30/01/2020

Jurisprudência 2019 (164)


Providência cautelar;
erro na forma do processo


1. O sumário de RL 12/9/2019 (2844/19.0T8LSB.L1-2) é o seguinte:

I - Sendo formulado pedido, num procedimento cautelar antecipatório, que se traduz, em caso de procedência, numa satisfação definitiva irreversível dum direito que só pode ser definido num processo declarativo comum, está-se a ignorar o caráter instrumental e provisório do procedimento face à acção principal.

II - Tal pedido só poderia ser apreciado e decidido no seio daquele processo comum, pelo que a sua dedução num procedimento cautelar, implica a nulidade do erro na forma de processo.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Apreciemos agora, face a factualidade que resulta apurada – integrando as alterações supra indicadas – as questões que se prendem com a decisão de direito propriamente dita, sendo certo que não se torna fácil a sua dilucidação, face à extensão das conclusões de recurso apresentadas, as quais deveriam constituir a síntese das questões a resolver e não, como verdadeiramente ocorreu, uma elencagem ligeiramente mais resumida do que antes se alegou.

Ora, para a apreciação do que importa conhecer, teremos de ter por base o que foi decidido.

Assim, e sinteticamente, poderemos referir que a Exma. Juíza estribou a sua decisão:

a) na circunstância das providências cautelares apresentarem, em regra, um carácter instrumental e subordinado em relação à acção destinada a tutelar, em definitivo, o direito invocado pelo requerente. Tal circunstancialismo levar a que “uma providência cautelar nunca pode substituir o efeito jurídico que dimanará da acção principal: terá sempre efeitos provisórios cuja subsistência exige a confirmação daquilo que sumariamente se apure relativamente aos requisitos específicos das providências cautelares. De outro modo, estaria descoberto o sistema de, por esta via, dar imediata e directa realização ao direito substancial e alcançar-se a satisfação desse direito que só através da respectiva acção principal se deve concretizar.” Daqui resultará assim (e a decisão recorrida afirma esse entendimento) que o procedimento cautelar visará a adopção de soluções provisórias, não se destinando a obter decisões de fundo, sendo que, na situação em apreço, “face à matéria alegada no requerimento inicial e ao pedido formulado, a requerente pretende obter neste procedimento um fim que é próprio da acção principal.” Segundo a decisão recorrida, “no caso, nada justifica a instauração de uma providência cautelar, para se obterem os apontados fins [Recorde-se que o pedido formulado na presente providência cautelar é o seguinte: «ser ordenada a notificação, por meio expedito, do requerido Novo Banco para proceder ao imediato cumprimento do contrato de depósito bancário, com o processamento das ordens de transferência identificadas nos arts. 8º a 39º do requerimento inicial.»], que são próprios da acção declarativa e apenas dessa acção”;

b) no facto de entender que o requisito da probabilidade séria da existência do direito por parte da requerente, não se regista no caso, posto que, pese embora o contrato de depósito bancário lhe conferisse, em princípio, o direito a dispor livremente do dinheiro que se mostra depositado no Banco Requerido, a circunstância de se registarem dúvidas sobre as instruções ou outras comunicações (ordenando transferências para terceiros), que considerou fundadas, punha em causa a aceitação pura e simples daquele direito.

c) na circunstância de ter considerado que também o requisito da existência de fundado receio de que se registe a violação daquele direito, não terá ficado demonstrado.

Comecemos por apreciar a questão da insusceptibilidade de utilização da providência cautelar comum para a obtenção da finalidade pretendida.

É sabido que nas providências cautelares antecipatórias haverá a possibilidade de, havendo decisões de sentido contrário – procedência da providência e improcedência da acção principal de que aquela é dependente – potenciar-se o risco de se causar danos ao requerido, os quais, porém, sempre deverão ser passíveis de reparação, designadamente com recurso à devolução do prestado e/ou indemnização.

Sucede, porém, que nem sempre a configuração do conflito em causa, dos direitos que lhes estão subjacentes, o permitirá.

Tal sucederá, designadamente, quando por via da decisão proferida na providência cautelar, não se encontrando fixado em definitivo (logicamente) o direito, se assumam decisões dele dependentes (o deferimento de certos pedidos) e que se revelem irreversíveis.

É o que se nos afigura suceder no caso em apreço.

Na realidade, o que se mostra em causa nesta providência e na acção que lhe corresponderia, é o saber se terá sido legítima a postura do Banco no sentido de não dar cumprimento às ordens de transferência para terceiros que lhe foram transmitidas pela ora Recorrente, no âmbito do contrato de depósito bancário que ambos tinham celebrado. Por via da apreciação dessa questão – que no seu entender lhe deverá ser favorável - pretenderá a Apelante que as transferências que elenca como não cumpridas, o sejam, sendo que caso a providência seja deferida, os fundos existentes na sua conta serão transferidos para entidades terceiras, as quais são em absoluto estranhas à presente litigância.

Ora, nessa eventualidade – procedência da providência cautelar – não estando em definitivo resolvida a questão de fundo (o apurar sobre a tal legitimidade de actuação por parte do Banco), estaria contudo em definitivo definido o pedido em concreto aí formulado pela Recorrente, pois que as transferência para terceiros teriam sido efectuadas, sem possibilidade de retorno e sem que por qualquer forma a decisão futura a proferir na acção principal – se no sentido da sua improcedência, ou seja, legitimidade do Banco para não cumprir as ordens de transferência - pudesse reverter o decidido na providência cautelar. As transferências para terceiros (que não são parte na providência e na acção respectiva) depois de efectuadas são insusceptíveis de serem devolvidas.

Convirá ter presente que, no caso, a questão não seria passível de ser colmatada com indemnizações, pois que o que está aqui em causa não é a inexistência de fundos na conta para as transferências – este existirá – é, sim, a legitimidade para as não determinar.

A decisão que deferisse tal pedido na providência cautelar estaria sempre a antecipar em definitivo o pretenso direito da ora Apelante, traduzindo-se num insustentável pré-juízo de um direito que carece de ser demonstrado em acção própria para o efeito.

Na realidade, o pedido formulado traduz-se na pretensão definitiva de satisfação dum direito da Requerente, ora Apelante, e não na salvaguarda provisória do mesmo, o que contraria a finalidade dos procedimentos cautelares.

Como se refere no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 29/06/2017 [Proc.º 25601/16.1T8PRT.P1, em que foi relator Paulo Dias da Silva], «(…) a providência cautelar, porque não constitui um meio para se criarem ou definirem direitos, não deve ser encarada como uma antecipação da decisão final a proferir na acção principal e da qual depende, apenas se justificando para se acautelar o direito invocado no sentido de evitar, durante a pendência da acção principal, a produção de danos graves e dificilmente reparáveis.»

A igual propósito citemos a posição defendida por Rita Lynce, que igualmente foi invocada nas alegações do recorrido:

«A aceitação generalizada das providências cautelares antecipatórias para garantia da tutela judicial efetiva do requerente, todavia, não afasta as reticências colocadas relativamente aos eventuais efeitos definitivos que aquelas possam provocar, tornando inútil a futura ação principal. Ainda que a hipótese de o risco de irreversibilidade se converter em dano para o requerido seja residual, não justificando, por isso, o afastamento da figura da tutela cautelar antecipatória, a simples possibilidade de tal acontecer não pode ser desconsiderada, podendo inclusive chegar a considerar-se que legitima a negação da providencia cautelar antecipatória em certos casos concretos. (...)

Do exposto se pode concluir que a colocação das providências cautelares antecipatórias em igualdade de condições com as medidas de natureza conservatória não pode ser linear. Mesmo que as providências de natureza conservatória também possam implicar ingerência de igual gravidade na esfera jurídica do requerido e produzir efeitos irreversíveis, nunca se traduzirão na atribuição ao requerente de utilidade equivalente aquela que apenas poderia obter por sentença final, transitada em julgado. Por esta via se permite alcançar, através de um meio precário e com uma margem de erro considerável, um resultado próprio de meios judiciais de cognição plena de que resultam decisões definitivas. As considerações expostas exigem que a eventual aceitação de providências cautelares de conteúdo antecipatório dependa de uma reflexão profunda e atenta sobre os respetivos efeitos e consequentes riscos, tarefa que já levamos a cabo. É agora o momento de avaliar, tendo como premissa o facto de que não pode aceitar -se este tipo de conteúdo cautelar com a mesma facilidade com que se aceita a tutela cautelar de conservação, muito embora a sua admissibilidade, como princípio, não deva ser posta em causa.» [“A tutela Cautelar Antecipatória no Processo Civil Português”, Universidade Católica, Lisboa, 2016, pp. 437-438]

Foi precisamente tendo o cuidado de análise devido a que alude a Ilustra Professora que consideramos que na situação em apreço foi inadequada a utilização da providência cautelar em causa, o que nos reconduz a uma situação de erro na forma de processo.

Na decisão recorrida foi essa também uma das posições assumidas (embora sem que se tivesse qualificado tal entendimento, como erro na forma de processo), ao dizer-se, designadamente: “Nada justifica a instauração duma providência cautelar, para se obterem os apontados fins, que são próprios da acção declarativa e apenas dessa acção.

No caso, nada justifica a instauração de uma providência cautelar, como a presente, porquanto não se visa nem se pretende o decretamento de qualquer concreta providência antecipatória, visando-se com ela obstar a algum prejuízo sério decorrente do retardamento na satisfação do direito invocado e ainda não reconhecido (direito esse que será precisamente o pedido formulado). Visa-se, outrossim, o imediato reconhecimento do direito da requerente deixando sem objecto a acção principal a intentar.”

Na situação em apreço, sendo inviável a convolação da presente providência numa outra, pois que o que se mostra em causa é a inadequação daquela (ou de qualquer outra) e a necessidade de existência duma acção, há a registar um caso de preclusão e não de convolação."

[MTS]