06/07/2016

Jurisprudência (391)


Acção popular; conflito de jurisdição; 
tribunais administrativos


1. O sumário de TConf 10/3/2016 (036/15) é o seguinte:

É da competência dos Tribunais Administrativos - art. 4.°, n.° 1 als. b), g) e l), todos do ETAF - o julgamento da acção popular, proposta por particulares contra pessoa colectiva de direito público (Município) e pessoa colectiva de direito privado (sociedade comercial), fundada na responsabilidade civil extracontratual de ambas, traduzida, quanto à primeira, na prática, entre outros, de actos jurídicos ilegais regulados pelo direito administrativo (deliberações camarárias) que determinaram a permissão da construção, iniciada e abandonada, de um Hotel pela segunda, materializada num “mono” em cimento e num lago próximo da residência dos autores que, por considerarem violar o ambiente e o direito à saúde e à qualidade de vida, pedem a sua condenação no pagamento de indemnizações, na demolição e na reversão do prédio para o domínio público.

2. Tem interesse conhecer esta parte da fundamentação do acórdão:

"À data em que a acção foi proposta, 20 de Abril de 2013 – cf. fls. 22 e arts. 267.°, n.° 1 e 150.°, n.° 1, parte final, ambos do CPC, na redacção pre-vigente, determinante da fixação da competência - arts. 22.°, n.° 1, da Lei n.° 3/99, de 13 de Janeiro (LOFTJ) e 5.°, n.° 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF, aprovado pela Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção dada pela rect. 14/2002, de 20.03, rect. 18/2002, de 12.04, Lei n.° 4-A/2003, de 19.02, Lei n.° 107-D/2003, de 31.12, Lei n.° 1/2008, de 14.01, Lei n.° 2/2008, de 14.01, Lei n.° 26/2008, de 27.06, Lei n.° 52/2008, de 28.08, Lei n.° 59/2008, de 11.09, D.L. n.° 166/2009, de 31.07, Lei n.° 55-A/2010, de 31.12 e Lei n.° 20/2012, de 14.05, não sendo aplicáveis as alterações introduzidas pelo DL n.° 214-G/2015, de 02/10), aos tribunais judiciais competia a jurisdição em todas as matérias não atribuídas a outras ordens judiciais - artigo 211.°, n.° 1 da CRP, 66.° do Código de Processo Civil (CPC), na redacção anterior à Lei n.° 41/2013, de 26 de Junho e 18.°, n.° 1, da LOFTJ, e, aos tribunais administrativos competia, numa primeira delimitação material, o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais - artigo 212.°, n.° 3 da CRP e 1.°, n.° 1 do ETAF.

A lei não definia (como não define), porém, o que fossem relações administrativas.

Vieira de Andrade acertadamente referiu “Esta questão sobre o que se entende por “relação administrativa”, sendo fulcral, devia ser resolvida expressamente pelo legislador. Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa”, no sentido estrito tradicional da “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração ...” (in Justiça Administrativa, 9ª Edição, Almedina, Coimbra, página 55).

Também Jónatas Machado salienta que “a doutrina entende que devem ser consideradas relações jurídico-administrativas as relações interpessoais e inter administrativas em que de um dos lados da relação se encontre uma entidade pública, ou uma entidade privada dotada de prerrogativas de autoridade pública, tendo como objecto a prossecução do interesse público, de acordo com as normas de direito administrativo. Assim entendida, a relação jurídica administrativa pode desdobrar-se num complexo acervo de posições jurídicas substantivas e procedimentais, favoráveis e desfavoráveis, activas e passivas” (“Breves Considerações em torno do âmbito da Justiça Administrativa”, in “A Reforma da Justiça Administrativa”, págs. 80 e 93).

Se a densificação do conceito de relação administrativa parece impor-se, por constituir, na lei, o primeiro patamar de delimitação material da competência dos tribunais administrativos, certo é que o ETAF, num segundo patamar, mais propriamente no artigo 4.°, n.° 1, delimita essa mesma competência pelo elenco de vários litígios abrangidos pela jurisdição (salvo as excepções dos números 3 e 4), prescindindo ou pressupondo aquele conceito.

Na compatibilização destes comandos normativos, escreve Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira “Quanto à questão de saber da conformidade material das cláusulas «aditivas» e «subtractivas» da competência dos tribunais administrativos, por referência ao âmbito natural da sua jurisdição (consagrado no citado art. 212.º/3 da CRP), respondeu-se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.° 93/ VIII, apresentada pelo Governo à Assembleia da República — e que deu origem ao ETAF -, que a Constituição não estaria a instituir aí uma reserva material absoluta de competência dos tribunais administrativos, que impedisse o legislador ordinário de atribuir a outras jurisdições o julgamento de questões administrativas, e à jurisdição administrativa o julgamento de questões não administrativas” (in “Código de Processo nos Tribunais Administrativos - Volume I - Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais”, Almedina, em anotação ao artigo 1.°), notando, acrescidamente, estes autores que tem sido esse o entendimento da jurisprudência do Tribunal Constitucional (Acórdãos n.°s 965/96 e 284/2003) e do Supremo Tribunal Administrativo (Acórdão de 31.10.2002, processo n.° 1329/2002) e da doutrina maioritária.

O carácter relativo, aberto ou geral da norma constante dos artigos 212.°, n.° 3 da CRP e 1 °, nº 1 do ETAF - aquele primeiro patamar - permite, pois, que ao invés de se discretear sobre o conceito de relação administrativa e se problematizar a recondução da relação em litígio ao mesmo, desde já se discuta a sua subsunção a algum ou alguns dos litígios previstos no artigo 4.°, n.° 1 do ETAF - segundo patamar, suficiente para a afirmação da competência da jurisdição administrativa.

Aqui aportados, o artigo 4.°, n.° 1 als. b), g) e l) do ETAF prevê o seguinte:

“Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:

b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração; (...)

g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa; (...)

l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional.”

Ao questionarem a legalidade das deliberações tomadas pela 1ª ré — (i) de adjudicação do prédio urbano a empresa sem Código de Actividade Económica, tendo em vista a urbanização parcial da ………..; (ii) de autorização de transmissão do prédio pelo comprador à 2ª ré, e (iii) de prorrogação de um prazo contratualmente já decorrido —, cujas nulidades expressamente pedem sejam declaradas (“e serem declaradas as nulidades e ilegalidades invocadas” [...]) como fundamento quer da responsabilidade civil dos réus quer da reversão do prédio para o Município, os autores pretendem, para efeito da previsão da alínea b), a fiscalização de actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo.

Com efeito, (i) as deliberações são actos jurídicos (a terminologia é precisa e não equivale a actos administrativos, caso em que se suscitariam dúvidas, cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29.04.2003, in www.itij.pt), no sentido dado por Marcello Caetano de “toda a conduta (humana) voluntária, quer consista em acção quer em omissão, que produza efeitos na Ordem jurídica, ainda que esses efeitos não tivessem sido queridos pelo agente” (in Manual de Direito Administrativo, Vol. I, Almedina, 10ª. edição, pág. 422); emanaram de pessoa colectiva de direito público (mais especificamente de órgãos desta), ou seja, “aquela que nasça da necessidade de realização de interesses públicos, isto é, interesses que sejam considerados fundamentais para a existência, conservação e desenvolvimento da sociedade política” (Marcello Caetano, ob. cit. pág. 182) como são os Municípios - cf. ainda os artigos 235.°, n.° 2, 239.°, n.° 1 e 242.°, todos da CRP); e, por fim, as deliberações foram reguladas/enformadas por normas de direito administrativo, enquanto “sistema das normas jurídicas que regulam a organização e o processo próprio de agir da Administração Pública e disciplinam as relações pelas quais ela prossiga interesses colectivos podendo usar de iniciativa e do privilégio da execução prévia” (Marcello Caetano, ob. cit. pág. 43), no que se inclui a Lei n.° 169/99, de 18 de Setembro (alterada pela Lei n.° 5-A/2002, de 11.01, Rect. N.° 4/2002, de 06.02, Rect. n.° 9/2002, de 05.03, Lei n.° 67/2007, de 31.12 e Lei Orgânica 1/2011, de 30.11), que estabeleceu o quadro de competências, assim como o regime jurídico de funcionamento dos órgãos dos municípios e das freguesias.

Também os autores assumem que a 1ª ré, pessoa colectiva de direito público repita-se, incorreu em responsabilidade civil extracontratual perante eles, já que, por via das ilegalidades cometidas (que se traduzem naqueles actos administrativos e na omissão do exercício do direito de reverter o prédio urbano para o seu património, concretizadores da ilicitude), permitiram o início da construção de um hotel que, sobre área de REN e inacabado, atentou e atenta contra o ambiente e a saúde e a qualidade de vida dos autores (danos), legitimando-os a pedirem a sua demolição e o pagamento de indemnizações compensatórias correspondentes, com fundamento legal na responsabilidade civil extracontratual das rés abstractamente prevista nos artigos 52.°, n.° 3 da CRP, nos artigos 1.°, 22.° e 23.° da Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto e Lei n.° 67/2007, de 31 de Dezembro.

Nesta perspectiva, o litígio tem por objecto, como previsto naquela alínea g), questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público e visa também, para o efeito daquela alínea l), promover a cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, qualidade de vida, quando cometidas por entidades públicas, sem que se tenha notícia de constituírem ilícito penal ou contra-ordenacional. Como se pode ler, a este propósito, na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.° 93/VIII, apresentada pelo Governo à Assembleia da República, e que deu origem ao ETAF, “Ao mesmo tempo, e dando resposta a reivindicações antigas, optou-se por ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos em domínios em que, tradicionalmente, se colocavam maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns. A jurisdição administrativa passa, assim, a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado”. Escreveu-se, a este respeito também, no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 23.01.2008, processo n.° 17/07, inwww.itij.pt, que “A jurisdição administrativa passa, assim, a ser a competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado”. E ainda no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 24.01.2012, processo n.° 15/11, se entendeu que “II — São competentes os tribunais administrativos para apreciar uma acção em que o autor pretende de uma pessoa colectiva de direito público uma indemnização com fundamento em responsabilidade civil extracontratual emergente de um acto administrativo”, o que quadra bem na causa.

Não restam, à luz do exposto, dúvidas, tal como concluíram as instâncias e sem necessidade de outras considerações, que a competência para conhecer do objecto da acção compete aos Tribunais Administrativos.

Por último, não constitui impedimento à atribuição da competência aos Tribunais Administrativos, o facto de também ter sido demandada uma pessoa colectiva de direito privado, como bem resulta do artigo 10º, n.º 7 do artigo 10º do CPTA (cf. ainda o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 15.10.2015 (processo n.° 051/14), in www.itij.pt)."

[MTS]