04/11/2024

Jurisprudência 2024 (40)


Sentença arbitral;
fundamentação; anulação


1. O sumário de RP 5/3/2024 (319/23.3YRPRT) é o seguinte:

I - O termo a quo de contagem do prazo de 60 dias para a dedução de ação de impugnação/anulação de sentença arbitral, previsto no nº. 6, do artº. 46.º, da Lei nº. 63/2011, de 14/12, é sempre a notificação duma decisão dos árbitros, seja ela a sentença que decidiu o litígio arbitral, seja a decisão (despacho) de retificação, esclarecimento, aclaração ou completamento daquela, proferida a requerimento de uma parte, nos termos do artº. 45.º, do mesmo diploma.

II - Estando-se perante um prazo diretamente relacionado com outra ação, cujo decurso tem fundamentalmente um efeito de natureza processual, impossibilidade de questionar a integridade do decidido quanto ao tribunal arbitral, processo por este adotado e a integridade da decisão por ele proferida, em confronto com os princípios, regras e valores fundamentais do ordenamento jurídico, e não o efeito extintivo de um direito material, tal prazo deve considerar-se de natureza processual ou judicial, suspendendo-se durante as férias judiciais.

III - Estabelece-se no art.º 42.º, nº 3 da LAV que “a sentença deve ser fundamentada, salvo se as partes tiverem dispensado tal exigência ou se trate de sentença proferida com base em acordo das partes, nos termos do art.º 41.º”, pelo que, tal como sucede com a decisão judicial, também aqui se exige que o Tribunal Arbitral fundamente a sua decisão em termos de facto e de direito.

IV - Nesta conformidade, não obstante a amplitude do dever de fundamentação das decisões arbitrais não possa ser definida por decalque do dever sinónimo aplicável às sentenças dos tribunais estaduais, devendo ter em conta as especificidades do processo arbitral e os seus objetivos de celeridade, simplicidade e informalidade, ainda assim a fundamentação deve, em qualquer caso, ter o conteúdo mínimo exigível que permita apreender o sentido, as razões e o percurso racional seguido pelo árbitro na interpretação dos meios de prova.

V - Por assim ser o vício de nulidade por falta de fundamentação [art.º 46º, nº 3, al. a), vi) da LAV] da sentença arbitral - invocável através da ação de anulação - só pode ser declarado nos casos em que exista a falta absoluta de motivação. Sempre que a motivação seja deficiente deve essa deficiência ser suprida através de recurso.

VI - Está suficientemente fundamentada a decisão arbitral que enuncia, de forma perfeitamente inteligível e apreensível pelos respetivos destinatários, os fundamentos factuais e normativos da decisão, tornando percetível o iter lógico jurídico seguido na resolução do litígio.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Preceitua o artigo 42.º, n.º 3, da Lei da Arbitragem Voluntária que a sentença arbitral “deve ser fundamentada, salvo se as partes tiverem dispensado tal exigência ou se trate de sentença proferida com base em acordo das partes, nos termos do artigo 41.º”.

Por sua vez o artigo 15.º do Regulamento do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto, estabelece que a “sentença arbitral deve conter um sumário, ser fundamentada e conter a identificação das partes, a exposição do litígio e os factos dados como provados”.

Ora, nenhum destes incisos densifica aquilo sobre o que se deve entender por fundamentação da sentença arbitral.

Segundo as regras processuais estaduais, constantes do Código de Processo Civil, a fundamentação da decisão é de facto ou de direito.

A fundamentação de facto consiste na especificação dos factos que o tribunal julgou provados e aos quais vai de seguida aplicar o direito para concluir pelo dispositivo. A fundamentação de direito consiste na indicação, interpretação e aplicação das normas e princípios de direito aos factos provados e na formulação ao silogismo judiciário que há de conduzir ao dispositivo.

O artigo 154.º do Código de Processo Civil estabelece o “dever de fundamentar a decisão”, prescrevendo que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”. O n.º 2 da mesma norma, sem concretizar o modo como essa fundamentação deverá ser feita estabelece, pela via negativa, que a fundamentação “não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.

É, depois, o artigo 607.º desse diploma que ao definir o conteúdo da sentença nos dá mais indicações sobre o âmbito da fundamentação.

Nos termos do n.º 3 do citado preceito, a sentença deve apresentar os respetivos “fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicaras normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final”.

Por sua vez o n.º 4, na parte dedicada à fundamentação da sentença estatui que o juiz deve declarar os factos que julga provados e os que julga não provados, “analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.

Constitui entendimento doutrinário e jurisprudencial pacífico que só a absoluta falta de fundamentação produz a nulidade da sentença, devendo distinguir-se as situações em que a fundamentação existe, mas é insuficiente, lacunosa ou errada, e as situações em que a fundamentação foi pura e simplesmente suprimida (ou cujas deficiências atingem um nível tal que a situação deve ser tratada como falta de fundamentação) e que são as únicas que podem conduzir à nulidade da sentença.

De todo o modo, a Constituição da República Portuguesa consagra no artigo 205.º, n.º 1, o dever de fundamentação das decisões decorre ao estabelecer que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

O Prof. Gomes Canotilho [in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 4.ª Edição, 2000, pág. 65.], afirma que esta exigência constitucional é justificada pela necessidade de exercer o controlo da administração da justiça, excluir o carácter voluntarístico e subjetivo do exercício da atividade jurisdicional, permitir o conhecimento da racionalidade e da coerência argumentativa dos juízes, permitir o melhor exercício do direito ao recurso ao dar às partes um recorte mais preciso e rigoroso dos vícios das decisões judiciais recorridas. [Alguns autores acentuam, e bem, que “mais do que uma imposição constitucional, a exigência de fundamentação das decisões integra o elenco de princípios concretizadores do processo justo (muitas vezes designado “due process of law”), que tem como conteúdo fundamental a conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela jurisdicional efetiva” (cfr. Diogo Cunha, in Da forma, conteúdo e eficácia da sentença arbitral, Themis, ano XV, n.ºs 26/27, 2014, pág. 218, Patrícia Pereira, in Fundamentos de anulação da sentença arbitral, O Direito, 142, 2010, V, pág. 1081).]

É discutível se o dever de fundamentação deve ter a mesma densidade na sentença arbitral que na sentença de um tribunal estadual.

Ora, importa desde logo, salientar que a LAV não exige uma fundamentação idêntica à do artigo 607.º do CPCivil-não se exige qualquer tipo específico de fundamentação nem se impõe que sejam expressamente considerados todos os argumentos jurídicos invocados pelas partes.

Portanto, “a tendência jurisprudencial claramente dominante é no sentido de que o grau de fundamentação exigido seja menor do que é a prática corrente nas sentenças judiciais (...). É prudente inserir alguma fundamentação para evitar riscos de anulação ou de recusa de exequátur[Vide Dário Moura Vicente, Armindo Ribeiro Mendes, e Outros, in Lei da Arbitragem Voluntária Anotada, 2º edição, 2015, Almedina, pág. 111.] [...]

A nosso ver, a definição da amplitude do dever de fundamentação das decisões arbitrais não pode ser feito de modo absolutamente decalcado do dever sinónimo aplicável às sentenças dos tribunais estaduais; importa ter em conta as especificidades do processo arbitral e os seus objetivos de celeridade, simplicidade e informalidade, ou seja, tudo se reconduz a que a invocação do citado vício deve ser visto caso a caso, isto é, verificando-se se a fundamentação tem no caso o conteúdo mínimo exigível aferido em função da necessidade de apreensão do sentido, das razões e do percurso racional seguido pelo árbitro na interpretação dos meios de prova, mas também da complexidade dos factos em discussão e do volume de prova produzida.
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Apliquemos agora esta interpretação jurídica ao caso concreto.

Como decorre da decisão arbitral nela foram especificados os factos concretos integradores da exceção da caducidade do direito de ação invocada pela Reclamada e feito o respetivo enquadramento jurídico.

Portanto, analisada a dita sentença, não parece que se possa considerar verificada a invocada nulidade.

A decisão proferida e cujo mérito não cabe sindicar nos presentes autos [A impugnação da decisão arbitral somente se pode fazer “através do pedido da sua anulação, e nos estritos e taxativos fundamentos do artigo 46.º da Lei da Arbitragem Voluntária, os quais se assumem como vícios ou irregularidades “a latere” do objeto/mérito do litígio, deste modo, em sede de impugnação da sentença arbitral, está vedada a apreciação do mérito, não comportando a presente ação de anulação a reapreciação da prova produzida com vista à alteração da decisão sobre a matéria de facto.] é perfeitamente clara e inteligível e encontra-se suficientemente fundamentada, nos planos factual e jurídico, sendo integralmente percetível o iter lógico jurídico que nela se seguiu para apreciação da invocada exceção da caducidade do direito de ação, cumprindo consequentemente, em termos satisfatórios, as exigências legais e constitucionais do dever de fundamentação das decisões judiciais (cfr. artigos 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e 154.º do CPCivil).

Do mesmo modo, a operada indicação dos factos provados e dos meios de prova que lhes serviram de sustentáculo, satisfaz o imperativo constitucional e processual da fundamentação da decisão (artigos 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e 154.º do CPC).

E, por isso, não se mostrando violadas as normas da LAV, especificadas pelo Requerente como fundamento da pretensão anulatória, nem a exigência constitucional (e da lei ordinária) de fundamentação das decisões judiciais, tem de improceder a peticionada anulação da decisão arbitral."

[MTS]