21/04/2025

Jurisprudência 2024 (152)


Venda executiva;
anulação; direito de preferência*


1. O sumário de RL 11/7/2024 (2507/07.0TBAMD-G.L1-2) é o seguinte:

I – A anulação da venda executiva prevista no artigo 838º, CPC ocorre em caso de erro acerca do seu objeto ou de desconformidade material relativamente às caraterísticas anunciadas do bem vendido.

II – Tal regime, que constitui um meio de tutela do comprador, dispensa os requisitos exigidos pelo artigo 247º, CC, para a anulação da declaração negocial designadamente, a essencialidade do elemento sobre o qual incidiu o erro e o seu conhecimento ou cognoscibilidade pelo declaratário.

III – A omissão da notificação do arrendatário habitacional para exercer o seu direito de preferência na venda executiva da fração arrendada não determina a nulidade ou anulação de tal ato, gerando apenas a faculdade de interpor ação de preferência.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Na decisão do presente recurso, serão ponderados os factos que a decisão de primeira instância considerou provados, bem como os que resultam da consulta dos autos e que se aditam, nos seguintes termos:

“Nos presentes autos de execução foi penhorada, em 13.11.2009, a fração “… que respeita ao ...º andar A, com 2 arrecadações (cf. certidão de teor predial: “NONO ANDAR - A, com 2 arrecadações na sub-cave”), do prédio sito na R…, n.ºs… . C, descrito na 2.ª CRP da Amadora com o n.º … (AP. … de 2009/10/…), cuja aquisição, por compra, se mostrava registada, à data da penhora, a favor de “C Casado/a com B (AP. … de 2009/10/…), fração da qual faz parte integrante a arrecadação correspondente à sub- cave B, relativamente à qual veio a Interveniente Acidental invocar contrato de arrendamento.

A referida fração “…” que foi colocada em venda, mediante abertura de propostas em carta fechada no dia 05/04/2011, pelas 9:30.

Notificado da modalidade da venda pretendida, o executado proprietário da supra indicada fração, B, na pessoa da sua mandatária, Sra. Dra. H, nada disse quanto a uma eventual ocupação desta e/ou das arrecadações que da mesma fazem parte.

Por vicissitudes ocorridas nos autos, substituiu-se o Sr. Agente de Execução.

Em 21/01/2021, a Sra. Agente de Execução entretanto designada decidiu, de novo, sobre a modalidade de venda e valor base, atualizando-o, em face do tempo, entretanto, decorrido: “serão aceites propostas iguais ou superiores a 85% do valor base de €103.940,00” – cf. decisão da Sra. Agente de Execução de 21/01/2021 que, notificada ao executado B, mais uma vez, nada disse.

Em 19/01/2023 (hiato de tempo justificado pelo regime jurídico vigente aquando da pandemia de Covid-19), a Sra. Agente de Execução procedeu às notificações sobre o início do leilão on-line para compra da identificada fração, cujo encerramento foi agendado para 01/03/2023, pelas 10:30.

Em tais notificações não foi efetuada qualquer alusão à existência de um contrato de arrendamento relativo à sub cave B;

A ora requerente não foi notificada no processo de publicitação da venda, na qualidade de arrendatária, para exercer direito de preferência em tal venda executiva.

Em 13/03/2023 foi indicada a melhor proposta obtida: D, pelo valor de €133.320,00, o qual, mediante carta de 18/04/2023, foi notificado para efetuar o pagamento do preço.

Em 20/04/2023 a Sra. Agente de Execução procedeu à alteração do adquirente para a sociedade E, Lda., empresa da qual o referido proponente é sócio-gerente.
Em 06/06/2023 foi, então, emitido o título de transmissão, do qual consta que “o bem é transmitido ao adquirente livre de quaisquer ónus ou encargos, conforme determina o n.º 2 do artigo 827.º do Código de Processo Civil.”

Logo em seguida, notificada a (alegada) ocupante da fração “CG” (F) para entregá-la, esta recusou-se a fazê-lo – cf. notificação da Sra. Agente de Execução de 07/06/2023 e requerimento da adquirente de 26/09/2023.

Pelo que, foi autorizado o uso da força policial – cf. despacho de 15/10/2023.

A 14/12/2023 o Sr. Agente de Execução encarregue da diligência mudou a fechadura da porta de entrada do 9.º andar A.

Tendo sido agendada a tomada de posse efetiva das sub-caves A e B para o dia 25/01/2024, pelas 9:30 – cf. notificação da Sra. Agente de Execução de 04/01/2024, remetida designadamente a F, alegada filha da Interveniente.

Ao longo de todo processo, nomeadamente nas fases da penhora e venda do imóvel em causa, nunca foi dado conhecimento aos autos de qualquer contrato de arrendamento que onerasse a “… ANDAR - A, com 2 arrecadações na sub-cave”.

Da nulidade da venda executiva

A controvérsia no âmbito dos presentes autos radica na venda da fração “…” respeitante ao …º andar, do prédio sito na Rua …, nº … a …, descrito na Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o nº …. Tal prédio integra duas arrecadações, uma das quais correspondente à subcave …, relativamente à qual a recorrente invoca ser arrendatária. Na sua perspetiva, dado que a venda foi publicitada sem qualquer menção a tal contrato de arrendamento, e que não lhe foi conferida preferência em tal negócio, o mesmo mostra-se ferido de nulidade.

Constituindo função da ação executiva a realização de uma determinada prestação que se mostre certa, líquida e exigível constante de um título executivo, desenvolve-se por diversas fases até à sua extinção. Uma dessas fases é constituída pela “venda executiva” em que se procede à venda dos bens penhorados, afetando o produto da venda ao pagamento da obrigação exequenda (e das obrigações que forem julgadas verificadas e graduadas no apenso da verificação de créditos).

O arrendatário de prédio urbano ou de fração autónoma, nos termos do artigo 1091º nº 1, alínea a) CC tem direito de preferência: “na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos (…)”.  Já do nº 8 daquela norma resulta que: “No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fração autónoma, a exercer nas seguintes condições:

a) O direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão;

b) A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º deve indicar os valores referidos na alínea anterior;

c) A aquisição pelo preferente é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado.”

Daí que se venha entendendo que o direito de preferência conferido ao arrendatário está confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento – neste sentido se pronunciou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-10-2022 [---].

 Com vista ao exercício de tal direito: “Os titulares do direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, na alienação dos bens são notificados do dia, da hora e do local aprazados para a abertura das propostas, a fim de poderem exercer o seu direito no próprio ato, se alguma proposta for aceite” - cfr. artigo 819º, nº 1, CPC. Tal notificação, à qual se aplica as regras da citação, nos termos do artigo 819º, nº 3, CPC, será efetuada, em regra, na sequência de indicação do exequente, nada obstando, também que resulte de iniciativa do executado, do agente de execução ou mesmo de qualquer credor reclamante – neste sentido Fernando Amâncio Ferreira [Curso de Processo de execução, pág. 341]

No caso em apreço, não foi efetuada esta notificação, o que, na perspetiva da recorrente constitui fundamento para a anulação da venda executiva.

A venda executiva é anulável nas situações previstas nos artigos 838º e 839º, CPC.

A tal propósito, sob a epígrafe “Anulação da venda e indemnização do comprador”, dispõe o artigo 838º, nº 1, CPC:

1 - Se, depois da venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, o comprador pode pedir, na execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito, sem prejuízo do disposto no artigo 906.º do Código Civil”.

Nesta norma encontra-se prevista a anulação da venda executiva em situações de erro acerca do seu objeto (possuindo este ónus ou limitações não tomados em consideração) ou por existência de desconformidade material relativamente às caraterísticas anunciadas.

O regime consagrado no artigo 838º CPC dispensa os requisitos exigidos pelo artigo 247º CC para a anulação da declaração negocial, designadamente a essencialidade para o declarante do elemento sobre o qual incidiu o erro e o seu conhecimento ou cognoscibilidade pelo declaratário. Consequentemente, para a anulação da venda é apenas necessária a demonstração de que o ónus ou limitação não foi considerado ou que a identidade ou as qualidades do bem vendido não coincidem com as que foram anunciadas - José Lebre de Freitas [A ação executiva depois da reforma da reforma, 5ª edição, Coimbra Editora, p. 342 e 343], e Mota Pinto [Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª ed., pág. 507.], M. Teixeira de Sousa [Ação executiva Singular”, pág. 396.].

E como se refere no sumário do acórdão da Relação de Coimbra de 28-02-2023 [---]:

1. – No âmbito da invalidade da venda executiva, a que alude o disposto no art.º 838.º, n.º 1, do NCPCiv., relativamente a direitos transmitidos com sujeição a ónus ou limitações que excedam os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, integram-se os denominados vícios do direito, por oposição aos vícios da coisa (os que afetam a coisa em si mesma).

2. – É suscetível de constituir (…) «vícios do direito», entre outros, a existência de direitos pessoais sobre a coisa, desde que eficazes em relação ao comprador, como é o caso da locação, a que é equiparável, para este efeito, a existência de um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial a funcionar no imóvel objeto da venda executiva.”
 
Assim, a venda executiva na qual não foi feita qualquer menção (designadamente na fase da sua publicidade) a contrato de arrendamento que onere a fração transmitida, é suscetível de se reconduzir à previsão do preceito ora em análise, podendo fundamentar a anulação do negócio.

Porém, analisando a concreta questão em debate nos autos, desde logo importa clarificar que se mostra controvertida a existência e validade do contrato de arrendamento que a recorrente invoca como fundamento da preferência (efetivamente, ao longo de toda a tramitação dos autos até à fase final da venda, não foi feita qualquer alusão à existência de tal vínculo, que foi impugnado pela exequente). Assim, não pode concluir-se, no atual estado dos autos, de forma segura e inequívoca, pela vigência de qualquer contrato de arrendamento, e assim pela existência de um ónus ou limitação à fração em causa.

Afigurando-se que não é a sede executiva o local próprio para dirimir tal controvérsia sobre a efetiva existência na esfera jurídica da recorrente do direito de preferência que invoca (a sede adequada será a da ação – declarativa - de preferência), mais decisiva é a questão de a legitimidade para a arguição da nulidade da venda executiva por erro no bem transmitido, decorrente da existência de desconformidade relativamente ao que foi anunciado, estar reservada ao comprador.

A este propósito, refere Lebre de Freitas [A ação executiva, 7.ª edição, 2017, págs. 397-398] que os dois primeiros fundamentos de anulação da venda executiva, constantes do artigo 838º, nº 1, CPC, visam a tutela do comprador e, consequentemente, encontram-se na sua exclusiva disponibilidade. Consequentemente, não se encontra a recorrente legitimada a, com base naquele preceito, arguir a nulidade da venda. Neste sentido, se pronunciaram os acórdãos da Relação de Lisboa de 21-02-2019 [---], da Relação de Guimarães de 23-04-2020 [---] e de 13-07-2022 [---]

Com interesse para o caso presente, reitera-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-07-2021 [---] que a anulação da venda nos termos do artigo 838º, CPC, constitui um meio de tutela do comprador e que: “ Nesse sentido, essa tutela é extensível ao remidor ou ao preferente que exerçam o respetivo direito e exclusivamente nesse pressuposto, conclusão que se afigura evidente, por força da operação de substituição a que já se aludiu.” Ou seja, tendo o exercício do direito de preferência como efeito a substituição do adquirente, apenas operada tal substituição (ou seja, apenas depois de exercido o direito de preferência) é reconhecido ao preferente o direito de anular a venda, ponderando já não a sua veste de preferente, mas sim a de adquirente.

Certo é que não tendo ainda a recorrente exercido o direito de preferência que invoca, não possui legitimidade para, com base no regime consagrado no artigo 838º, CPC, arguir a anulabilidade da venda executiva.

Acresce que, com interesse para o presente caso, resulta do disposto no artigo 839º, nº 1, alínea c), CPC, que a venda executiva poderá ficar sem efeito se for anulado o respetivo ato. Ou seja, para além do caso especial de anulação previsto no artigo 838º, nº 1, CPC, poderá ser aplicável o regime geral de anulação, como resulta da conjugação das referidas normas (artigo 839º, nº 1, alínea c) e 195º, nºs 1 e 2, CPC). Nesta hipótese, por invalidade processual, poderá ser anulado o próprio ato da venda, ou pode tal nulidade decorrer da anulação dos atos anteriores - Lebre de Freitas [Ob. Cit. pág. 402].

Porém, para que opere tal fundamento de nulidade é necessário que a lei expressamente comine com nulidade a irregularidade cometida, ou que a mesma possa influir no exame ou na decisão da causa – cfr. artigo 195º, nº 1, CPC.

Ora, em caso de falta de notificação do preferente, expressamente prevista no artigo 819º, CPC, como ainda com atualidade refere Alberto dos Reis [Processo de Execução, Vol. II, 2ª reimpressão, pág. 344], citado na decisão recorrida: “O preferente fica com o direito de propor contra o comprador (…) a chamada ação de preferência”. Assim, tal omissão não determina a nulidade do ato, gerando na esfera jurídica do preferente a faculdade de intentar no prazo e condições legais a competente ação de preferência – neste sentido acórdão da Relação de Évora de 13-12-2011 [---].

Conclui-se, pois que a falta de notificação do arrendatário para exercer o seu direito de preferência não gera a nulidade da venda executiva.

Por fim, dado o seu acerto, reitera-se o afirmado na decisão recorrida no que se reporta à falta de menção nos editais e anúncios que publicitaram a venda à existência do arrendamento: “No que concerne à consequência da omissão da referência à existência de arrendamento no anúncio e edital que publicitou a venda entendemos que a mesma, por maioria de razão, não consubstancia nulidade. Acresce que tal omissão não influi no exame ou na decisão da causaUma vez que os direitos do preferente ficam sempre salvaguardados através da instauração da ação de preferência (…) Revertendo ao caso em apreço, ainda que se admita a existência de contrato de arrendamento – o que é impugnado pelo exequente (não sendo, esta, a sede para discutir a sua existência) –, como o alegado arrendamento não foi comunicado atempadamente aos autos nem à Sra. Agente de Execução, a mesma não procedeu à notificação da alegada preferente, nem fez menção do mesmo no anúncio e edital, o que não lhe é censurável.

Contudo, como deixamos dito, tais omissões não consubstanciam qualquer nulidade processual que conduza a que o ato da venda fique sem efeito”.

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3. [Comentário] Se não faz sentido que o terceiro preferente que não foi notificado possa recorrer à invocação da nulidade processual, nada impede que esta nulidade seja invocada pelo executado, dado que esta parte "tem interesse na eventual licitação entre os proponentes e os preferentes e entre vários preferentes" (Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil II (Lisboa 2022), 935 s.). 

MTS