]

7. Não suscita qualquer dúvida que o uso de violência sobre as pessoas, quer seja pelo uso da força física, quer seja através da coação moral, pelas formas da intimação e da ameaça, é relevante para, caracterizando o esbulho como violento, fundamentar o deferimento do procedimento cautelar de restituição provisória de posse.

Considerando-se que a violência a que se refere o art.º 1261º do CC tem de exercer-se sobre as pessoas, e não apenas sobre as coisas que constituem um obstáculo à privação da posse (e a ameaça pode respeitar às pessoas ou aos bens, mas há de exercer-se sobre a pessoa do coato), as dúvidas podem-se colocar no tocante à violência sobre as coisas.

Embora estejamos perante questão não isenta de dificuldades (algumas das quais, cremos, poderão ser ultrapassadas se tivermos uma real/adequada configuração da situação controvertida), afigura-se defensável, como regra, o entendimento de que a violência contra as coisas só é relevante se com ela se pretende intimidar, direta ou indiretamente, a vítima da mesma, não devendo, por isso, qualificar-se como tal os meros atos de destruição ou danificação desprovidos de qualquer intuito de influenciar psicologicamente o possuidor a violência sobre as coisas que estorvam a privação apenas relevará para este fim quando o agente usou, pelo menos de dolo eventual, quando previu, como normal consequência da sua conduta, que iria constranger psicologicamente o possuidor e, todavia, não se absteve de a assumir, conformando-se com o resultado. [---]

8. A referida perspetiva quanto à utilização do procedimento cautelar de restituição provisória de posse, numa interpretação restritiva dos preceitos que o preveem, justifica-se pela diminuição das garantias de defesa do requerido, que não é chamado a defender-se e a contraditar os factos e as provas do requerente previamente à decisão e pela desnecessidade da existência de qualquer prejuízo do requerente - a utilização do procedimento cautelar de restituição provisória da posse, pela diminuição de garantias de defesa do requerido e pela desnecessidade de existência de qualquer prejuízo do requerente, só deve ser permitida em casos em que a violência atingiu pessoas, e não quando apenas se exerceu sobre coisas, pois só aquelas situações revestem uma gravidade que justifica a utilização daquele meio de intervenção draconiano. [---]

9. Ante o descrito enquadramento normativo e a factualidade indiciada em II. 1., supra, antolha-se evidente que a requerente não demonstrou os requisitos do presente procedimento cautelar, desde logo, que tinha a “posse” (concreta e efetiva) do veículo, a sua disponibilidade fática ou empírica, atuando “por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real” (art.º 1251º do CC) sobre o mesmo. [---]

Por outro lado, também não vemos configurado um esbulho violento, uma vez que o desapossamento, a ter existido, foi obtido através de uma ação que não incidiu sobre a requerente, já que não se verificou diretamente qualquer ofensa física à pessoa desta, nem se verificou, direta ou reflexamente, qualquer ofensa psicológica à sua liberdade de determinação, colocando-a na impossibilidade material de agir, ou inibindo-lhe qualquer capacidade de reação, por receio de algum mal.

Tendo em conta a factualidade indiciada e a previsão dos art.ºs 1282º do CC e 377º do CPC, concluiu-se, assim, pela não verificação dos pressupostos/requisitos de que depende o deferimento do procedimento cautelar de restituição provisória de posse.

10. Sufragamos, pois, o entendimento e o decidido na 1ª instância, mormente quando se conclui pelo não preenchimento dos requisitos (cumulativos) para ser decretada a pretendida restituição provisória da posse: não ficou demonstrada a posse pela requerente do veículo automóvel em dissídio – que não decorre simplesmente do anterior registo de propriedade de que era titular; não ficou, outrossim, indiciariamente demonstrada a factualidade invocada relativa aos requisitos do esbulho e violência (não ficou indiciariamente demonstrado, inclusive, que o requerido esteja na posse no veículo, atualmente registado em nome de terceiro); não ficou demonstrada a violência do esbulho, mormente a utilização de “força física” pelo requerido."

III. [Comentário] Admite-se que a RC (bem como a 1.ª instância) decidiu bem, atendendo ao que foi alegado e provado no procedimento cautelar. Não se exclui que o tipo de situação que foi alegada pela requerente possa fundamentar, noutras circunstâncias, a procedência da providência de restituição provisória da posse.

MTS


11/11/2024

Jurisprudência 2024 (45)


Direito de usufruto; 
extinção; hipoteca


I. O sumário de RC 2/2/2024 (1660/21.4T8ACB-A.C1) é o seguinte:

1. - Enquanto limitação/compressão ao direito de propriedade (plena), o direito de usufruto extingue-se pela reunião do usufruto e da propriedade na mesma pessoa, como no caso de o usufrutuário adquirir a nua propriedade.

2. - Por regra, se a hipoteca tiver por objeto o direito de usufruto, considera-se extinta com a extinção deste direito.

3. - Todavia, assim não é se a extinção do usufruto resultar de aquisição da (nua) propriedade por parte do usufrutuário (reunião na esfera jurídica deste de todos os poderes correspondentes), caso em que a garantia hipotecária subsiste, como se a extinção daquele direito real se não tivesse verificado.

4. - Num tal caso, penhorado na execução o direito de usufruto objeto de hipoteca, direito esse pertencente ao executado, que depois veio a adquirir a nua propriedade, a execução hipotecária deve prosseguir, com vista à satisfação do interesse do credor garantido, não se justificando, pois, a extinção da instância executiva por inutilidade superveniente da lide.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1. - Da extinção do direito de usufruto e consequente extinção da garantia hipotecária

Cabe sindicar a impugnada fundamentação jurídica da decisão recorrida, a determinante da procedência dos embargos de executado, com decorrente extinção da execução, por inutilidade superveniente da lide, tudo assentando na diagnosticada extinção do direito de usufruto, a determinar, como entendido pelo Tribunal a quo, a extinção da garantia hipotecária, âmbito em que a Exequente/Apelante, por seu lado, vê flagrante violação do disposto no art.º 699.º, n.º 3, do NCPCiv., motivo pelo qual peticiona a revogação daquela decisão impugnada.

Entendeu aquele Tribunal, na sua fundamentação de direito:

«Temos, assim, que a hipoteca a favor da exequente que incidia sobre a nua propriedade do imóvel foi cancelada e que a executada (usufrutuária do mesmo) adquiriu o imóvel por compra em processo de insolvência, ou seja, passou a ser sua proprietária.

Ora, nos termos do artigo 1476.º, n.º 1, alínea b), do CC, o usufruto extinguiu-se por a executada ter adquirido a propriedade do imóvel nos autos de insolvência dos mutuários.

Compreende-se tal solução uma vez que, reunindo-se o usufruto e a propriedade na mesma pessoa, o usufruto deixa de ser autonomizável, não se vislumbrando de que forma possa subsistir a penhora do usufruto ou ser realizada a sua venda.

Por outro lado, a hipoteca foi cancelada quanto à nua propriedade do imóvel, pelo que, sendo o registo da hipoteca constitutivo, a mesma deixou de subsistir (artigo 867.º do CC).

Assim, porque a execução apenas corria contra a executada por a mesma ser usufrutuária do imóvel sobre o qual impendia hipoteca a favor da exequente (artigo 54.º, n.º 2, do CPC), tal hipoteca foi cancelada quanto à nua propriedade e o usufruto extinguiu-se quando a executada adquiriu a propriedade do imóvel, afigura-se-nos que a execução não poderá continuar a correr contra a executada.

Com efeito, não sendo a executada mutuária e fundando-se a execução contra si apenas na hipoteca, verifica-se que esta não poderá prosseguir nem quanto à nua propriedade (uma vez que a hipoteca foi cancelada nesta parte), nem quanto ao usufruto (que se extinguiu, nos termos já referidos).

Verifica-se, pois, uma inutilidade superveniente dos autos de execução, que cumpre declarar.». [...]

Vejamos. [...]

É consabido que o usufruto «é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância» (noção disponibilizada pelo art.º 1439.º do CCiv.), podendo «ser constituído por contrato, testamento, usucapião ou disposição da lei» (art.º 1440.º do mesmo Cód.) e abrangendo, quanto ao seu âmbito, designadamente, «todos os direitos inerentes à coisa usufruída» (art.º 1449.º do mesmo Cód.). [...]

Com interesse para o caso dos autos, dispõe ainda o art.º 699.º do CCiv. (sobre “Hipoteca e usufruto”):

«1. Extinguindo-se o usufruto constituído sobre a coisa hipotecada, o direito do credor hipotecário passa a exercer-se sobre a coisa, como se o usufruto nunca tivesse sido constituído.

2. Se a hipoteca tiver por objecto o direito de usufruto, considera-se extinta com a extinção deste direito.

3. Porém, se a extinção do usufruto resultar (…) da transferência dos direitos do usufrutuário para o proprietário, ou da aquisição da propriedade por parte daquelea hipoteca subsiste, como se a extinção do direito se não tivesse verificado.» (destaques aditados).

Aproveitando novamente os ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela, pode dizer-se que, constituída a hipoteca sobre a propriedade (hipótese do n.º 1 daquele art.º 699.º), «extinto o usufruto, o direito do credor hipotecário passa a exercer-se sobre a coisa», como se nunca tivesse existido usufruto, por este ter uma «natureza de simples limitação ao direito de propriedade» (é «uma restrição que desaparece») ([Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 1987], p. 721.] 

Já a norma do n.º 3 do mesmo art.º 699.º contempla quer a hipótese de constituição de hipoteca sobre a propriedade, quer, ainda, a de constituição da garantia hipotecária sobre o usufruto ( Vide, op. cit., ps. 721 e 722, referindo que a disposição do n.º 3 «é aplicável aos dois casos referidos».]

Assim, em qualquer desses casos é fora de dúvida que, ocorrendo a extinção do usufruto por aquisição da propriedade por parte do usufrutuário (do mesmo modo que na hipótese de transferência dos direitos do usufrutuário para o proprietário), a hipoteca subsiste, como se a extinção do direito se não tivesse verificado.

Ou seja, extinguindo-se o direito real de usufruto, por via da aquisição da nua propriedade pelo usufrutuário (no caso, a Executada), que se torna, assim, proprietário pleno (por reunião de poderes numa mesma pessoa), a lei impõe que a hipoteca constituída subsista, como se a extinção do direito não tivesse acontecido, num escopo protetivo da posição do credor hipotecário, que não deve ser prejudicado por tal reunião.

Dito de outro modo, se a posição da Executada/garante fica reforçada, que passa de (mera) usufrutuária, a (plena) proprietária, por adquirir a nua propriedade [refere a Executada/Embargante que «Adquiriu a nua propriedade por venda judicial» (---)], o que leva ao desaparecimento da limitação ao direito de propriedade (extinção do usufruto), tal reforço de posição não pode redundar em desfavor do credor garantido/hipotecário, não se justificando a extinção da hipoteca, tal como subsistente ao tempo da mencionada reunião.

Se a hipoteca incide sobre o direito de usufruto e o garante (usufrutuário) se torna (pleno) proprietário, somando ao usufruto a nua propriedade (reunindo ambos), tal não pode desobrigá-lo da garantia prestada, em prejuízo do respetivo credor.

A garantia/hipoteca deve, então, permanecer, sob pena de se castigar injustificadamente o credor e se beneficiar sem motivo o garante, cuja posição (de garante hipotecário) em nada fica posta em causa por aquele passar/ascender, por reunião, de mero usufrutuário a pleno proprietário (sabido que o usufruto, enquanto limitação, se contém dentro da esfera do direito de propriedade).

É certo que a limitação do direito de propriedade cessa, extinguindo-se o usufruto, enquanto limitação/compressão a esse direito dominial, que, assim, se expande, por reunião [art.º 1476.º, n.º 1, al.ª b), aludido].

Mas tal não pode redundar na extinção da garantia/hipoteca previamente constituída: a extinção do usufruto só vem reforçar a posição do garante, assim obtido o dominium (conferido pela propriedade plena), que não pode, por isso, ficar desobrigado perante o credor, merecendo este, salvo o devido respeito, a proteção de antemão conferida ao seu crédito – como crédito garantido –, medida esta pelo direito de usufruto, e não mais, cuja hipoteca se mostra registada, quanto ao imóvel, por apenas ter sido cancelada relativamente à nua propriedade, registo esse anterior ao registo da aquisição do direito de usufruto, havendo ainda registo da penhora do usufruto a favor da Exequente, só posteriormente se dando a dita reunião, sem virtualidade, pois, para afetar/prejudicar a posição do credor hipotecário (---).

Em suma, não pode acompanhar-se a argumentação de pendor extintivo do Tribunal recorrido, antes assumindo preponderância as conclusões em contrário da Apelante, havendo, pois, de considerar-se que subsiste a garantia hipotecária, medida pelo direito de usufruto do imóvel."

[MTS]



08/11/2024

Bibliografia (1155)


-- Zuffi, B., Contumacia e giudizio nel processo civile (E.S.I.: Napoli 2024)


Jurisprudência 2024 (44)


Custas; nota justificativa; 
reclamação; recurso; prazo de interposição


I. O sumário de RL 7/3/2024 (1982/20.1YIPRT-I.L1-8) é o seguinte:

1. Qualquer incidente dispõe sempre de algum grau de autonomia, mas, em nosso entender, foi intenção legislador apenas incluir na al. a) do nº1 do art.º 644º do CPC, os incidentes da instância que a lei processual civil expressamente prevê e regula de forma autónoma relativamente à ação principal.

2. Mesmo que se defenda que a reclamação contra a nota justificativa, é um incidente processado autonomamente, não poderá ser qualificado como incidente da instância processado autonomamente, nos termos e para os efeitos previstos na al. a) do nº 1 do art.º 644º do CPC.

3. Tratar-se-ia de um incidente processado autonomamente, mas estranho ao desenrolar normal da lide, da instância, é um incidente que diz respeito apenas a matéria da nota justificativa de custas.

4. O incidente que constitui a reclamação da nota justificativa de custas, não tem as características de incidente da instância, que é exigido pelo regime legal dos incidentes da instância, pelo que não está incluído na previsão do artigo 644.º/1, a), do CPC.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Estipula o art.º 644º do CPC:

“1. Cabe recurso de apelação:
a) Da decisão, proferida em 1ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente. (…)
2. Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1ª instância:
(…)g): De decisão proferida depois da decisão final”.(…)
i) Nos demais casos especialmente previstos na lei.(…).

Prescreve o art.º 638º, nº 1 do CPC:

1 - O prazo para a interposição do recurso é de 30 dias e conta-se a partir da notificação da decisão, reduzindo-se para 15 dias nos processos urgentes e nos casos previstos no nº 2 do artigo 644º e no artigo 677º”. (…).

Assim, importa determinar se o presente recurso de apelação está sujeito ao prazo de 30 dias, por constituir um “incidente processado autonomamente” (art.º 644º, nº 1, al. a) do CPC), como defende a Reclamante, ou está sujeito ao prazo de 15 dias por consubstanciar uma “decisão proferida depois da decisão final” (art.º 644º, nº 2, al. g) do CPC), como foi entendido no despacho proferido pelo Tribunal “a quo” e no despacho do relator quer indeferiu a reclamação daquele despacho.

Na tese da Reclamante o recurso é tempestivo e deve ser admitido, porquanto, o despacho sob recurso, pôs termo a um incidente processado autonomamente, tudo cf. 1ª parte, do nº1, do art.º 638º e art.º 644º, nº1, a), in fine, ambos do CPC.

Conforme entendimento tido, quer no despacho da 1ª instância, que não admitiu o recurso, quer no despacho ora reclamado, que manteve aquele despacho, a questão a apreciar e decidir, para se apurar qual o prazo para interpor recurso do despacho proferido pelo Tribunal “a quo”, passa por saber qual o conteúdo da expressão “incidente processado autonomamente” constante do artigo 644.º/1, a), in fine, do CPC.

A reclamante entende que a reclamação da nota justificativa é um incidente processado autonomamente e, por isso, o prazo para recorrer do despacho que põe termo a esse incidente é o prazo de 30 dias, cf. art.º 638º, nº 1, e  art.º 644º, nº 1 al. a) e o tribunal “a quo” e o ora relator, na decisão em que indeferiu a reclamação contra o despacho que não admitiu o recurso, entenderam que a reclamação da nota justificativa não é um incidente processado autonomamente e, por isso, não admitiu o recurso por extemporâneo, porquanto, o prazo para recorrer do despacho de indeferimento da reclamação da conta de custas, no caso da nota justificativa, é de 15 dias, pela aplicação conjugada dos artigos 638.º/1, in fine e 644.º/2, g), ambos do CPC, uma vez que o recurso incide sobre uma decisão proferida depois da decisão final.

Subscrevemos, na íntegra, a solução dada pelo relator no despacho, ora em reclamação para a conferência, e que reproduzimos de seguida.

Um incidente, seja ele processado por apenso ou nos próprios autos, é sempre uma ocorrência estranha ao desenrolar normal da instância, ou seja, é sempre um incidente da instância, configurando-se esta como uma sucessão dos atos processuais que compõem um processo judicial.

José Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3º, pág. 563, ensina:

“A ideia que, ente nós, está na base da noção de incidente, é a seguinte: uma ocorrência extraordinária que perturba o movimento normal do processo.

Está pendente uma acção para a solução de certo conflito substancial; esta acção tem o seu processo próprio: a lei regula os termos e actos que hão-de praticar-se para se atingir o resultado final – a decisão da lide.

Suponhamos que, no curso deste processo, surge uma questão secundária e acessória, para a solução da qual se torna necessária a prática de actos e termos não compreendidos na estrutura própria do processo da acção: temos o incidente.

O incidente é uma forma processual secundária que apresenta, em relação ao processo da acção, o carácter de episódio ou acidente.”

É aqui que a expressão “processado autonomamente”, do artigo 644º/1, a), do CPC, encontra coincidência conceitual, porque pressupõe um processado não regulado na estrutura da ação em que é suscitado, tal como ensinava J. Alberto dos Reis.

É também este o entendimento de Abrantes Geraldes in Recursos No Novo Processo Civil, 5ª Ed. pág. 204, os incidentes a que alude o art.º 644º/1, a), do CPC são “incidentes tramitados no âmbito da própria ação, desde que sejam dotados de autonomia … a implicar trâmites específicos que não se confundem com os da ação em que estão integrados” (…) os incidentes de instância processados por apenso, como ocorre com a habilitação, mas que é extensiva a outros incidentes tramitados no âmbito da própria ação, desde que sejam dotados de autonomia. Tal como ocorre com os incidentes de intervenção de terceiros, com o da liquidação ou com o de verificação do valor da causa, (…)”.

A reclamação da nota justificativa de custas, sendo um incidente inominado, processa-se autonomamente?

Estipula o Regulamento das Custas Processuais (RCP) no art.º 26º-A, (Reclamação da nota justificativa)

1. A reclamação da nota justificativa é apresentada no prazo de 10 dias, após notificação à contraparte, devendo ser decidida pelo juiz em igual prazo e notificada às partes.
2 - A reclamação da nota justificativa está sujeita ao depósito da totalidade do valor da nota.
3 - Da decisão proferida cabe recurso em um grau se o valor da nota exceder 50 UC.
4 - Para efeitos de reclamação da nota justificativa são aplicáveis subsidiariamente, com as devidas adaptações, as disposições relativas à reclamação da conta constantes do artigo 31.º.

O que se visa com a previsão do artigo 26.º-A do RCP, que segue o regime do artigo 31.º do mesmo regulamento?

Visa-se reagir contra uma parte da sentença – a que respeita à condenação em custas –, pelo que não estamos em presença de um episódio ou um incidente estranho à normal tramitação e que exija um processado autónomo do que foi seguido pela ação.

Se o fim a atingir é a alteração da sentença numa das suas partes, o legislador poderia prever o regime do recurso para se reagir contra esta condenação, mas não foi este o objetivo do legislador.

Optou antes, por um procedimento tão célere quanto possível, conceder às partes reagir contra a condenação em custas pela via da reclamação, num claro intuito de conferir maior celeridade à apreciação da questão, ainda na instância em que foi proferida a decisão e, também por isso, o prazo diminuído que instituiu para reclamar e decidir (10 dias) e também para recorrer da decisão que incide sobre a reclamação (15 dias).

Não é finalidade do processo condenar ou absolver em custas, mas sim condenar ou absolver do pedido.

Ora, o incidente que constitui a reclamação da conta de custas, no caso da nota justificativa, não tem as características de incidente da instância, nos termos que ficaram expostos, e é exigido pelo regime legal dos incidentes da instância, pelo que não está incluído na previsão do artigo 644.º/1, a), do CPC.

O incidente que constitui a reclamação da conta de custas, no caso da nota justificativa, segue uma tramitação que se inscreve nos trâmites seguidos pela ação em que está integrado, por isso, não é processado autonomamente.

Logo, o prazo para recorrer do despacho de indeferimento da reclamação da conta de custas, no caso da nota justificativa, é de 15 dias, pela aplicação conjugada dos artigos 638.º/1, in fine e 644.º/2, g), ambos do CPC, uma vez que o recurso incide sobre uma decisão proferida depois da decisão final.

Tendo a recorrente sido notificada da decisão que indeferiu a reclamação da nota justificativa, em 08/01/2023, e interposto recurso daquela decisão em 02/02/2023, o recurso é extemporâneo.

Tanto bastaria para confirmarmos o despacho sob reclamação para a conferência, no entanto, acrescentamos os argumentos que seguem e reforçam a mesma solução, quanto ao prazo para interposição de recurso do despacho do tribunal “a quo”, que decidiu sobre a nota justificativa.

Qualquer incidente dispõe sempre de algum grau de autonomia, mas, em nosso entender, foi intenção legislador incluir na referida al. a) do nº1 do art.º 644º do CPC, apenas, os incidentes que a lei processual civil expressamente prevê e regula de forma autónoma relativamente à ação principal, nos art.º 296º a 361º do CPC.

Neste sentido, veja-se a jurisprudência citada no despacho reclamado, Ac. do STJ de 16.06.2015, e Ac. da RE. de 15.12.2016.

Mesmo que se defenda que a reclamação contra a nota justificativa, é um incidente processado autonomamente, pelo que supra se deixou exposto, nunca poderia ser qualificado como incidente da instância, nos termos e para os efeitos pretendidos.

Tratar-se-ia, sempre, de um incidente processado autonomamente, mas estranho ao desenrolar normal da lide, da instância, é um incidente que diz respeito apenas a matéria da nota justificativa de custas.

A ser assim, mesmo tratando-se de um incidente com autonomia processual cuja decisão está sujeita a recurso, cf. nº 3 do art.º 26º - A do RCP, porque não é um incidente da instância, “… uma ocorrência extraordinária que perturba o movimento normal do processo”, Cf. José Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3º, pág. 563, sempre o recurso, da decisão sobre o incidente da reclamação contra a nota justificativa, teria que ser interposto no prazo de 15 dias, pela aplicação conjugada dos artigos 638.º/1, in fine e 644.º/2, al. i), ambos do CPC.

Mas, no presente caso, porque a decisão sobre a reclamação da nota justificativa (na tese da Reclamante, um incidente processado autonomamente), foi proferida depois da decisão final, sempre seria de aplicar, a norma contida na al. g), do nº 2, do art.º 644º do CPC.

Em conclusão, não se inserindo a decisão recorrida em nenhum dos mencionados incidentes de instância, o respetivo recurso não se enquadra na previsão do da al. a) do nº 1, mas sim no nº 2, al. g), ou al. i), do referido art.º 644º, do CPC, sendo, por isso, de 15 dias o prazo interposição do recurso, cf. 2ª parte do nº1, do art.º 638º, do CPC."

[MTS]


07/11/2024

Alteração ao CPC (13)


Citação electrónica


-- DL 87/2024, de 7/11

Regula a citação e notificação por via eletrónica das pessoas singulares e das pessoas coletivas, determinando que a citação e notificação das pessoas coletivas é, em regra, efetuada por via eletrónica.
 

Nota: diferentemente do que se refere no art. 1.º. al. aI), DL 87/2014, não se trata da "décima segunda alteração do Código de Processo Civil", mas antes da "décima-terceira" alteração, como se pode comprovar aqui. Segundo se julga, o equivoco vem desde a L 117/2019, de 13/9.

Bibliografia (1154)


-- Nigel Lowe / Costanza Honorati / Michael HellnerBrussels II-ter / Cross-border Marriage Dissolution, Parental Responsibility Disputes and Child Abduction in the EU (Larcier-Intersentia: Brussels 2024)



Jurisprudência 2024 (43)


Processo de inventário;
liberalidades inoficiosas; redução; caducidade*


I. O sumário de RL 7/3/2024 (8169/23.0T8LRS.L1-2) é o seguinte:

1- O prazo de caducidade previsto no art.º 2178º do Código Civil não é aplicável à acção de inventário (nem tão pouco ao arrolamento preliminar da mesma), mas apenas e tão só à acção comum proposta pelo herdeiro contra o beneficiário de liberalidade que não seja herdeiro, visando a redução da mesma por ofensa da legítima.

2- Tendo o autor da sucessão deixado em legado ao seu cônjuge acções de uma sociedade comercial, legado esse susceptível de ofender a legítima dos demais herdeiros legitimários, o que interessa aos fins do inventário a propor é a especificação da totalidade das acções legadas, para efeitos do apuramento do valor dos bens da herança, do cálculo do valor da legítima e da correspondente redução do legado por inoficiosidade, tudo operações a realizar no âmbito desse inventário.

3- Assim, e porque o arrolamento constitui medida cautelar dependente da acção à qual interessa a especificação dos bens, sendo de decretar quando haja justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, relativamente aos quais haja de ser feita tal especificação, estando verificado o receio de dissipação da totalidade das acções legadas justifica-se o arrolamento das mesmas, na sua totalidade, para salvaguarda do referido interesse na sua especificação, em sede de inventário.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Da caducidade do direito à redução do legado

Fazendo apelo ao disposto no art.º 2178º do Código Civil, e tendo presente que é de considerar a aceitação da herança pelos requerentes, pelo menos reportada ao momento da apresentação da participação fiscal identificada em 4. dos factos provados (ou seja, em 22/4/2021), sustenta a requerida, por um lado, que até ao termo do prazo de dois anos aí referido os requerentes não propuseram a “medida judicial para a redução da inoficiosidade (…) seja por que meio processual seja”, assim havendo caducado o direito a tal redução. Do mesmo modo entende que, ainda que se considere que o presente procedimento cautelar corresponde ao referido meio processual apto ao exercício do direito à redução, o referido prazo de caducidade completou-se antes de tal propositura (que ocorreu em 30/8/2023).

Contrapõem os requerentes que o disposto no art.º 2178º do Código Civil tem de ser interpretado no sentido de a acção aí prevista ser a acção comum que há-de ser intentada contra quem não é herdeiro legitimário e que, por isso, carece de legitimidade para a acção de inventário. Já no caso de se tratar da redução por inoficiosidade, relativamente ao legatário que é herdeiro legitimário, é no âmbito da acção de inventário que cabe exercer o direito à redução, e podendo o mesmo ser exercido a todo o tempo, não sendo aplicável o disposto no art.º 2178º do Código Civil.

O instituto da redução de liberalidades por inoficiosidade, previsto nos art.º 2168º e seguintes do Código Civil, está dirigido à protecção da legítima, isto é aquela porção de bens de que o autor da sucessão não podia dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários (art.º 2156º do Código Civil).

Como explica Pires de Lima (Código Civil anotado, volume VI, 1998, pág. 273), “a característica fundamental da inoficiosidade está, como a disposição salienta no lugar próprio, na circunstância de a liberalidade (seja ela entre vivos, seja mortis causa) ofender a legítima, excedendo o limite da quota disponível da herança”. E mais explica que se apresenta como essencial, para afirmar que se está perante uma limitação da liberdade de disposição mortis causa, “que, ao precisar o modo como se calcula a legítima (ou o valor da legítima), o artigo 2162º não tenha omitido que, para esse efeito, ao lado dos relicta, se devem também incluir os donata e também as despesas sujeitas a colação”.

Numa outra perspectiva, e como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/12/2020 (relatado por Rijo Ferreira e disponível em www.dgsi.pt), “a inoficiosidade das liberalidades (art.º 2168º do CCiv) situa-se no âmbito das operações de partilha (cálculo do valor que cabe a cada um dos interessados em função das respectivas quotas hereditárias e preenchimento dos respectivos quinhões) e tem como função reagir à ofensa da legítima dos herdeiros legitimários”.

Assim sendo, e numa primeira abordagem interpretativa do art.º 2178º do Código Civil, parece que a “acção de redução de liberalidades inoficiosas” aí referida não se confunde com a acção especial de inventário.

Com efeito, e como resulta do disposto conjugadamente nos art.º 2102º do Código Civil e 1082º do Código de Processo Civil, é pelo inventário judicial que qualquer herdeiro faz cessar a comunhão hereditária e provoca a partilha, caso a mesma não seja alcançada extrajudicialmente por acordo de todos os interessados.

E estando-se perante a ofensa da legítima destinada aos herdeiros legitimários, o que só se logrará afirmar no âmbito das operações de partilha, não se pode afirmar que o direito à redução da liberalidade inoficiosa se tem por caducado ainda antes dessas operações de partilha, caso tenham já decorrido dois anos desde a aceitação da herança pelo(s) herdeiro(s) legitimário(s).

O que é o mesmo que afirmar que o prazo de caducidade previsto no art.º 2178º do Código Civil não é aplicável à acção de inventário, mas apenas e tão só à acção comum proposta pelo herdeiro contra o beneficiário de liberalidade que não seja herdeiro, visando a redução da mesma por ofensa da legítima.

Como se observa no acórdão de 7/12/2023 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por João Cura Mariano e disponível em www.dgsi.pt), não é “consensual que essa caducidade [ou seja, a caducidade a que respeita o art.º 2178º do Código Civil] ocorra quando os beneficiários das doações forem interessados na partilha da herança”.

Com efeito, e como ficou afirmado no acórdão de 9/4/2002 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Armando Lourenço, igualmente referido pelos requerentes e disponível em www.dgsi.pt), “sendo o donatário herdeiro legitimário, a redução só em processo de inventário podia [pode] ter lugar”, uma vez que “a redução exige que se proceda a um inventário e à fixação do valor da herança e a uma distribuição dos bens que tenha em conta o efeito das alienações gratuitas na legítima”. Pelo que se concluiu que o “artigo 2178º, CC não é aplicável às situações em que o beneficiário da titularidade seja herdeiro legitimário”. [...]

É certo que no acórdão de 19/10/2017 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por António Santos e disponível em www.dgsi.pt), ficou afirmado que “o prazo de caducidade definido no art.º 2178, do Código Civil, tem aplicação outrossim no caso em que o donatário é herdeiro legitimário e sendo a questão suscitada em processo especial de inventário”. Do mesmo modo, no anterior acórdão de 6/10/2011 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por Jorge Leal e disponível em www.dgsi.pt) havia ficado afirmado que “a caducidade da acção de redução de doações inoficiosas, prevista no art.º 2178.º do Código Civil, pode ser invocada por qualquer beneficiário da liberalidade, seja ou não herdeiro do doador”.

Todavia, não é possível acompanhar a argumentação aí expressa, para concluir pela aplicação do prazo de caducidade a que respeita o art.º 2178º do Código Civil ao exercício do direito de redução de liberalidades inoficiosas que tenham por beneficiário herdeiro legitimário, e que deva ser exercido em sede de inventário.

Com efeito, o que aí se sustenta é que da doutrina de Alberto dos Reis (R.L.J., ano 85º, pág. 243) emergia que o preceito legal em causa, ao tempo (o art.º 1503º do Código Civil de Seabra), era “letra morta”, porque interpretado no sentido de não ter aplicação, já que a redução sempre carecia de ser pedida em processo de inventário. E como através da redacção do art.º 2178º do Código Civil actual “não se terá querido tomar posição quanto à forma processual do exercício do direito à redução das liberalidades inoficiosas, matéria menos adequada a figurar numa codificação de direito substantivo (…), daí não se pode concluir que se tenha querido preservar a ideia de que a caducidade do direito à redução das liberalidades só beneficia donatários terceiros, ou seja, não herdeiros do doador”, porque “o legislador em parte alguma expressa essa distinção (sendo certo que o intérprete deve presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados – n.º 3 do art.º 9.º do CC), cuja razão de ser não se descortinaria, face às razões de segurança e certeza que tanto interessam a terceiros como aos herdeiros” (as citações são do referido acórdão de 6/10/2011).

Sucede, todavia, que na mencionada interpretação do art.º 2178º do Código Civil não se atentou correctamente à intenção do legislador, tal como a mesma resulta da opção por uma redacção do preceito em sentido distinto da expressa no anteprojecto apresentado por Inocêncio Galvão Telles. Assim, e voltando a citar o referido acórdão de 6/10/2011, se “no seu anteprojecto da parte de Direito das Sucessões do futuro Código Civil o Prof. Inocêncio Galvão Telles incluiu o art.º 184.º, o qual, sob a epígrafe “Prazo de caducidade”, estabelecia que “A anulação ou redução de liberalidades inoficiosas só pode ser pedida em processo de inventário; e o direito a obtê-la caduca se o inventário não for requerido dentro de dois anos a contar da aceitação da herança pelo herdeiro legitimário” (“Direito das Sucessões, anteprojecto de uma Parte do futuro Código Civil Português”, Separata do BMJ n.º 54, 1956)”, daí resultando “claro que a redução das liberalidades inoficiosas só podia operar no âmbito do processo de inventário e bem assim que a tramitação do inventário era compatível com a caducidade do direito à redução”, e se esse texto do anteprojecto não veio a ser consagrado no art.º 2178º do Código Civil, antes ficando a constar do preceito em questão que a “acção de redução de liberalidades inoficiosas caduca dentro de dois anos, a contar da aceitação da herança pelo herdeiro legitimário”, tal só pode significar que o legislador tomou posição, no sentido de não aplicar tal prazo de caducidade à acção especial de inventário, mas apenas à acção declarativa comum, já que, de contrário, utilizaria o texto do anteprojecto ou, no limite, referia tão só o exercício do direito de redução, sem qualificar o meio processual apto a esse exercício.

Ou seja, verificando-se que os requerentes e a requerida são herdeiros legitimários e que a requerida é legatária de bens da herança, não é aplicável ao exercício do direito à redução desse legado por ofensa da legítima o prazo de caducidade a que respeita o art.º 2178º do Código Civil, face a tudo o acima exposto.

Pelo que, visando-se através do presente procedimento cautelar assegurar o exercício efectivo (e futuro) do direito em questão, através do arrolamento dos bens da herança que foram objecto de tal legado, logo se alcança que não se verifica a caducidade do exercício de tal direito, ainda que por via deste meio cautelar e provisório.

O que equivale a afirmar a improcedência das conclusões do recurso da requerida, no que respeita a esta questão da caducidade do direito dos requerentes à redução do legado por inoficiosidade."


*III. [Comentário] Conforme se refere no voto de vencido, em M. Teixeira de Sousa / C. Lopes do Rego / A. Abrantes Geraldes / P. Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil (Coimbra 2020), 124 s., acompanha-se a orientação que fez vencimento no acórdão.

MTS


06/11/2024

Jurisprudência 2024 (42)


Causa de pedir; alteração;
facto superveniente*


1. O sumário de RP 5/2/2024 (3389/20.1T8MTS-A.P1) é o seguinte:

I - O art.º 260.º do Código do Processo Civil consagra o princípio da estabilidade da instância, o que implica que, citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir.

II - No que se refere à causa de pedir, sendo alegados novos factos sucedâneos dos primeiros, suportados na mesma situação original, é de adotar uma interpretação flexível do art.º 265.º do C.P.C., considerando-se não existir ampliação da causa de pedir em sentido próprio.

III - É o que ocorre na situação em que na petição inicial os inquilinos invocam ausência de conservação de imóvel pelo senhorio, que ocasiona que precipitação abundante impeça a utilização plena do arrendado e cause estragos e sofrimentos, vindo, na pendência da ação, a reportar novo evento de pluviosidade, no mesmo contexto de omissão, ocasionador de novos prejuízos.

IV - Atentos os princípios da economia processual e do aproveitamento dos atos processuais, desde que respeitados os requisitos de superveniência dos factos ou do seu conhecimento, através de articulado superveniente, pode ser invocada uma nova causa de pedir.

V - O processo civil é conformado pelo princípio do dispositivo, mas este deve ser temperado por uma perspetiva flexível e substancialista que assegure uma tutela jurisdicional adequada à situação sob litígio.

VI - Por isso, é de apreciar a pretensão formulada pela parte que esta qualifica como correspondendo a ampliação do pedido, mas que respeita os requisitos próprios do articulado superveniente, sob esta perspetiva.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"IV - Subsunção jurídica [...]

b - Se o requerimento dos AA. deveria ter sido admitido nos termos formulados ou se o tribunal deveria ter usado dos seus poderes de gestão e de adequação processual para o convolar, sujeitando-o à disciplina do articulado superveniente.

Os recorrentes alegam, em síntese, que o seu requerimento deveria ter sido admitido por nos encontrarmos em face de pedido decorrente dos mesmos factos que consubstanciavam a causa de pedir primitiva.

Subjaz à pretensão recursória dos AA. a alegação de que houve lugar a ampliação do pedido, mas não da causa de pedir.

Vejamos se lhes assiste razão.

Nos termos do art.º 552.º/1/d) do C.P.C., é na petição inicial que devem ser expostos os factos que constituem a causa de pedir que servem de fundamento à ação.

O art.º 260.º do Código de Processo Civil consagra o princípio da estabilidade da instância, o que significa que após a citação do réu a instância deverá manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e causa de pedir, ressalvando, as exceções legalmente previstas.

No que se refere ao pedido e à causa de pedir, as exceções estão previstas nos arts. 264.º e 265.º do C.P.C..

Nos termos do disposto no art.º 264.º do C.P.C., a lei admite a alteração ou ampliação do pedido e da causa de pedir, por acordo das partes em qualquer altura, em 1.ª ou 2.ª instância, salvo se tal perturbar inconvenientemente a instrução, discussão ou julgamento do pleito.

Consigna, por seu turno, o art.º 265.º/1 que, na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor.

Nos termos do n.º 2 do art.º 265.º, o autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido ou pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.

Consigna o n.º 6 do mesmo art.º 265.º que é permitida a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir desde que tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida.

A propósito da ampliação do pedido, Alberto dos Reis (in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3.º, p. 93) ensinava: a ampliação há-de estar contida virtualmente no pedido inicial.

Em idêntico sentido vejam-se o ac. TRL de19/5/1994, proc. n.º 0070956 Rodrigues Condeço; o ac. TRL de 25/6/1996, proc. n.º 0012701, Guilherme Pires e o ac. TRL de18/1/2011, proc. n.º 271/09.7TBCDV-A. L1-1, Manuel Marques, todos consultáveis em www.dgsi.pt.

Constituem exemplo de ampliação em “consequência do pedido primitivo” a situação em que o autor pede a restituição de um imóvel, vindo depois a pedir uma indemnização pelo esbulho desse mesmo prédio e o caso em que o autor pede a condenação do réu no pagamento duma dívida, vindo posteriormente a pedir a condenação no pagamento de juros de mora. Trata-se de situações em que o autor poderia desde logo ter formulado a sua pretensão ampliada na petição inicial.

No caso dos autos, os AA. invocaram factos novos supervenientes ao termo dos articulados e formularam nova pretensão indemnizatória.

O pedido adicionalmente formulado não poderia estar, em sentido próprio contido no pedido primitivo, pelo simples motivo de que a segunda vaga de pluviosidade que terá conduzido ao desabamento de outros tetos e prejuízos inerentes ocorreu em momento ulterior ao da petição inicial. [...]

Em suma, não se poderá deixar de entender que houve lugar a ampliação do pedido. Mas fundar-se-á esta em ampliação da causa de pedir? Consubstanciarão, os eventos reportados pelos AA., referentes a uma vaga de precipitação, infiltrações e estragos posterior à data da entrada do processo em juízo, uma nova causa de pedir para os efeitos visados pelo art.º 265.º/1 do C.P.C.? É que, como se viu, nos termos do n.º 2 do art.º 265.º, o autor só poderá ampliar o pedido se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.

À luz do disposto no art.º 581.º/4 do C.P.C., considera-se como causa de pedir a factualidade, afirmada pelo autor, de que se faz derivar o efeito jurídico pretendido. De acordo com a teoria da substanciação, essa factualidade deverá traduzir o facto gerador do direito, individualizando o objeto do processo, de modo a prevenir a repetição da causa. Cabe ao autor definir o objeto da ação, formulando o pedido e a causa de pedir, indicando os factos concretos em que baseia a pretensão que quer acautelar. A causa de pedir constitui, afinal, o cerne da ação.

Na petição inicial, os inquilinos invocam ausência de conservação de imóvel pelo senhorio, que ocasiona que precipitação abundante impeça a utilização plena do arrendado e cause estragos e sofrimentos. Na pendência da ação, reportaram novo evento de pluviosidade, no mesmo contexto de omissão do dono do prédio, ocasionador de novos prejuízos. No primeiro dos casos, os eventos têm como área dominante da habitação o teto da sala. No segundo, o teto do quarto e da cozinha.

No ac. da Relação de Lisboa de 5/7/2018 (proc. n.º 1175/13.4T2SNT.B.L1-2, Arlindo Crua, também consultável em www.dgsi.pt, tal como os demais invocados, salvo indicação diversa) sustentou-se que se os factos invocados na ampliação se traduzirem em meros factos complementares duma causa de pedir complexa já alegada na petição inicial, como sejam a concretização de um dano já alegado, é processualmente admissível a ampliação do pedido, sem necessidade do consentimento da parte contrária.

Também no ac. da Relação de Évora de 10/10/2019 (proc. n.º 38/18.1T8VRL-A.E1, Cristina Dá Mesquita) se admitiu a ampliação do pedido que tenha essencialmente causas de pedir, senão totalmente idênticas, pelos menos integradas no mesmo complexo de factos.

Confira-se o sumário do ac. do STJ de 19-06-2019 (proc. 22392/16.0T8PRT.P1.S1, Oliveira Abreu, disponível em sumários do Supremo):

IV- Estando no âmbito de uma ação declarativa de indemnização por responsabilidade civil, em razão de acidente de viação sofrido pelo demandante, cuja causa de pedir é complexa, temos de convir que não é qualquer alteração dos factos alegados que importa uma modificação da respetiva causa de pedir da ação, pois, ao ter-se alegado factos concretos no articulado inicial com vista a demonstrar os danos causados pelo ato ilícito, cuja indemnização se reclama, temos a causa de pedir como definida, não se alterando, de todo, se o demandante se limita, em momento posterior aos articulados, e até à audiência final, acrescentar novos danos, reconhecendo-se, claramente, estes novos factos, enquanto factos destinados apenas a concretizar os danos decorrentes do facto ilícito, como factos que complementam os factos jurídicos donde emerge a pretensão jurídica deduzida, como factos que acrescentam outras dimensões do dano decorrente do ato ilícito que serve de fundamento à ação, sem que se possa afirmar, por isso, que a demanda passa a ter uma dissemelhante causa de pedir ou passa a estar sustentada em fundamento que antes não possuía.

Lê-se ainda no ac. da Relação do Porto de 27-1-2022 (proc. 1218/21.8T8AMT-A.P1): embora a lei não defina o que deve entender-se por “desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo”, a interpretação de tais conceitos deve orientar-se no sentido de a ampliação radicar numa origem comum. Esse é o entendimento que vem sendo sustentado na doutrina e na jurisprudência, ao defenderem que a ampliação do pedido será processualmente admissível, por constituir desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, quando o novo pedido (objeto de ampliação) esteja virtualmente contido no âmbito do pedido inicial, por forma a que pudesse tê-lo sido também aquando da petição inicial, ou da reconvenção, sem recurso a invocação de novos factos. Ou seja: a ampliação do pedido constitui o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo quando o pedido formulado esteja virtualmente contido no pedido inicial e na causa de pedir da ação, pressupondo-se, para tanto, que dentro da mesma causa de pedir o pedido primitivo se modifique para mais. [...]

Adota-se uma interpretação flexível do art.º 265.º do C.P.C.. Surgindo a nova pretensão como sucedânea da primeira, sendo suportada pela situação original que deu causa ao direito do autor, considera-se não existir verdadeira ampliação da causa de pedir.

No caso vertente, o núcleo de factos essenciais que dão causa à ação são os mesmos: aqueles que integram o estado de conservação deficitário da habitação dos AA..

Esta abordagem da questão afigura-se-nos, porém, em bom rigor, despicienda. Na verdade, a matéria alegada pelos AA. no articulado por si configurado como de ampliação do pedido consubstancia um verdadeiro e próprio articulado superveniente, nada impedindo que no âmbito deste haja lugar a ampliação do pedido. O pedido primitivo e o pedido adicional têm subjacentes o mesmo complexo de factos, ainda que a ampliação importe a alegação de factos novos. Esta situação encontra-se reconhecida na lei processual civil através do recurso ao articulado superveniente, bastando que se reporte a factos que revistam essa caraterística de superveniência, isto é, que ocorram ou sejam conhecidos posteriormente aos articulados, nos termos e prazos previstos.

Efetivamente, nos termos do disposto no art.º 588.º/1 do C.P.C. os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão.

Nos termos do n.º 2 do mesmo art.º, dizem-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tivesse conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência.

Leia-se no ac. da Relação de Lisboa de 22-02-2018 (proc. 1951/07.7TBTVD-A.L1-6, António Santos): a superveniência de que fala o dispositivo tanto pode ser a objetiva - quando os factos têm lugar já depois de esgotados os prazos legais de apresentação pela parte dos articulados -, como subjetiva, ou seja, quando os factos ainda que tenham tido lugar em momento anterior ao da apresentação pela parte do/s seu/s articulado/s, certo é que apenas chegaram ao seu conhecimento já depois de esgotados os prazos legais de apresentação dos aludido/s articulado/s.

Vem-se defendendo, por força do princípio do princípio da economia processual e do aproveitamento dos atos processuais, que, através do articulado superveniente, pode ser invocada uma nova causa de pedir (cf. José Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, p. 170, Coimbra Editora, p. 170, e Código de Processo Civil Anotado, 2001, p. 342 e Miguel Teixeira de Sousa, in As partes, o objeto e a prova na ação declarativa, pp. 189 e 190, 1990in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pp. 299-300, e também em blogippc.blogspot.pt).

Vejam-se ainda Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (in Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, 4.ª ed., p. 529): É (…) possível a modificação simultânea não só quando alguns dos factos que integram a nova causa de pedir coincidem com factos que integram a causa de pedir originária, mas também quando, pelo menos, o novo pedido se reporta a uma relação material dependente ou sucedânea da primeira (cf.).

É precisamente o que ocorre no caso vertente."

*3. [Comentário] Noutro lugar escreveu-se o seguinte:

"Não constitui [...] uma alteração da causa de pedir a alegação de um facto complementar superveniente (num articulado superveniente: cf. art. 588.º, n.º 1). Assim, por exemplo, é possível invocar novos danos decorrentes de um facto ilícito ou novos factos que indiciam as deficiências na construção de um imóvel apresentadas como causa de pedir [---] , sem submeter essa invocação aos requisitos estabelecidos pelo art. 265.º, n.º 1." (Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil I (2022), 464).

MTS