07/02/2020

Jurisprudência 2019 (170)


Sigilo profissional;
decisão da Relação; recurso*

1. O sumário de STJ 10/9/2019 (17359/17.3T8PRT-A.P1-A.S1) é o seguinte:

I - A circunstância do tribunal competente para decidir sobre a quebra do sigilo ser o tribunal superior àquele onde o incidente é suscitado não transforma tal incidente numa causa autónoma.

II – Deste modo, a admissibilidade do recurso para o Supremo terá que ser equacionada á luz do art. 671.º do CPCivil (recurso de revista), e não à luz do recurso de apelação.

III - A lei assim interpretada não padece de inconstitucionalidade.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Na sua reclamação para a presente conferência a Reclamante mantém, nuclearmente, a mesma argumentação que usou na reclamação contra o despacho do Exmo. juiz relator do Tribunal da Relação do Porto.

Afigura-se-nos, porém, que carece de razão.

E a sua falta de razão está devidamente justificada na decisão do relator.

Dado que também nada temos a aditar, excecionar ou retificar ao que consta dessa decisão, limitamo-nos basicamente a reafirmar o seguinte:

Está em causa um incidente de escusa em decorrência de sigilo profissional.

Processualmente estamos perante um incidente suscitado numa causa.

A circunstância de o tribunal competente para decidir sobre a quebra do sigilo ser o tribunal superior àquele onde o incidente é suscitado não transforma o incidente numa causa autónoma.

Deste modo, é impróprio falar aqui numa causa autónoma decidida em primeira instância pela Relação.

Logo, a admissibilidade do recurso para o Supremo tem que ser equacionada á luz do art. 671.º do CPCivil (recurso de revista), e não à luz do recurso de apelação.

O que significa que não pode ser subscrito o propósito da Reclamante em direcionar o recurso que interpôs para uma apelação, de forma a dar base à admissibilidade do recurso.

A decisão de que a ora Reclamante pretendeu recorrer incidiu sobre matéria interlocutória atinente à relação processual. Decisões interlocutórias são as decisões judiciais que não põem fim ao processo, ou seja, as que, embora apreciando questões destacáveis, não extinguem a instância. Não se trata de decisões finais, mas, antes, de decisões intercaladas, que tanto podem decidir questões de forma como questões de índole material. Decisão interlocutória é qualquer decisão que incida sobre questão de natureza incidental que surja no decorrer do processo.

E, sendo assim, aplica-se ao caso o n.º 2 do art. 671.º do CPCivil.

O que se passa simplesmente é que a aplicação desta norma resulta de uma adaptação à idiossincrasia do incidente em questão.

Exatamente como se aponta da decisão do relator, estamos perante uma hipótese de decisão interlocutória sui generis, proferida no contexto de um incidente compósito (no sentido de participarem nele duas instâncias) suscitado para todos os efeitos na 1ª instância, e sobre que recaiu o pronunciamento do tribunal de 2º grau (a Relação). Nestas circunstâncias, a lógica do sistema aponta para que aquela norma deva ser interpretada no sentido de abarcar os acórdãos da Relação que decidam o que lhes compete decidir no contexto desse incidente compósito.

Claro que ninguém duvida que a letra da norma aponta para a apreciação de uma decisão interlocutória da 1ª instância. Como ninguém duvida que esta decisão inexiste num caso como o vertente (a decisão da Relação foi proferida ex novo, e não por via de um recurso sobre uma anterior decisão da 1ª instância). Por isso é que se diz que a aplicação da referida norma resulta de uma adaptação à idiossincrasia do incidente em questão.

Ora, como também está expresso na decisão do relator, é preciso ter presente aquilo que se julga ser o definitivo espírito da lei. A lei entende que em matéria de decisões interlocutórias que recaiam sobre a relação processual não se justifica ir para além do tribunal da Relação, de modo que não é admitida a intervenção do grau superior à Relação (o Supremo).

Entretanto, é de esclarecer que irreleva em absoluto para o caso que haja ou não dupla conforme. O que é fundamental, no quadro do n.º 2 do art. 671º, não é que tenha havido uma apreciação sucessiva da mesma questão, mas sim que a Relação se tenha pronunciado, sendo definitivo esse pronunciamento (salvas as exceções legais previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 671.º, mas que aqui não concorrem e que, de resto, também não foram convocadas pela Recorrente).

E isso cumpre-se no caso vertente.

Mas mesmo que assim se não vejam as coisas, sempre se afigura que o n.º 2 do art. 671.º do CPCivil deve ser interpretado extensivamente, de forma a abranger na sua previsão a hipótese sui generis aqui em causa.

Como também se expressa na decisão do relator, o que vem de ser dito está em linha com a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça. Assim, no acórdão de 5 de julho de 2018 (processo n.º 842/11.1TBVNO-B.E1-A.S1, relator Abrantes Geraldes, disponível em www.dgsi.pt) recusou-se a admissibilidade de recurso para o Supremo do acórdão da Relação que se pronunciou sobre a quebra do sigilo profissional.

Mostra-se escrito nesse acórdão, e subscreve-se, que:

“A delimitação do recurso de revista é regulada pelo art. 671º do CPC, norma da qual não deriva a possibilidade de ser impugnada por essa via o acórdão da Relação proferido no âmbito de um qualquer incidente da instância (…).

Não existe motivo algum para excecionar desse regime o incidente de quebra de sigilo, como, aliás, tem sido uniformemente decidido por este mesmo Supremo Tribunal de Justiça, sendo disso exemplos os Acs. de 17-6-10, CJ, t. II, p. 113 e de 12-7-05, 05B1901, www.dgsi.pt. O mesmo se decidiu também, num caso que foi suscitado no âmbito de processo penal, na decisão sumária de 16-10-14, 1233/13, www.dgsi.pt.

Efetivamente a quebra de sigilo requerida no âmbito de qualquer processo é requerida perante a Relação, nos termos do art. 417º, nº 4, do CPC, por via do regime previsto no art. 135º do CPP.

Mas não passa de um incidente inscrito no âmbito da instrução da causa (…)".

Contra o decidido, argumentam os reclamantes que a decisão da Relação que foi proferida em torno da quebra do sigilo bancário é uma decisão de 1ª instância, admitindo, por isso, recurso.

Trata-se de um argumento que não encontra cobertura legal, não havendo motivo para amplificar, por essa via, o preceituado no art. 671º do CPC acerca dos acórdãos que admitem ou não admitem recurso.

Por certo que o recurso de revista nestas situações não está totalmente vedado, mas tal depende da integração em alguma das previsões do art. 629º do CPC, sendo que os reclamante não invocaram nenhuma dessas situações.”

No mesmo sentido se direcionou, entre outros, o acórdão deste Supremo de 12 de julho de 2005 (processo n.º 05B1901, relator Salvador da Costa, disponível em www.dgsi.pt), de cujo sumário se pode ler que “Não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação que conheceu da dispensa de sigilo bancário no incidente suscitado no tribunal da primeira instância a que se reportam os artigos 519º, nº 4, do Código de Processo Civil e 135º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal”.

Pondera-se nesse acórdão, que “estamos perante um incidente de estrutura especial, que não segue as regras normais de competência jurisdicional, certo que atribui competência para a sua decisão ao tribunal que seria, segundo a regra geral, competente para a apreciação do recurso sobre ela.

Num quadro de conflito de interesses que se suscita em sede de oferecimento e de produção de prova, cuja resolução de modo célere se impõe em termos instrumentais à decisão da causa, a lei, ao estruturar o incidente em análise, pretendeu que da respectiva decisão não houvesse recurso.

Para tanto, em postura de salvaguarda do interesse das partes numa melhor apreciação do objecto do incidente, atribuiu a lei a competência para a respectiva decisão ao tribunal que seria competente para conhecer da matéria em via de recurso se o objecto do incidente tivesse sido decidido na instância em que foi suscitado ou implementado.

Assim, neste peculiar incidente, sob a necessidade da celeridade da decisão e da natureza meramente instrumental dos interesses em conflito, consignou-se pela referida via implícita, a proibição da instância de recurso, contrabalançada pela atribuição da competência decisória ao tribunal hierarquicamente superior àquele onde o incidente foi suscitado.

Assim, resulta da estrutura do incidente em causa que a Relação decide em definitivo o respectivo objecto, ou seja, da decisão por ela proferida não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.”"

*3. [Comentário] a) Embora se percebam algumas das razões invocadas pelo STJ, a verdade é que o tribunal superior decide em substituição do tribunal de hierarquia inferior, nomeadamente do tribunal de 1.ª instância. Nesta perspectiva, não custa admitir que o regime do recurso tenha de ser o mesmo que seria aplicado se a decisão tivesse sido tomada pelo tribunal de hierarquia inferior (isto é, pelo tribunal do processo).

Há, efectivamente, uma substituição do tribunal inferior pelo tribunal superior, não um recurso daquele tribunal para este tribunal. O tribunal superior não reaprecia uma decisão de tribunal inferior, antes decide, pela primeira vez, em substituição deste tribunal. Logo, o que se deve aplicar ao recurso da decisão do tribunal superior é o regime que seria aplicável se a decisão fosse proferida pelo tribunal "substituído". 

Em suma: muda a hierarquia do tribunal competente, mas não muda a hierarquia da decisão proferida; trata-se (e não é mais do que isso) de uma primeira decisão que é proferida por um tribunal de segunda instância; sendo assim, tem todo o sentido admitir recurso dessa decisão.

b) Pode ainda acrescentar-se que não parece muito feliz a invocação do art. 671.º, n.º 2, CPC (mas Abrantes Geraldes/P. Pimenta/Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado I (2018), Art. 671 n.º 5). Aquele preceito refere-se a recursos "continuados", isto é, a recursos para o STJ de acórdãos da Relação que apreciam decisões proferidas pela 1.ª instância, não a recursos de decisões (ainda por cima não interlocutórias) proferidas, pela primeira vez, pela Relação. Esta situação é regulada pelo art. 673.º CPC, do qual, aliás, dificilmente algo se poderia retirar de útil para a admissibilidade ou inadmissbilidade do recurso da decisão da Relação sobre a dispensa do sigilo profissional.

MTS