05/02/2020

Jurisprudência 2019 (168)

 
Facto notório; qualificação;
convite ao aperfeiçoamento; omissão*
 
 
1. O sumário de STJ 10/9/2019 (20714/13.4YYLSB-B.L1) é o seguinte:
 
I - A dedução de facto operada pelo acórdão recorrido em sede de fundamentação da resolução de uma questão suscitada no recurso de apelação não conduz à nulidade do acórdão por excesso de pronúncia, por não se tratar de um erro de procedimento, mas antes, eventualmente, de erro de julgamento.

II - Decidir se certo facto é ou não facto notório constitui ainda matéria de facto, de exclusivo julgamento pelas instâncias, subtraído ao conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça por via de recurso de revista.

III - A omissão do convite ao aperfeiçoamento de irregularidades ou imprecisões da matéria de facto alegada consubstanciaria, em última análise, uma mera nulidade processual secundária, de que se reclama e de que se não recorre.

IV – O julgamento improcedente, em ambas as instâncias, do pedido de declaração de nulidade da livrança oferecida como título por violação do dever de comunicação/informação das cláusulas contratuais gerais, arrimada em idêntica fundamentação jurídica, consubstancia dupla conforme parcial impeditiva da admissibilidade, nesta parte, do recurso de revista.

V – Tem-se entendido que não sendo os juros mora vencidos na pendência da ação atendíveis na fixação do valor da causa, também não o são para efeitos de mensuração do valor do vencimento ou da sucumbência.
 
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2. De Direito

Impõe-se, agora, resolver as questões suscitadas nos recursos de ambas as partes. [...]

2.2. Ónus de alegação e convite ao aperfeiçoamento (als. e)-k) do recurso da Embargante)
 
A Embargante sustenta que é facto notório ser “pessoa média”, cuja compreensão do conteúdo dos complexos contratos bancários em apreço não está ao seu alcance e que a alegação contida no art. 32.º da petição de Embargos referia factos essenciais respeitantes à violação do dever de informação. Se assim se não entender, devia ter tido lugar um convite de aperfeiçoamento.
 
À Embargante não assiste, contudo, qualquer razão.
 
Na alegação dos factos constitutivos da violação do dever de informação relativo às cláusulas contratuais, enquanto fundamento da pretensa nulidade do contrato e da livrança, cujo ónus de alegação e de prova lhes competia por se tratar de matéria excetiva – art. 342.º, n.º 2, do Cód. Civil –, os Embargantes invocaram, além do mais, que “os termos e condições dos referidos contratos são complexos, não estando a sua compreensão ao alcance dos executados” - art. 32.º da petição de embargos.
 
Perante a não consideração da alegação produzida na matéria de facto da sentença – com o fundamento de que “os embargantes não concretizaram da sua parte qualquer óbice a tal compreensão, limitando-se a alegar de forma genérica e conclusiva nos arts. 32. da PI que os termos e condições dos referidos contratos são complexos, não estando ao seu alcance, sem concretizar porquê (…) não se alegando e provando quais os aspectos compreendidos das cláusulas contratuais não negociadas cuja aclaração se justificava, nem quais os esclarecimentos razoáveis solicitados pelos executados embargantes” (fls. 274) –, os Embargantes colocaram a questão da ampliação da matéria de facto no recurso de apelação. Todavia, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que “A argumentação do Tribunal a quo merece a nossa adesão, pois a matéria alegada pelos ora recorrentes no art 32° da petição de embargos não chega sequer a ser conclusiva, sendo antes matéria genérica sem aptidão para minimamente individualizar a violação do dever de informação deduzida. Os embargantes não concretizaram o porquê de a compreensão dos contratos não estar ao alcance deles, não identificaram nem especificaram os aspectos insertos nas cláusulas contratuais cuja aclaração se justificava. A "complexidade" dos contratos apenas sugere uma realidade ideal, vaga e abstracta. E porque se trata de alegação genérica que não permite minimamente a individualização dessa violação do dever de informação, enfermando essa alegação de uma patologia similar à falta de causa de pedir, não pode a mesma ser suprida na sequência de eventual resposta a despacho de aperfeiçoamento (veja-se o n° 4 do art 590° do CPC), nem pode ser objecto de prova por não ter a mínima individualização necessária para poder ser objecto de instrução. Não estando alegados factos essenciais, não tem sentido falar na sua insuficiência e, por isso, não há lugar a qualquer convite para suprir aquela falta, no âmbito de qualquer das hipóteses referidas no citado art 590°. Tal convite, como nele bem se diz, pressupõe a alegação dos factos essenciais integrantes da causa de pedir (o que no caso não foi feito), não se destina a suprir tal falta. Não se verifica a invocada violação dos arts 5.º n.° 2 b), 6.º n.° 2 in fine, 411.°, 590.° n.° 4, todos do CPC e art 236.° do CC”.
 
Repare-se, com efeito, que a adjetivação dos termos e condições dos contratos como “complexos”, cuja compreensão não está “ao alcance dos Executados”, é afirmação conclusiva por ter de resultar do confronto entre, por um lado, os termos e condições dos contratos, com análise da linguagem, comum ou técnica, utilizada e, por outro lado, o grau de escolaridade e de conhecimento dos seus destinatários, os Embargantes. Estes descuraram a alegação e prova desse resultado. Não pode, pois, concluir-se pela ininteligibilidade ou incompreensão dos referidos termos e condições dos contratos em apreço.
 
Os Embargantes invocaram que a sua mediana (in)compreensão configura “facto notório” e que sempre aquela conclusão devia ter sido objeto de aperfeiçoamento judicial. Não têm razão. Desde logo, decidir se certo facto é ou não facto notório constitui ainda matéria de facto, do exclusivo julgamento pelas instâncias, por não se reconduzir a algum dos casos especialmente previstos no art. 674.º, n.º 3, do CPC, que facultam o conhecimento e modificação da matéria de facto pelo Supremo Tribunal de Justiça [Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de novembro de 1998 (Lemos Triunfante), proc. n.º 1049/98; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de março de 1999 (Armando Lourenço), proc. n.º 1232/98; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de junho de 2003 (Pires da Rosa), proc. n.º 1007/03; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de setembro de 2003 (Nuno Cameira), proc. n.º 1949/03]. Depois, não assume notoriedade o grau de complexidade dos contratos concretamente celebrados e a sua incompreensão pelos Embargantes, pois são notórios os factos que não carecem de alegação nem de prova por serem do conhecimento geral – art. 412.º, n.º 1, do CPC - e o conhecimento geral não se verifica in casu [...]. Em terceiro lugar, a omissão do convite ao aperfeiçoamento de irregularidades ou imprecisões da matéria de facto alegada consubstanciaria, em última análise, uma mera nulidade processual secundária, de que se reclama e de que se não recorre, há muito sanada por não oportunamente invocada (se existisse) e, nessa medida, não passível de ser ainda sindicada neste recurso – arts. 195.º, n.º 1, 196.º e 199.º, do CPC [Cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de outubro de 2003 (Salvador da Costa), proc. n.º 3103/03, de 22 de junho de 2005 (Silva Salazar), proc. n.º 1781/05, de 11 de julho de 2006 (Pires da Rosa), proc. n.º 1909/05, de 19 de dezembro de 2006 (Ferreira Girão), proc. n.º 4125/06, de 25 de janeiro de 2007 (João Bernardo), proc. n.º 4402/06, de 22 de abril de 2008 (Urbano Dias), proc. n.º 1067/08, de 10 de dezembro de 2009 (Garcia Calejo), proc. n.º 712/07.8TBETZ.E1.S1, de 20 de janeiro de 2010 (Santos Bernardino), proc. n.º 1282/03.1TBLGS.E1.S1, de 13 de setembro de 2016 (Gabriel Catarino), proc. n.º 1217/10.5TTBGRD.C1.S1, de 1 de março de 2018 (Maria do Rosário Morgado), proc. n.º 602/16.3T8AVR.S1]. Em seguida, a finalidade do convite judicial ao aperfeiçoamento da matéria de facto alegada tem em vista os casos em que a mesma se mostre insuficiente ou imprecisa – art. 590.º, n.º 4, do CPC – e não também aqueloutros em que se mostre inexistente – ou seja, os casos em que as afirmações produzidas não têm cunho factual e resvalam em meros juízos genéricos, conclusivos ou de direito. Com efeito, não houve nestes cumprimento mínimo, ainda que defeituoso, do ónus de alegação que mereça a concessão judicial do seu aperfeiçoamento em ordem a poder vir a mostrar-se funcionalmente adequado a permitir a procedência do pedido ou da exceção. Afigura-se logicamente evidente que só podem ser aperfeiçoadas as realidades previamente existentes e não as inexistentes.
 
Em síntese: decidir se certo facto é ou não facto notório constitui ainda matéria de facto, de exclusivo julgamento pelas instâncias, subtraído ao conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça por via de recurso de revista; a omissão do convite ao aperfeiçoamento de irregularidades ou imprecisões da matéria de facto alegada consubstanciaria, em última análise, uma mera nulidade processual secundária, de que se reclama e de que se não recorre, há muito sanada (se existisse) e, nessa medida, não passível de ser ainda sindicada neste recurso."
 
*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, o acórdão merece dois comentários críticos (para além de o STJ ter concluído que, afinal, os recursos eram, no todo ou em parte. inadmissíveis e, ainda assim, ter-se ocupado com o seu mérito).
 
Em primeiro lugar, quanto à qualificação do facto notório como matéria de facto. Apesar de o acórdão citar alguma outra jurisprudência do STJ, o que o facto notório não é certamente é matéria de facto. Um facto é notório (ou não notório) em função de determinados critérios, pelo que isso basta para que não possa ser considerado matéria de facto. O que depende de um determinado critério que tem de ser aplicado pelo tribunal (in casu, para qualificar um facto como notório ou não notório) nunca pode ser matéria de facto.
 
Em segundo lugar, quanto à qualificação da omissão do convite ao aperfeiçoamento como "uma mera nulidade processual secundária, de que se reclama e de que se não recorre". O acórdão segue a orientação de alguma jurisprudência e de alguns autores, mas essa orientação não é realista, nem lógica. 
 
Como se tem referido várias vezes neste Blog, a relevância da omissão do convite ao aperfeiçoamento só pode descortinar-se no momento da decisão, dado que, até lá, a parte não pode saber que o tribunal considera essencial a falta de um facto complementar que ela tinha o ónus de alegar. Sendo assim, cabe perguntar: como é que a parte, antes do proferimento da decisão, pode ter o ónus de reclamar de algo de que não pode conhecer? Mais em concreto: como é que a parte pode ter o ónus de reclamar de uma nulidade processual que ainda não se verificou?
 
Como as respostas a estas perguntas são evidentes, resta a alternativa de considerar que a relevância concedida na decisão à falta de factos complementares que poderia ter sido corrigida através de um convite ao aperfeiçoamento constitui um vício da própria decisão (em concreto, uma situação de excesso de pronúncia: art. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e  685.º CPC), contra o qual se reage nos termos gerais (art. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e  685.º CPC).
 
MTS