07/10/2025

Jurisprudência 2024 (241)


Processo de inventário;
remessa para os meios comuns


1. O sumário de RC 11/12/2024 (132/20.9T8OHP-A.C1) é o seguinte:

I – Nas questões relativas à determinação dos bens/direitos que integram o património comum a partilhar a regra é a de que o juiz deve dirimir todas as questões suscitadas controvertidas que se revelem indispensáveis para alcançar os fins do processo.

II – Apenas se justifica a remessa dos interessados para os meios comuns quando, estando em causa a complexidade da matéria de facto, a tramitação do processo de inventário se revele inadequada, por implicar uma efetiva diminuição das garantias que estão asseguradas às partes no processo comum.

III – Não deve ser remetida para os meios comuns a questão da averiguação da titularidade de saldos bancários ou aplicações financeiras se tal não envolver larga ou extensa averiguação fáctica e se a apreciação da mesma em sede de inventário não acarretar uma redução das normais garantias das partes.

IV – No inventário para a partilha de bens comuns subsequente a divórcio devem ser relacionados não apenas os bens existentes no património coletivo do casal à data da propositura da ação de divórcio (caso os seus efeitos patrimoniais não devam retrotrair a momento anterior), mas também aqueles que a esse património cada cônjuge deva conferir, por lho dever.

V – Assim, deve ser conferido ao património comum do casal, para ulterior partilha, aquele bem ou direito de que um dos cônjuges se apropriou sem que a tal tivesse qualquer direito, dessa forma logrando um enriquecimento do seu património próprio à custa do património coletivo.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A apelante não se conforma com a decisão recorrida, sustentando que o Tribunal a quo dispunha de todas as condições para, deferindo parcialmente à reclamação contra a relação de bens, decidir que devem ser relacionados dois dos produtos financeiros identificados no ponto 19º da sua reclamação contra a relação de bens - a aplicação de depósito no banco Banco 1... e a aplicação Banco 2... VIDA AFORRO – pelo que, na parte correspondente, não poderia ter sido decidida a remessa das partes para os meios comuns.

Questiona assim a bondade da decisão que remeteu as partes para os meios comuns somente no que se refere à questão da reclamada obrigação de relacionar o saldo bancário do Banco 1... e o valor das aplicações financeiras Banco 2... VIDA AFORRO, que identifica naquele ponto n.º 19 da sua reclamação contra a relação de bens.

Para o efeito, sustenta que, perante a factualidade que foi considerada como provada e não provada na anterior decisão de 23 de maio de 2023 e face às informações bancárias juntas ao processo na sequência de tal decisão, o Tribunal a quo dispunha de todas as condições para, deferindo parcialmente à reclamação contra a relação de bens, determinar o cabeça de casal, aqui apelado, a relacionar o valor correspondente aos dois mencionados produtos financeiros.

Conhecidos os fundamentos da decisão apelada e, bem assim, os razões da oposição/crítica que à mesma dirige a recorrente, vejamos de seguida se assiste razão a esta.

Antes, porém, cumpre fazer uma breve referência às disposições legais em que se fundou a decisão proferida pelo despacho em crise.

O artigo 1093.º do Código de Processo Civil (com e epígrafe outras questões prejudiciais) dispõe:

1 - Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.

2 - A suspensão da instância no caso previsto no número anterior só ocorre se, a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, o juiz entender que a questão a decidir afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha».

Por seu turno, o art.º 1.105º do Código de Processo Civil (com a epígrafe tramitação subsequente) dispõe:

1 - Se for deduzida oposição, impugnação ou reclamação, nos termos do artigo anterior, são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada.

2 - As provas são indicadas com os requerimentos e respostas.

3 - A questão é decidida depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º

4 - A alegação de sonegação de bens, nos termos da lei civil, é apreciada conjuntamente com a acusação da falta de bens relacionados, aplicando-se, quando julgada provada, a sanção estabelecida no artigo 2096.º do Código Civil.

5 - Se estiver em causa reclamação deduzida contra a relação de bens ou pretensão deduzida por terceiro que se arrogue titular dos bens relacionados e se os interessados tiverem sido remetidos para os meios comuns, o processo prossegue os seus termos quanto aos demais bens. (…)

Em anotação ao (novo) regime do processo de inventário, Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres escrevem o seguinte [O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, pp. 10/11.]

O novo modelo do processo de inventário continua a prever a remessa das partes para os meios comuns quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão prejudicial não se compatibilize com a sua apreciação incidental (arts. 1092º,1,b, 1093º,1 e 1095º,1), nomeadamente porque as limitações decorrentes do disposto nos arts. 292º a 295º (aplicáveis ex vi do art. 1091º) afectariam as garantias das partes.

A necessidade desta remessa para os meios comuns é consequência, sob um ponto de vista formal, da estrutura do processo de inventário, e da resolução de inúmeras questões controvertidas em incidentes nominados ou inominados e, sob uma perspectiva substancial, do tipo de questões prejudiciais que podem surgir no processo de inventário (como as respeitantes à interpretação ou validade de um testamento ou à indignidade sucessória de um herdeiro). Estas questões podem ser complexas em matéria de facto, mas o que realmente justifica a remessa dos interessados para os meios comuns não é tanto esta complexidade, mas muito mais a garantia de um processo equitativo a esses interessados”.

E, em anotação ao art.º 1093º do Código de Processo Civil, os citados autores consignam [Obra citada, pags. 48 a 51.]

“As questões prejudiciais abrangidas pelo nº 1 são, fundamentalmente, aquelas que, não dizendo respeito à definição dos direitos sucessórios das partes do processo, se repercutam na determinação quer dos bens que integram o acervo hereditário, quer do passivo pelo qual é responsável o património a partilhar. O nº 1 abrange, por exemplo, os casos em que certo bem foi relacionado pelo cabeça-de-casal como pertencendo à herança ou como tendo determinado conteúdo ou objecto material, mas contra essa relacionação foi deduzida reclamação ou impugnação por qualquer interessado (artº 1104º, nº 1, al. d)) (…)

Sempre que a questão prejudicial respeite apenas a bens que integram o acervo hereditário ou o passivo que onera este acervo, a regra é a de que o juiz – como decorrência do principio segundo qual o Tribunal competente para a ação é também competente para conhecer os incidentes que nela se levantam (art. 91º, nº 1) – deve dirimir todas as questões suscitadas e convertidas que se revelem indispensáveis para alcançar o fim do processo, ou seja, uma partilha equitativa da comunhão hereditária.

No entanto, a apreciação incidental, no âmbito do processo de inventário, das questões atinentes à determinação dos bens que integram o património hereditário ou ao passivo deste património nem sempre será possível ou conveniente: a) O n.º 1 admite que o juiz se possa abster de decidir incidentalmente a questão litigiosa e remeter as partes para os meios comuns, quando a complexidade da matérias de facto subjacente à questão tornar inconveniente, na óptica das garantias de que as partes beneficiam no processo declarativo comum, a sua apreciação e decisão no processo de inventário, atendendo à tramitação simplificadas e às limitações probatórias (que quase só não existem para a prova documental) que caracterizam as decisões tomadas ao abrigo do disposto nos – arts. 1105º, n.º 3, e 1110º, n.º 1, al. a).

Apenas tem justificação a remessa dos interessados para os meios comuns quando, estando unicamente em causa a complexidade da matéria de facto, a tramitação do processo de inventário se revele inadequada. Para que isso suceda é necessário que a tramitação do processo implique uma efetiva diminuição das normais garantias que estão asseguradas às partes no processo declarativo comum (n.º 1). A diminuição destas garantias reflete-se na impossibilidade de se alcançar uma apreciação e decisão ponderadas em questões que envolvam larga indagação factual ou probatória”.

E, nas palavras de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa anotação ao art.º 1093º do Código de Processo Civil [Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2020, Almedina, p. 547.]

“[q]ualquer questão relacionada com a admissibilidade do processo de inventário ou com a definição de direitos de interessados directos na partilha terá de ser decidida no próprio processo. Embora deva ou possa ser determinada a suspensão da instância, nos termos do art. 1092º, os interessados não podem ser remetidos para os meios comuns quanto a tais questões, que são imanentes ao próprio processo de inventário”.

(…) Todavia, podem suscitar-se no âmbito do processo de inventário questões de outra natureza, designadamente conexas com os bens relacionados e/ou com direitos de terceiros para cuja resolução se revelem inadequados os constrangimentos inerentes ao processo de inventário (cf. art. 1091º, n.º 1, quando remete para o regime dos incidentes da instância), cuja tramitação difere substancialmente da prevista para o processo comum ou para outros processos especiais. Nestas situações, embora a apreciação de tais questões não seja excluída em absoluto do processo de inventário, segundo a regra geral do art. 91º, n.º 1, o litígio pode envolver larga indagação fáctica ou a produção demorada de meios de prova, podendo justificar a remessa dos interessados para os meios comuns.

(…) Destacam-se os casos em que para a apreciação das questões se revele inadequada a tramitação do processo de inventário para assegurar as garantias dos interessados, tendo em conta designadamente as restrições probatórias ou a menor solenidade associada a uma tramitação de cariz incidental. Tal poderá ocorrer, por exemplo, quando esteja em discussão a área ou os limites de um imóvel envolvendo divergências com terceiros, a arguição da invalidade da venda de bens relacionados no processo de inventário, a invocação por parte de terceiro ou de um herdeiro, da aquisição por usucapião de um bem relacionado (cf. nº 5 do art. 1105º), a alegação da acessão industrial imobiliária sobre um imóvel relacionado (cf. art. 1339º CC) ou a dedução de um crédito ou de uma dívida da herança relacionada com a realização de benfeitorias”.

A “resolução, no âmbito do processo de inventário, de questões de natureza incidental obedece a uma tramitação menos solene do que a consagrada para o processo comum e mesmo para certos processos especiais, designadamente no que concerne aos meios probatórios admissíveis (arts. 1091 e 1105º, n.º 3), o que poderá justificar que não sejam sacrificados os valores da segurança e da justiça em função da maior celeridade na conclusão do processo de inventário. Para o efeito, será importante apreciar as razões apresentadas, quer no sentido da resolução incidental das questões, quer dos benefícios da remessa para os meios comuns”.

E mais adiante: “a opção de remessa para os meios comuns não pode ser orientada por meras razões de comodidade ou de facilitismos, apenas se justifica quando, estando unicamente em causa a complexidade da matéria de facto, a tramitação do inventário se revele inadequada, por implicar, designadamente, uma efectiva redução das garantias dos interessados, por comparação com o que pode ser alcançado através dos meios comuns”.

A decisão incidental das reclamações em sede de inventário não pressupõe necessariamente que as questões suscitadas possam ser objeto, pela sua simplicidade, de uma indagação sumária, mediante apenas certos tipos de prova, maxime documental, seguida de decisão imediata: a regra é a de que o tribunal da causa tem competência para dirimir todas as questões que importem à exata definição do acervo hereditário a partilhar, podendo no entanto, excecionalmente, em caso de particular complexidade da matéria de facto a apreciar – e para evitar redução das garantias das partes – usar da possibilidade prevista no estatuído no n.º 1 do art.º 1093º do Código de Processo Civil [Carlos Lopes do Rego, Comentários ao CPC, vol. II, 2ª ed., Almedina, 2004, p. 268, em anotação ao art. 1350º do CPC de 1961.]

E faz sentido que assim seja, que seja destacada na lei a complexidade da matéria de facto a apreciar – e não a matéria jurídica – dado que é a prova da matéria de facto subjacente às questões suscitadas (que as partes têm o ónus de alegar e provar) que pode tornar-se mais difícil para as partes, com as necessárias limitações das provas a produzir no incidente do processo de inventário, questão também realçada no n.º 1 do art.º 1093º do CPC, de que a inconveniência da apreciação da matéria de facto implique a redução das garantias das partes [Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 2/02/2023, processo n.º 176/18.0T8VPC-D.G1 (relatora Maria Amália Santos), in www.dgsi.pt.]

Ora, no caso concreto, está em causa a reclamação contra a relação de bens, mais especificamente discutindo-se necessidade de relacionar o saldo bancário de uma conta do Banco 1... e os produtos financeiros Banco 2... VIDA AFORRO, cuja falta (de relacionação) foi acusada pela ora recorrente, na sua reclamação contra a relação de bens.

E o certo é que, na decisão de 25 de maio de 2023 (já transitada em julgado) que se pronunciou (parcialmente) sobre a decisão contra a relação de bens, provou-se que:

- No dia 23.03.2015 o cabeça de casal procedeu ao resgate de €3.498,65 da aplicação de prazo fixo – deposito especial Banco 1... 3 Anos, para a conta n.º ...01 e transferiu o montante de €3.518,09 para a conta de terceira pessoa, sem o conhecimento da interessada (facto n.º 4 da mesma decisão).

- A Conta ...33, no Banco 2..., SA, que em 30/09/2014 tinha um saldo de € 27.404,64 consignado em dois produtos designados por Banco 2... VIDA AFORRO com os números  ...17, no montante de €5.480,93 e  ...17, no montante de €21.923,71 (facto n.º 6 da dita decisão);

Por outro lado, na resposta à reclamação contra a relação de bens, o cabeça de casal, ora recorrido, não alegou quaisquer factos que permitissem concluir que o dinheiro depositado na mencionada conta Banco 1... e aplicado nos mencionados produtos financeiros Banco 2... estava excluído da comunhão conjugal, limitando-se a referir que “antes de ser decretado o divórcio existiram movimentos a débito em contas de depósitos bancários, para fazer face a despesas correntes que eram da responsabilidade de ambos os cônjuges, nomeadamente obras de reparação e conservação na casa sita em Portugal”, factualidade essa que, naquela mesma decisão, foi considerada como não provada.

Assim sendo, perante a matéria de facto alegada, restaria apenas apurar a natureza da aplicação financeira  dos produtos designados Banco 2... Vida Aforro (o que, como melhor se verá adiante, será essencial para determinar de bem comum ou antes de bem próprio subscritor/beneficiário dos mesmos) e determinar se o cabeça de casal se apropriou ilegitimamente das correspondentes quantias, o que, em nosso entender.

Salvo melhor opinião, tal tarefa poderá bastar-se com a análise de prova documental. Seja através dos documentos bancários que já se encontram juntos ao autos de inventário (e cuja veracidade não foi colocada em causa por qualquer das partes) -  mormente aqueles que permitirão aferir as datas dos levantamentos/resgates das quantias em causa e a titularidade das contas bancárias onde, posteriormente a isso, foram os correspondentes valores depositados –  seja por meio de outros elementos documentais que poderão ainda ser solicitados ao Banco 3... e à Seguradora A..., tais como os contratos – e respetivas cláusulas – que titulam os produtos financeiros associados à identificada conta Banco 2..., de forma a permitir a qualificação jurídica dos mesmos.

Por conseguinte, não subscrevemos o entendimento seguido pela Sra. Juíza a quo de que as questões a apreciar, na parte que concerne ao aludido depósito Banco 1... e aos produtos financeiros Banco 2..., envolvam uma extensa e complexa indagação fáctica.

E, salvo o devido respeito, também não subscrevemos o seu entendimento de que a decisão dessas concretas questões no inventário pendente reduziria as garantias das partes.

Por isso, concluímos que a apreciação da sobredita questão da relacionação, ou não, dos valores atinentes ao identificado depósito no Banco 1... e aos seguros de Vida Banco 2... AFORRO não poderia ter merecido a mesma solução que a decisão recorrida deu às demais questões relacionadas com a alegada falta de relacionação de outras contas bancárias e aplicações financeiras (de cuja bondade não cabe aqui apreciar, por estar excluída do objeto do recurso), sendo, por isso, de revogar a decisão que relegou as partes para os meios processuais comuns, na parte concernente às questões que a recorrente colocou à apreciação deste Tribunal."

[MTS]