12/05/2025

Jurisprudência 2024 (164)


Restituição provisória da posse;
cedência da posse


I. O sumário de RL 24/9/2024 (2116/24.9T8ALM.L1-7) é o seguinte:

1. A afirmação contida no art. 1267.º, n.º 1, al. c), do CC, de que «o possuidor perde a posse (...) pela cedência», configura um modo de perda da posse que tem como pressuposto a celebração de um negócio jurídico pelo qual o possuidor transfere para outrem a sua posse, não sendo necessário que esse negócio seja válido de um ponto de vista formal.

2. A cedência traduz a outra face da tradição e, tal como ela, também pode ser material ou simbólica.

3. Uma declaração em que a proprietária de um prédio afirma que «(…) vem autorizar que seja retirada a área de 26,00 m2 a ceder ao proprietário vizinho, e que a mesma fique a fazer parte integrante do limite da intervenção do projeto conforme IPE __/__, a correr na Câmara Municipal de Almada, a fim de se proceder à integração e cedência da área, no domínio público municipal» é insuscetível de operar, só por si, a transmissão da posse da parcela de terreno nela referida, se não ficar demonstrada a sua tradição, material ou simbólica.

4. No entanto, a colocação daquela parcela fora do comércio impede que ela seja restituída, provisória ou definitivamente, à posse da requerente.

5. É que a colocação de uma coisa fora do comércio tem por efeito a impossibilidade de essa coisa poder continuar a ser objeto de situações jurídico-reais, incluindo a posse, pois que, após adquirir esse estatuto, a coisa torna-se insuscetível de apropriação individual, nos termos do art. 202.º, n.º 2, do CC), situação que ocorrerá sempre que a coisa seja afeta à satisfação do interesse público.

6. Trata-se, afinal, de uma situação de «perda jurídica» da coisa, uma vez fora do comércio, não sendo possível estabelecer, sobre ela, situações jurídicas, entre as quais, a posse (arts. 202.º, n.º 2 e 1251.º, do CC).


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"3.2.2 – Enquadramento jurídico:

Está provado que no dia 7 de fevereiro de 2022, «a Requerente subscreveu uma declaração nos seguintes termos: «(…) vem autorizar que seja retirada a área de 26,00 m2 a ceder ao proprietário vizinho, e que a mesma fique a fazer parte integrante do limite da intervenção do projeto conforme IPE __/__, a correr na Câmara Municipal de Almada, afim de se proceder à integração e cedência da área, no domínio público municipal».

Afirma-se na decisão recorrida:

«Todavia, a dona do terreno subscreveu uma Declaração na qual autoriza a integração da área em discussão na obra a realizar, Declaração esta que foi entregue ao promotor da obra.
Assinalamos, com respeito a esta Declaração, que:

- dela não consta qualquer condição;
- não foi invocado qualquer vício da vontade;
- não foi revogada.

Importa ainda assinalar que quando se estabelece a perda da posse por cedência, na al. c) do n.º 1 do art. 1267.º do CC, do que se está a falar é, designadamente, de tradição (...).

É certo, por fim, que não está provado que a Requerente conhecesse os projetos de licenciamento, mas em bom rigor e atendendo a que o filho da Requerente a representa na gestão deste assunto, se alguma falha tiver eventualmente ocorrido na transmissão da informação, ela situar-se-á no plano das relações internas entre representante e representado, pelo que não releva para este efeito.

Deste modo, operou-se, efetivamente, a transmissão da posse para a Requerida RE.

Consequentemente, não há esbulho, devendo ser revogada a providência cautelar decretada».

Não podemos, com ressalva do devido respeito, concordar com tal conclusão!

Dispõe, efetivamente, o art. 1267.º, n.º 1, al. c), do CC, que «o possuidor perde a posse (...) pela cedência».


A cedência traduz a outra face da tradição e, tal como ela, também pode ser material ou simbólica.

Conforme afirma Armando Triunfante, «a cedência da posse pretende representar todos os casos de transmissão derivada da posse, hipóteses essas em que a aquisição da posse se dará reunindo também o consenso do anterior possuidor. Assim o novo possuidor adquire a posse por tradição, constituto possessório ou traditio brevi manu (...), enquanto o anterior a perde por cedência.

Em todos os casos de cedência deverá haver um negócio jurídico que permita a constituição ou transmissão de um direito real. A posse é transmitida, ainda que o referido negócio não seja válido (...). Em alguns dos casos esse negócio será suficiente para produzir a cedência da posse e a transmissão da mesma. Essas hipóteses são o constituto possessório (em qualquer uma das suas modalidades) e a traditio brevi manu. No entanto, para as demais hipóteses a cedência, embora pressupondo o referido negócio jurídico, não ocorre com o mesmo, implicando sempre um ato adicional, ou seja, a tradição (nas suas diferentes modalidades). Nestes casos será a tradição a operar a cedência da posse, uma vez que se esta não acontecer, o negócio jurídico que a legitima, por si só, não pode operar a perda (e consequente aquisição) da posse» [Comentário ao Código Civil – Direito das Coisas, Universidade Católica Editora, 2021, p. 59.]

Pires de Lima / Antunes Varela afirmam que a lei supõe, no caso da cedência, «a celebração de um negócio jurídico pelo qual o possuidor transmite a outrem a sua posse. Esses negócios são, em geral, translativos do domínio ou constitutivos de um direito real em benefício de terceiro. De notar, porém, que o antigo possuidor, embora perca a sua posse pela cedência, só excepcionalmente a transmite para o adquirente por força do contrato. Para tal (...), é necessário, em princípio, a tradição material ou simbólica da coisa» [Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1987, p. 33. No mesmo sentido, Rui Januário/Filipe Lobo D’Ávila/Luís de Andrade Pinhel, Direito Civil-Direito das Coisas, Petrony, 2018, pp. 680-681, que acrescentam qua «a cedência por ato translativo do domínio, tanto pode ser por título oneroso (caso da compra e venda), como por título gratuito (caso da doação)».]

José Bonifácio Ramos, por sua vez, após considerar que a cedência consiste numa «causa de extinção possessória que deriva de determinadas causas aquisitivas, v.g. a tradição, o constituto possessório ou a sucessão na posse», afirma que «a transmissão da posse, por via daqueles modos aquisitivos, prefigura uma extinção da posse, por cedência, do anterior possuidor. Deste modo, não parece que se faça supor a celebração de um negócio jurídico, pelo qual se transmite a outrem a posse.

Basta proceder à entrega que pode ser material ou simbólica. Ou até, por da transmissão do direito, implicar a transferência da posse. Será o caso do constituto possessório, onde nem se afigura imprescindível qualquer entrega, sendo suficiente a celebração do negócio jurídico translativo. Assim, se a cedência corresponde à traditio, não se encontra sujeita a uma formalidade especial. Por seu turno, a cedência correspondente ao constituto possessório pode ser determinada no contrato que opere aquele modo de constituição da posse» [Manual de Direito Reais, AAFDL Editora, 2017, pp. 180-181.]

À luz destes considerandos, mesmo segundo o entendimento deste último Autor, facilmente se conclui que a simples declaração emitida pela requerente, acima transcrita (cfr. ponto 60. dos factos indiciariamente provados) não teve a virtualidade de operar, só por si, a transmissão para a 1.ª requerida, da posse da parcela de terreno referida na dita declaração, pois não está demonstrada a sua tradição, material ou simbólica.

Conclui-se, assim, que por via da dita declaração não se operou a transmissão, da requerente para a 1.ª requerida, da posse daquela parcela.

Significa isto que deve ser revogada a decisão recorrida e repristinada a decisão proferida no dia 24 de março de 2024 (Ref.ª 34127328), que decretou a providência requerida?

A resposta é negativa!

Dispõe o art. 1267.º, n.º 1, al. b), do CC, que «o possuidor perde a posse (...) pela perda ou destruição material da coisa ou por esta ser posta fora do comércio».

Conforme escreve Armando Triunfante, «a colocação da coisa fora do comércio tem por efeito a impossibilidade de essa coisa poder continuar a ser objeto de situações jurídico-reais, incluindo a posse. Com efeito, depois de adquirir esse estatuto a coisa torna-se insuscetível de apropriação individual (artigo 202.º, n.º 2). Essa situação vai ocorrer sempre que a coisa seja afeta à satisfação do interesse público (...)» [Comentário cit., p. 59.]

Trata-se, na feliz expressão de Rui Januário/Filipe Lobo D’Ávila/Luís de Andrade Pinhel, de uma situação de «”perda jurídica” da coisa, uma vez fora do comércio, não sendo possível estabelecer, sobre essa coisa, situações jurídicas, entre as quais, a posse» [Direito Civil cit., p. 683.]

Em suma, como esclarecidamente afirmam Pires de Lima / Antunes Varela, «sendo a coisa posta fora do comércio, ela deixa de ser objeto de posse, por força dos artigos 202.º, n.º 2, e 1251.º» [Código Civil cit., p. 35.]

No caso sub judice está indiciariamente provado que:

«[...] 54. Já em 2021, a Requerida RE decidiu apresentar um segundo PIP, envolvendo os mesmos prédios, agora apenas para a construção de um supermercado e de um estabelecimento de “fast food”, em dois lotes (19º oposição).

56. Este segundo PIP envolvia igualmente o reperfilamento dos passeios e a construção de uma rotunda, exigindo apenas a utilização de uma parcela de 26 m2 de terreno do prédio da Requerente em discussão nos autos (22º oposição). [...]

60. Em 7 de fevereiro de 2022, a Requerente subscreveu uma declaração nos seguintes termos: «(…) vem autorizar que seja retirada a área de 26,00 m2 a ceder ao proprietário vizinho, e que a mesma fique a fazer parte integrante do limite da intervenção do projeto conforme IPE __/__, a correr na Câmara Municipal de Almada, afim de se proceder à integração e cedência da área, no domínio público municipal». (27º oposição). [...]»

A descrita factualidade não deixa dúvidas, a nosso ver, de que à data da instauração deste procedimento cautelar de restituição provisória da posse, a parcela de terreno que constitui o seu objeto já estava fora do comércio; ou seja, à data da instauração deste procedimento cautelar de restituição da posse, a  requerente já havia perdido a posse da parcela de terreno a que agora pretende ser restituída.

Em conclusão, encontrando-se extinta, à data da instauração deste procedimento cautelar, a posse da requerente sobre a parcela de terreno que constitui o seu objeto, falta, desde logo, o primeiro dos requisitos de que depende a sua procedência: a existência da posse."

[MTS]