"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/01/2018

Jurisprudência (773)


Erro na forma do processo;
providência cautelar; convolação

 
1. O sumário de RP 29/6/2017 (25601/16.1T8PRT.P1) é o seguinte:

I - Formulando os requerentes pedidos característicos da que seria a acção principal e não do procedimento cautelar, esquecem a instrumentalidade e a provisoriedade do procedimento cautelar.

II - Tais pedidos só poderiam ser apreciados e decididos em processo declarativo comum e não em procedimento cautelar, não sendo consentâneos com tal meio processual, pelo que estamos perante a nulidade do erro na forma de processo.

III - A possibilidade de inversão do contencioso não legitima a inversão da essência do procedimento cautelar, caracterizado pela celeridade e provisoriedade, por forma a transferir para o procedimento cautelar a acção definitiva.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Presente que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formulado, importando em conformidade decidir as questões nelas colocadas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, tendo presente o dispositivo da decisão proferida e em análise, resulta que as questões a apreciar consistem em saber se os autos padecem do vício do erro na forma de processo e se encontram reunidos os pressupostos de convolação do presente procedimento cautelar em acção declarativa de condenação.
 
Na decisão recorrida entendeu-se não estarem verificados tais requisitos e existir manifesto erro na forma de processo.
 
Deste entendimento dissente a recorrente.
 
Vejamos, então.
 
Ora, preceitua o n.º 1, do artigo 362.º do Código de Processo Civil que “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito pode requerer a providência concretamente adequada a assegurar a efectividade deste”.
 
Por seu turno, o artigo 368.º prescreve que a providência é decretada quando houver “probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão” (n.º 1), podendo o tribunal, no entanto, recusar a sua decretação “quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar” (n.º 2 do mesmo normativo). [...]

Como se sabe a providência cautelar não especificada visa a tutela provisória de um direito ameaçado, sendo instrumental de um processo principal instaurado ou a instaurar - cf. artigo 364.º do Código de Processo Civil. [...]
 
Ou seja, a providência cautelar, porque não constitui um meio para se criarem ou definirem direitos, não deve ser encarada como uma antecipação da decisão final a proferir na acção principal e da qual depende, apenas se justificando para se acautelar o direito invocado no sentido de evitar, durante a pendência da acção principal, a produção de danos graves e dificilmente reparáveis.
 
Sabido é, que estamos no âmbito de procedimento cautelar, em termos de composição provisória do litígio, indiciada como necessária para assegurar a utilidade da decisão, para que se obtenha a efectiva tutela jurisdicional, garantindo o efeito útil da acção.
 
Também não é despiciendo que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora, ou seja o prejuízo da demora inevitável do processo, no caso concreto evidenciado, assegurando consequentemente a efectividade do direito que está a ser posto em causa ou ameaçado, para além do prejuízo decorrente do decretamento da providência não dever exceder o dano que com a mesma se pretende evitar.
 
Ora, é sabido que o erro na forma de processo ocorre nos casos em que a pretensão não seja deduzida segundo a forma geral ou especial de processo legalmente previstas.
 
Constitui entendimento hoje dominante que é pelo pedido final formulado, ou seja, pela pretensão que o requerente pretende fazer valer que se determina a propriedade ou impropriedade do meio processual empregue para o efeito.
 
Ou seja, é pelo pedido formulado pelo autor na sua petição inicial, isto é, pela pretensão que aí pretende fazer valer que se afere do acerto ou erro do meio processual que utilizou para atingir tal desiderato.
 
Quer isto dizer, que a correcção ou incorrecção do meio processual empregue pelo autor (nomeadamente no que concerne ao tipo de acção por si escolhido para atingir o fim por si visado) mede-se ou afere-se em função da pretensão da tutela jurisdicional que o mesmo pretende atingir, e não da natureza da relação substantiva ou do direito subjectivo que lhe serve de base - cf., entre outros, Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, 3ª edição, 1999, pág. 262 e Antunes Varela, in “Revista de Legislação e Jurisprudência” 115 - 245 e ss.
 
É de facto em função do pedido formulado pelo requerente que se poderá aquilatar da adequação (ou não) da forma de processo por si escolhida.
 
Desta forma, e transpondo tal princípio para o procedimento cautelar aqui em discussão, teremos que será pela análise da pretensão dos requerentes que se poderá verificar se a providência proposta é a que de acordo com a lei deveria ser intentada ou se, pelo contrário, caberia à situação uma outra tipificada no Código de Processo Civil, ou mesmo apurar se tal pedido seria inadequado para ser deduzido numa providência cautelar.
 
Sucede que, como vimos, os pedidos principais formulados pelos requerentes foram os seguintes:
 
“- seja decretado a realização, no bem imóvel identificado nos autos, de todas as obras referidas na petição inicial, bem como as que se revelarem necessárias à realização do fim a que se destina o locado;
 
- sejam condenados os requeridos no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, de valor não inferior a €200,00 (duzentos euros) por cada dia de atraso na realização das indicadas obras;
 
- seja invertido o contencioso e realizada a composição definitiva do litígio, por terem os requerentes produzido toda a prova da existência do seu direito nos presentes autos, dispensando-se os requerentes da propositura da acção principal, nos termos e para os efeitos dos artigos 369.º e seguintes do CPC e, por via disso:
 
- seja reconhecida a posição dos requerentes na invocada qualidade, de detentores do direito de arrendamento do imóvel identificado no artigo 2.º;
 
- sejam condenados os requeridos a realizar, de imediato, as identificadas obras, bem como as que se revelarem necessárias à realização do fim a que se destina o locado;
 
- sejam condenados os requeridos a assegurar provisoriamente aos requerentes e seus familiares que com o mesmo habitam, um imóvel na mesma área geográfica, com semelhante tipologia e área, enquanto não forem concluídas as obras necessárias à reparação e conservação do locado, caso as mesmas não se coadunem com a permanência dos requerentes no imóvel;
 
- seja determinado a aplicação do regime da excepção de não cumprimento do contrato - prevista no artigo 428.º, n.º 1 do Código Civil - e consequentemente seja determinado que os requerentes se encontram dispensados do pagamento da renda, enquanto o locado não reunir as condições necessárias para a habitação condigna dos requerentes, ou, caso não entenda desta forma, seja proporcionalmente reduzido o valor a pagar, segundo critérios de equidade;
 
- sejam condenados os requeridos a indemnizar os requerentes pelos danos não patrimoniais sofridos - em virtude da omissão dos requeridos na realização das obras supra descritas - em montante não inferior a €35.000,00 cuja exacta quantificação relega para execução de sentença, dada a impossibilidade da sua determinação por ora“.
 
Ora, muito embora os requerentes tenham intentado uma providência cautelar, o certo é que formulam os pedidos característicos da que seria a acção principal e não do procedimento cautelar, esquecendo a instrumentalidade e a provisoriedade do mesmo.
 
Aliás, os factos enunciados no requerimento inicial como causa de pedir prestam-se a sustentar aqueles pedidos formulados.
 
Temos, pois, que os efeitos jurídicos enunciados pelos requerentes não são consentâneos com o procedimento cautelar.
 
Com efeito, os pedidos formulados traduzem-se na pretensão definitiva de satisfação dum direito ou interesse dos requerentes, e não na salvaguarda provisória desses, o que contraria a finalidade dos procedimentos cautelares.
 
Conforme referimos, o erro na forma de processo consiste em terem os requerentes usado de uma forma processual inadequada para fazer valer as suas pretensões.
 
É pelas pretensões que se pretendem fazer valer - e, portanto, pelos pedidos formulados - que se há-de aquilatar do acerto ou do erro do processo empregue, questão distinta das razões da procedência ou improcedência da acção. É, pois, em função da providência jurisdicional concretamente solicitada pelo autor em juízo que o juiz deve aferir da propriedade e da adequação do meio processual por ele escolhido.
 
Ora, como foi entendido na decisão recorrida, os pedidos formulados e supra transcritos só poderiam ser apreciados e decididos em processo declarativo comum e não em procedimento cautelar, não sendo consentâneos com tal meio processual, pelo que estamos perante a nulidade do erro na forma de processo. [...]

Na realidade o que sucede é que, nos termos em que formulam os respectivos pedidos, os requerentes não pretendem que lhes seja concedida uma medida cautelar, mas definitiva - só aquela seria susceptível da adequação a que se refere o n.º 3, do artigo 392.º.
 
Isto é, os requerentes formularam na presente providência cautelar, pedidos que só poderiam formular na acção principal, atento todo o enquadramento factual inerente à situação em apreço.
 
Tal circunstancialismo traduz-se, também ele, numa situação de utilização de meio processual desadequado para a tutela da pretensão dos requerentes, equivalendo à figura jurídica de erro na forma de processo (art.º 199.º do Código de Processo Civil).
 
Afigura-se-nos, ainda, que atenta a natureza do facto que subjaz a tal erro - desadequação substancial dos pedidos face ao meio processual utilizado - não se torna viável o aproveitamento de quaisquer actos do processo, tendo em vista a sua aproximação à forma adequada, implicando assim a anulação de todo o processo conforme bem decidiu o Tribunal a quo."
 
3. [Comentário] Atendendo ao momento em que foi apreciada a nulidade de erro no processo na 1.ª instância (já depois de os requeridos terem apresentado as suas contestações no prazo de 10 dias (cf. art. 365.º, n.º 3, e 293.º, n.º 2, CPC)), a convolação do procedimento cautelar em processo comum estava naturalmente excluída.
 
A solicitação da inversão do contencioso nos termos do art. 369.º CPC não implica uma convolação legal do procedimento cautelar em processo comum. A inversão do contencioso respeita apenas à natureza da decisão do tribunal, dado que este, em vez de decidir no plano da tutela provisória, decide no plano da tutela definitiva. Portanto, a circunstância de ter sido solicitada a inversão do contencioso não pode ser utilizada como argumento para que o juiz aceite um procedimento cautelar como um processo comum.

MTS