Acção de anulação de deliberação social;
valor da causa*
1. O sumário de RL 14/1/2025 (2942/23.6T8VFX.1.L1-1) é o seguinte:
I - Mesmo em caso de concordância das partes sobre o valor indicado para a acção, o Tribunal deve fixá-lo pela aplicação dos critérios legais enunciados para o efeito.II - Embora deva ocorrer normalmente no despacho saneador, nada obsta a que a fixação do valor da acção ocorra anteriormente a tal despacho.III - Na acção de anulação de deliberação social, onde se pretende anular uma deliberação sobre o relatório de gestão e as contas anuais do exercício de determinado ano, não é possível apurar os efeitos patrimoniais directos da mesma, nem a sua utilidade económica para os sócios, situando-se assim a acção no âmbito dos interesses imateriais.IV - Deste modo, o valor da acção deverá coincidir com o da alçada da relação, acrescida de um cêntimo (art.º 303º nº 1 do Código de Processo Civil), ou seja, será de fixar à acção o valor de 30.000,01 €.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"O Código de Processo Civil estabelece, nos seus artºs. 292º a 295º, as regras gerais a que deverão obedecer quaisquer incidentes inseridos na tramitação de uma causa (os designados incidentes da instância), quando não exista regulamentação especial para esse efeito.
Assim, estabelece-se no art.º 293º do Código de Processo Civil que, no requerimento em que se suscite o incidente e na respectiva oposição, “devem as partes oferecer o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova”, havendo um prazo de dez dias para dedução da referida oposição, cuja falta “determina, quanto à matéria do incidente, a produção do efeito cominatório que vigore na causa em que o incidente se insere”.
De acordo com o art.º 294º do Código de Processo Civil, cada parte não pode produzir mais que cinco testemunhas e os depoimentos prestados antecipadamente ou por carta são gravados nos termos do art.º 422º do Código de Processo Civil.
Por último, estabelece o artigo 295º do Código de Processo Civil, a propósito da tramitação final dos incidentes da instância, que, finda a produção da prova, “pode cada um dos advogados fazer uma breve alegação oral, sendo imediatamente proferida decisão por escrito, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no art.º 607º”. De referir ainda que, nos subsequentes artºs 296º e ss. do Código de Processo Civil, são especialmente regulados diversos incidentes da instância, designadamente o de verificação do valor da causa, a intervenção de terceiros, a habilitação e a liquidação.
Ora, a propósito do incidente de verificação do valor da causa, há que ter em atenção o art.º 296º nº 1 do Código de Processo Civil, o qual dispõe que “a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido”.
Estipula, por sua vez, o art.º 305º nº 1 do Código de Processo Civil que “no articulado em que deduza a sua defesa, pode o réu impugnar o valor da causa indicado na petição inicial, contanto que ofereça outro em substituição; nos articulados seguintes podem as partes acordar em qualquer valor”. Adianta o nº 2 do preceito que, “se o processo admitir unicamente dois articulados, tem o autor a faculdade de vir declarar que aceita o valor oferecido pelo réu”. Por seu turno, o nº 3 refere que “quando a petição inicial não contenha a indicação do valor e, apesar disso, haja sido recebida, deve o autor ser convidado, logo que a falta seja notada e sob cominação de a instância se extinguir, a declarar o valor; neste caso, dá-se conhecimento ao réu da declaração feita pelo autor e, se já tiverem findado os articulados, pode o réu impugnar o valor declarado pelo autor”. Por fim, o nº 4 do normativo dispõe que “a falta de impugnação por parte do réu significa que aceita o valor atribuído à causa pelo autor”.
Consagra ainda o art.º 306º do Código de Processo Civil que:
“1 – Compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes”.“2 – O valor da causa é fixado no despacho saneador, salvo nos processos a que se refere o nº 4 do artigo 299º e naqueles em que não haja lugar a despacho saneador, sendo então fixado na sentença”.“3 – Se for interposto recurso antes da fixação do valor da causa pelo juiz, deve este fixá-lo no despacho referido no artigo 641º”.
Determina, também, o art.º 308º do Código de Processo Civil que, “quando as partes não tenham chegado a acordo ou o juiz o não aceite, a determinação do valor da causa faz-se em face dos elementos do processo ou, sendo estes insuficientes, mediante as diligências indispensáveis, que as partes requererem ou o juiz ordenar”.
Dos citados artigos resulta, desde logo, que a competência para fixação do valor da causa compete ao Juiz, pelo que, mesmo havendo acordo entre as partes relativamente a tal valor, não concordando o Juiz com o mesmo, deverá proceder à sua determinação em face dos elementos constantes do processo ou, sendo estes insuficientes, proceder à realização das diligências que considere indispensáveis, não só requeridas pelas partes, como decididas oficiosamente (art.º 308º do Código de Processo Civil).
Conforme referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2018, pg. 356):
“Certo é que, independentemente das posições assumidas pelas partes, o Juiz sempre terá de se debruçar sobre o assunto e fixar o valor da causa, sem estar vinculado a qualquer dos valores indicados ou aceites por aquelas (artigo 306º, nº 1)”. [...]
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g) Por fim, vejamos se é de alterar o valor da acção.
Entendeu o Tribunal “a quo” que o valor da acção seria o valor do balanço de 31/12/2022. Assim, decidiu atribuir à causa o valor de 6.271.263 €.
Fundamentou a sua decisão dizendo que “o valor da acção que tenha por escopo a anulação de deliberação social corresponde ao valor da deliberação que constitui o acto jurídico anulando – art.º 301º nº 1, do CPCivil”. “No caso, pede-se a anulação da deliberação social que aprovou o balanço de 2022, da deliberação social que aprovou a aplicação do resultado líquido de 2022 e da deliberação social de apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade”. Entendeu o Tribunal que apenas a primeira das três deliberações tem uma “utilidade imediata económica”, pelo que é o valor desta a determinar o valor da acção.
Estamos, “in casu”, perante uma acção de anulação de deliberações sociais, a qual se mostra prevista no art.º 59º do Código das Sociedades Comerciais.
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h) Nos termos do disposto no art.º 296º do Código de Processo Civil, “a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal (…)” (nº 1), sendo a este valor que se atenderá para “determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da causa com a alçada do tribunal” (nº 2).
O valor da causa há-de representar a utilidade económica imediata que pela acção se pretende obter (cf. art.º 296º nº 1, segunda parte, do Código de Processo Civil).
Assim, se na acção se pede uma quantia certa em dinheiro, a importância pedida marca o valor da acção, mas “se pela acção se pretende obter benefício diverso do pagamento de quantia certa, o valor da acção será a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício” (cf. art.º 297º nº 1 do Código de Processo Civil).
Porém, “estando em causa a existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um negócio jurídico, “atende-se ao valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes” (cf. art.º 301º nº 1 do Código de Processo Civil).
Tratando-se de deliberação social, “tudo depende do conteúdo e alcance da deliberação cuja anulação se pretende. Há-de atender-se, pois, ao que a deliberação, em si, representa para a vida e funcionamento da sociedade” (cf. José Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. III, pg. 622)
“Acções sobre interesses imateriais correspondem às acções cujo objecto não tem valor pecuniário (…). Visam à declaração ou efectivação de um direito extra-patrimonial” (cf. José Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. III, pg. 625).
No caso em apreço, conforme já se referiu, pretendem as recorrentes que se anulem as seguintes deliberações:
“Primeiro – Deliberar sobre o relatório de gestão e as contas anuais do exercício de 2022, incluindo a aprovação do Balanço, Relatório de Gestão e restantes documentos de prestação de contas do referido exercício;Segundo – Deliberar sobre a proposta de aplicação do resultado líquido do exercício de 2022;Terceiro – Proceder à apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade”.
Conforme bem se refere na decisão “sub judice”, à última deliberação não se pode atribuir uma utilidade imediata económica. A segunda deliberação, por sua vez, não apresenta autonomia face à primeira.
E será possível atribuir um valor económico à primeira?
Entendemos que não.
Com efeito, a deliberação sobre o relatório de gestão e as contas anuais do exercício de 2022 (incluindo a aprovação do Balanço, Relatório de Gestão e restantes documentos de prestação de contas do referido exercício), não diz respeito à atribuição ou distribuição de lucros, não sendo possível apurar os efeitos patrimoniais directos da mesma, nem a sua utilidade económica para os sócios.
Assim sendo, a presente acção, ainda que respeitante a uma deliberação social, não tem, pelo seu alcance, um valor pecuniário, situando-se, sim, no âmbito dos interesses imateriais.
E, assim sendo, o valor da acção deverá coincidir com o da alçada da relação, acrescida de um cêntimo (cf. artºs. 303º nº 1 do Código de Processo Civil e 44º nº 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário - Lei nº 62/2013, de 26/8), ou seja, será de fixar à acção o valor de 30.000,01 €."
*3. [Comentário] O decidido no acórdão talvez permita concluir que, quando os interesses patrimoniais são meramente reflexos de interesses não patrimoniais, a acção tem por objecto interesses imateriais. Noutros termos: só pode ser atribuído um valor patrimonial à acção quando os efeitos patrimoniais sejam uma consequência directa do pedido do autor.
MTS
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