20/02/2020

Jurisprudência 2019 (179)


Advogado;
sigilo profissional

1. O sumário de RC 24/9/2019 (32/15.4T8SCD-A.C1) é o seguinte:

I – O artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (E.O.A.) impõe a estes profissionais um dever de guardar segredo nos termos aí previstos.

II - O n.º 7 do art.º 92.º do E.O.A. estipula que o dever de guardar sigilo quanto aos factos cobertos pelo sigilo profissional é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional.

III - O art.º 4[1]7º, n.º 3, do C. P. Civil, por sua vez, determina que devem escusar-se a depor as pessoas que estejam adstritas ao segredo profissional, relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo.

IV - A recusa em depor, com fundamento na observância de sigilo sobre determinados factos, corresponde ao exercício de um dever por parte da testemunha.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Na audiência de julgamento de uma acção em que se discutia a eficácia e validade da transmissão do direito de propriedade sobre quatro prédios rústicos, com fundamento na utilização de procuração revogada, prestaram depoimento, na qualidade de testemunhas arroladas pelo Autor, M... e P...
 
Na mesma audiência foi proferido despacho, ordenando a junção aos autos do original daquela procuração que a última testemunha tinha consigo.
 
No decurso destes depoimentos, os mandatários dos réus deduziram oposição a que os mesmos fossem considerados válidos por o seu conteúdo estar abrangido pelo sigilo profissional dos advogados, assim como, com igual motivo, se opuseram à junção daquela procuração.
 
Foram proferidos despachos, indeferindo os referidos requerimentos.
 
Com a interposição do presente recurso os Réus Recorrentes pretendem a revogação desses despachos, declarando-se a nulidade dos referidos depoimentos e da junção do documento, com fundamento na violação do sigilo profissional dos advogados. [...]
 
O art.º 4[1]7º, n.º 3, do C. P. Civil, por sua vez, determina que devem escusar-se a depor as pessoas que estejam adstritas ao segredo profissional, relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo.
 
A recusa em depor, com fundamento na observância de sigilo sobre determinados factos, corresponde ao exercício de um dever por parte da testemunha. Como referia Alberto dos Reis, o segredo profissional não é só fundamento legítimo de recusa a depor; é mais do que isso, obstáculo ao depoimento, ou melhor, inibição para depor. Quer dizer, a pessoa sujeita ao sigilo profissional não só tem o direito de se recusar a depor, como...tem mesmo o dever de tomar essa atitude. O segredo profissional não tem o carácter de regalia concedida ao titular de função, ministério ou profissão, que lhe permita dispensar-se de depor; tem a natureza de obrigação que impende sobre ele e o impossibilita de prestar depoimento [Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, pág. 335, Coimbra Editora, 1951].
 
O n.º 5 do art.º 92º do E.O.A. [...] determina que os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo, donde resulta que existe uma inabilidade legal para o advogado depor como testemunha em processo judicial sobre factos cobertos pelo sigilo profissional [...].
 
Daí que a parte contra a qual for produzida uma testemunha nessas condições possa impugnar o seu depoimento na matéria coberta pelo sigilo, nos termos processuais previstos no art.º 515º do C. P. Civil, com as adaptações que se revelarem necessárias ao tipo de inabilidade em causa.
 
Foi essa impugnação que ocorreu no presente caso, relativamente ao depoimento de duas testemunhas arroladas pela Autora, abrangendo ainda um documento que se encontrava em poder de uma dessas testemunhas e cuja junção aos autos foi ordenada, tendo as sucessivas impugnações improcedido.
 
O facto sobre o qual as testemunhas depuseram e que os Recorrentes alegam encontrar-se sob sigilo profissional é a entrega pelo Réu M... ao mandatário da Autora, L..., do original de uma procuração que a Autora havia emitido a favor desse Réu.
 
A testemunha P..., relativamente à razão de ciência do seu depoimento, declarou ser filha do mandatário da Autora e de, no período de 2010 a 2015, ter ajudado o seu pai na informática do escritório sem nunca ter sido empregada dele ou recebendo qualquer remuneração, altura em que observou a entrega da referida procuração.
 
Ora, o n.º 7 do transcrito art.º 92.º do E.O.A. estipula que o dever de guardar sigilo quanto aos factos cobertos pelo sigilo profissional é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, situação que abrange a referida testemunha, uma vez que esta teve conhecimento dos factos relatados em virtude da colaboração informática que, na altura, prestava no escritório do seu pai. A inexistência de uma relação laboral ou de qualquer remuneração é irrelevante para o preenchimento do conceito de colaborador, o qual se basta com a prestação regular de serviços no escritório de advocacia. A confiança que é depositada no advogado quanto ao sigilo de determinados factos é extensível a todos aqueles que, independentemente do vínculo que os liga ao advogado, com ele colaboram no exercício da sua profissão, pois, só assim, é possível assegurar a protecção dessa confiança.
 
O n.º 1 do art.º 92.º do E.O.A. determina que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, exemplificando nas alíneas que se seguem tipos de factos que estão abrangidos por esse dever de sigilo.
 
Apesar desta enumeração de tipos de factos não ser taxativa, mas sim exemplificativa, como resulta do termo “designadamente”, estamos perante a utilização da técnica legislativa dos exemplos-padrão. Com esta técnica pretende-se evitar a excessiva amplitude da fórmula constante do corpo deste preceito “todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”, facultando-se através da enunciação de tipos-padrão de factos, uma matriz que permita ao intérprete delimitar quais são realmente os factos que estão cobertos pelo sigilo profissional, em razão da legítima expectativa de confiança nesse sigilo que depositaram aqueles que se relacionaram com o advogado e os seus colaboradores quando estes se encontram no exercício das suas funções.
 
Tendo em consideração que o interesse que se pretende salvaguardar com a imposição do sigilo profissional dos advogados é a confiança daqueles que se relacionam com estes profissionais, no exercício das suas funções, devem considerar-se abrangidos por esse dever os factos que o advogado teve conhecimento nas situações descritas nas alíneas do n.º 1 do art.º 92.º do E.O.A., e relativamente aos quais se justifique uma confiança na sua não revelação, assim como aqueles que, com igual justificação, sejam revelados em situações equiparáveis às descritas naquelas alíneas, em razão do interesse protegido com a imposição do sigilo.
 
No presente caso, o facto relativamente ao qual se discute se a sua revelação está coberta pelo sigilo profissional é o da entrega do original de uma procuração pelo procurador ao advogado do representado, na sequência da revogação do respectivo mandato.

Estamos perante a prática de um acto negocial que revela a aceitação pelo procurador da revogação operada pelo mandante, o que não se insere em nenhuma das situações descritas nas diferentes alíneas do n.º 1 do art.º 92º do E.O.A., designadamente a revelação de factos pela contraparte durante as negociações para acordo que vise pôr termo a um diferendo ou litígio - alínea e) do n.º 1 do art.º 92.º do E.O.A..
 
Nas circunstâncias previstas nesta alínea, sendo desejável uma autocomposição das partes espera-se destas um comportamento de boa-fé, o que pressupõe que se aja com uma certa dose de confiança que deve ser protegida. O esforço de fazer sentir à parte contrária as razões próprias obriga a que se abra o jogo e se digam factos que não se devem converter em trunfos para o adversário. Sendo provável a existência, nestas negociações, do objectivo de conseguir uma transacção, é natural que se façam cedências ou concessões cuja revelação se não quer [Acórdão da Relação do Porto de 28-10-2015, no site www.dgsi.pt, relatado por Rodrigues Pires].
 
O mesmo não sucede no presente caso, em que não nos encontramos perante uma qualquer negociação com intervenção de advogados, mas simplesmente perante a verificação de um acto que poderia ter sido praticado directamente na pessoa da contraparte negocial – a entrega do original da procuração revogada.
 
Não há neste caso qualquer justificação para que alguém, ao praticar na pessoa do advogado, enquanto representante da contraparte, tal acto, crie a confiança que o mesmo não poderá ser revelado, sob pena de estar descoberto o caminho para frustrar a prova de actos com relevância negocial [No mesmo sentido, relativamente a actos que poderiam ter si praticados na pessoa do mandante, os Acórdãos da Relação do Porto, no site www.dgsi.pt, de 28-10-2015, relatado por Rodrigues Pires, e de 24-9-2018, relatado por Jorge Seabra].
 
Por essa razão, a testemunha P... não estava vinculada a qualquer sigilo profissional, relativamente aos factos por si relatados, pelo que se revela correta a decisão de indeferir a impugnação do seu depoimento.
 
A testemunha M... depôs sobre a mesma factualidade, declarando ser advogada e exercer a sua actividade de forma independente numa sala do escritório do mandatário da Autora, tendo visto o Réu M... na sala de espera para ser recebido por aquele advogado, vindo a saber ainda nesse dia, através de conversa tida com P... que auxiliava o pai no escritório que o motivo da visita do Réu tinha sido a entrega de uma procuração.
 
Apesar desta testemunha não estar directamente abrangida por sigilo profissional, uma vez que não teve conhecimento dos factos relatados no exercício das sua profissão de advogada, mas apenas devido à circunstância do seu escritório se situar no mesmo edifício onde se situa o escritório do mandatário da Autora, caso tais factos estivessem abrangidos pelo sigilo profissional de quem lhos relatou - a testemunha P... - o seu depoimento, nessa parte, não podia ser valorado, nos termos do disposto no n.º 5 do art.º 92.º do E.O.A., também aplicável aos colaboradores dos advogados.
 
Contudo, como já vimos, esses factos não estavam cobertos pelo sigilo profissional, pelo que também o depoimento desta testemunha não infringiu qualquer dever de sigilo, revelando-se correta a decisão de indeferir a respectiva impugnação.

Os recorrentes também sustentam que o original da procuração em causa não poderia ter sido junto aos autos, atento o disposto no n.º 3 do art.º 92.º do E.O.A.

Dispõe este preceito que o segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

Ora, não estando os factos relacionados com a procuração - a sua entrega ao mandatário da Autora - abrangidos pelo sigilo profissional, também o original da procuração junta aos autos não se encontra por ele coberto, nos termos do n.º 3 do art.º 92.º do E.O.A., pelo que nada obstava à sua junção aos autos como meio de prova, improcedendo também nesta parte os recursos interpostos.

Por todas estas razões devem os recursos serem julgados improcedentes, mantendo-se as decisões recorridas."

[MTS]