28/02/2020

Jurisprudência 2019 (185)


 Contrato de transporte aéreo;
 competência internacional; CLug II


1. O sumário de STJ 3/10/2019 (262/18.7T8LSB-A.L1-A.S1) é o seguinte:

I. Ainda que esteja em causa acórdão da Relação que apreciou decisão interlocutória que recai unicamente sobre a relação processual, o recurso é admissível ao abrigo do art. 671º, nº 2, alínea a), do CPC; com efeito, tendo como fundamento a violação das regras de competência internacional, trata-se de uma das situações em que o recurso é sempre admissível, independentemente do valor da acção (cfr. art. 629º, nº 2, alínea a), do CPC), sendo afastado o obstáculo da dupla conforme (cfr. ressalva inicial do nº 3 do art. 671º do CPC).

II. Na resolução da questão da competência internacional, considera-se que o percurso metodológico adequado para o efeito implica: (i) determinar o instrumento normativo pertinente; (ii) identificar a norma ou normas aplicáveis; (iii) interpretar a norma ou normas identificadas.

III. Tal como entendeu o acórdão recorrido, tendo em conta a data de propositura da presente acção (04/01/2018), deve ponderar-se a aplicabilidade das regras do Regulamento nº 1215/2012, de 12/12 (Regulamento Bruxelas IBis) ou das regras da Convenção assinada em Lugano a 30/10/2007, relativa à “Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial” (Convenção de Lugano II).

IV. Por interpretação
a contrario do art. 6º, nº 1, do Regulamento nº 1215/2012, entende-se comummente que o critério geral para definir o âmbito espacial de aplicação daquele regime de direito europeu é o de que o demandado tenha domicílio no território de um dos Estados-Membros da UE. No caso dos autos, verifica-se ter a ré sede na Suíça, pelo que – de acordo com o disposto no art. 63º, nº 1, alínea a), do Regulamento nº 1215/2012 – não se encontra domiciliada no território de um Estado-Membro da UE; deste modo, por falta de inserção no respectivo âmbito espacial de aplicação, é de concluir pelo afastamento do regime do Regulamento nº 1215/2012.

V. No que respeita ao âmbito espacial de aplicação da Convenção de Lugano II, convenção que tem como objectivo primacial estender às partes contratantes os princípios do Regulamento nº 44/2001 (antecessor do Regulamento nº 1215/2012), nela se adopta (art. 4º, nº 1) uma regra equivalente à do art. 6º, nº 1 do Regulamento nº 1215/2012. Deste modo, sendo o âmbito espacial de aplicação da Convenção de Lugano II definido em razão de o demandado ter domicílio no território de uma das partes contratantes e encontrando-se a ré domiciliada no território da Suíça, Estado que é parte contratante da Convenção de Lugano II, confirma-se a inserção da presente lide no respectivo âmbito espacial de aplicação.

VI. No presente recurso suscitam-se dúvidas sobre a inserção do caso
sub judice no âmbito material de aplicação da Convenção de Lugano II, pretendendo a recorrente que, ao abrigo da previsão do nº 1 do artigo 67º da mesma Convenção, seja antes aplicável a Convenção de Montreal – Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional que contém regras próprias de competência internacional (art. 33º), que conduzem a um resultado distinto do que resulta da aplicação das normas da Convenção de Lugano II.

VII. Ora, na actividade de interpretação e aplicação das normas da Convenção de Lugano II, encontra-se este Supremo Tribunal vinculado, ao abrigo do nº 2 do art. 1º do Protocolo nº 2 à mesma Convenção, a respeitar a interpretação das normas equivalentes do Regulamento nº 44/2001, tal como realizada pelo TJUE.

VIII. No Acórdão de 09/07/2009, proferido no Processo C-204/08 (Peter Rehder contra Air Baltic Corporation), relativo a um caso idêntico ao caso dos autos, em que estava em causa uma acção para, numa situação de “cancelamento” de voo, exercer o direito de indemnização previsto no artigo 7º do Regulamento nº 261/2004, o TJUE resolveu a questão preliminar da delimitação entre o âmbito material de aplicação do Regulamento nº 44/2001 e o da Convenção de Montreal, no sentido do afastamento desta última.

IX. Assim, ainda que não se ignorem as objecções críticas feitas a esta orientação jurisprudencial do TJUE, sobretudo em razão do princípio da exclusividade ínsito no art. 29º da Convenção de Montreal, considera-se que a norma do nº 1 do art. 67º da Convenção de Lugano II que ressalva as convenções especiais, sendo substancialmente idêntica à norma do nº 1 do artigo 71º do Regulamento nº 44/2001, deve ser interpretada de acordo com a orientação do acórdão do TJUE referido em VIII; em consonância, tendo o pedido do autor sido apresentado com base apenas no Regulamento n° 261/2004, deve ser examinado à luz da Convenção de Lugano II.

X. Estando em causa uma acção de responsabilidade por incumprimento de contrato de transporte aéreo, da aplicação conjugada das normas do art. 5º, nº 1, da Convenção de Lugano II, resulta a necessidade de determinar qual é o “lugar de cumprimento da obrigação do transportador” (alínea a)), sendo que – uma vez que o contrato de transporte se integra na categoria mais ampla do contrato de prestação de serviços – esse lugar será “o lugar num Estado vinculado pela presente convenção onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados” (alínea b), segundo travessão).

XI. Também quanto às dúvidas interpretativas das normas indicadas em X – e em razão da previsão do nº 2, do art. 1º, do Protoloco nº 2 à Convenção de Lugano II –, se encontra este Supremo Tribunal, enquanto tribunal de um Estado-Membro da UE, vinculado a respeitar a interpretação que o TJUE fez de normas do Regulamento nº 44/2001, desde que substancialmente equivalentes a normas daquela Convenção.

XII. Tais dúvidas foram apreciadas e decididas pelo TJUE a respeito das normas equivalentes do Regulamento nº 44/2001, no referido Acórdão de 09/07/2009 (Peter Rehder contra Air Baltic Corporation), em sentido que, nos termos do Protocolo nº 2 à Convenção, é aplicável à interpretação das normas da Convenção, a saber: o tribunal competente para conhecer de um pedido de indemnização baseado em contrato de transporte aéreo e no Regulamento n° 261/2004 é aquele, à escolha do demandante, em cujo foro se situa o lugar de partida ou o lugar de chegada do voo, tal como esses lugares são estipulados no referido contrato; sem prejuízo da possibilidade de o demandante se dirigir ao tribunal do lugar do domicílio do demandado, que, no caso de pessoas colectivas, e de acordo com o art. 60º, nº 1, da Convenção de Lugano II, é o lugar da sede social, ou da administração central ou do estabelecimento social.

XIII. Deste modo, no caso dos autos, para exercer o direito de indemnização previsto no art. 7º do Regulamento nº 261/2004, o autor podia optar por demandar a ré: (i) na jurisdição do lugar de partida do voo cancelado, a jurisdição portuguesa; (ii) ou na jurisdição do lugar do destino do mesmo voo, a jurisdição suíça, que, simultaneamente, é a jurisdição do lugar do domicilio da demandada.

XIV. Conclui-se, assim, pela competência dos tribunais portugueses para o conhecimento da presente acção.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"6. Recorde-se que a decisão de 1ª instância considerou os tribunais portugueses competentes para o conhecimento da causa, por aplicação do regime do Código de Processo Civil (conjugando a norma do artigo 62º, alínea b), com a do artigo 81°, n° 2, parte final, e ainda com o previsto no artigo 71°, n° 1, 1ª parte), conclusão que, no entender da mesma decisão, seria compatível com a previsão do artigo 7°, n° 1, alínea b), do Regulamento n° 1215/2012, de 12 de Dezembro, que, nas palavras utilizadas, tem sido interpretado “no sentido de que o tribunal competente para conhecer de um pedido de indemnização baseado num contrato de transporte aéreo de pessoas é aquele, à escolha do requerente, em cujo foro se situa o lugar de partida ou de chegada do avião.”

A Relação manteve a decisão de reconhecimento da competência dos tribunais portugueses, mas com diferente fundamentação, que aqui se sintetiza:

- Afastou a aplicação do regime do Código de Processo Civil;

- Considerou que, não sendo a Suíça um Estado membro da União Europeia, a competência internacional para conhecer da presente acção se encontra regulada pela Convenção de Lugano II, cujas regras são alinhadas pelas regras do Regulamento nº 44/2001, de 16 de Janeiro (antecessor do Regulamento nº 1215/2012);

- Entendeu ser aplicável a norma do artigo 5º, nº 1, alínea b), segundo travessão, da Convenção de Lugano II, norma que tem correspondência com a norma do artigo 5º, nº 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento nº 44/2001 (assim com a do artigo 7º, nº 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento nº 1215/2012);

- De acordo com o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) de 9 de Julho de 2009, proferido no Processo C-204/08 (Peter Rehder vs Air Batic Corporation), a referida norma do artigo 5º do Regulamento nº 44/2001 deve ser interpretada no sentido de o tribunal competente para apreciar uma acção indemnizatória por cancelamento de um voo internacional intracomunitário ser “aquele, à escolha do requerente, em cujo foro se situa o lugar de partida ou o lugar de chegada do avião, tal como esses lugares são estipulados no referido contrato”;

- Tal interpretação é válida para o caso dos autos, em conformidade com as regras relativas à interpretação uniforme da Convenção de Lugano II, consagradas no respectivo Protocolo nº 2. [...]

Insurge-se a Recorrente contra esta decisão [...].

7. Importa, assim, começar por determinar a fonte normativa ao abrigo da qual a questão da competência internacional para conhecer da presente lide deve ser equacionada.

De acordo com os princípios constitucionais relativos à integração, na ordem jurídica interna, quer das normas constantes de convenções internacionais ratificadas pelo Estado português quer das disposições emanadas das instituições da União Europeia (artigo 8º, nºs 1, 2 e 4 da Constituição da República Portuguesa), entende-se que, existindo fonte normativa internacional ou supranacional reguladora da competência internacional, é de afastar a aplicação das regras dos artigos 62º e 63º do Código de Processo Civil, como aliás se encontra expressamente previsto no artigo 59º do mesmo Código.

7.1. Tal como entendeu o acórdão recorrido, tendo em conta a data de propositura da presente acção (04/01/2018), deve ponderar-se a aplicabilidade das regras do Regulamento nº 1215/2012, de 12 de Dezembro (Regulamento Bruxelas IBis) ou das regras da Convenção assinada em Lugano a 30 de Outubro de 2007, entre os Estados da União Europeia, a Suíça, a Noruega e a Islândia, relativa à “Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial” (Convenção de Lugano II).

Está em causa a inserção da presente acção no âmbito temporal de aplicação de cada um dos indicados instrumentos normativos.

Tendo a acção sido proposta na referida data, encontra-se abrangida tanto pelo âmbito temporal de aplicação do Regulamento nº 1215/2012 (o qual, nos termos do respectivo artigo 66º, nº 1, abrange as acções intentadas a partir de 10 de Janeiro de 2015) como pelo âmbito temporal de aplicação da Convenção de Lugano II (a qual, de acordo com as regras previstas nos respectivos artigos 63º, nº 1, e 69º, nºs 4 e 5, entrou em vigor entre a União Europeia e a Suíça em 1 de Janeiro de 2011, segundo informação publicada no JOUE L 138/1, de 26/05/2011).

Prosseguindo no iter de determinação da fonte normativa aplicável à resolução da questão do presente recurso, falta ainda verificar se o caso sub judice se insere no âmbito espacial de aplicação e no âmbito material de aplicação do Regulamento nº 1215/2012 ou da Convenção de Lugano II.

7.2. Quanto ao âmbito espacial de aplicação do Regulamento nº 1215/2012, dispõe o nº 1 do respectivo artigo 6º:

“Se o requerido não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18.º, n.º 1, do artigo 21.º, n.º 2, e dos artigos 24.º e 25.º, regida pela lei desse Estado-Membro.”

Por interpretação a contrario desta norma (tal como anteriormente da norma do nº 1 do artigo 4º do Regulamento nº 44/2001), entende-se comummente que o critério geral para definir o âmbito espacial de aplicação daquele regime de direito europeu é o de que o demandado tenha domicílio no território de um dos Estados-Membros da União Europeia.

No caso dos autos, verifica-se ter a R. sede na Suíça, pelo que – de acordo com o disposto no artigo 63º, nº 1, alínea a), do Regulamento nº 1215/2012 – não se encontra domiciliada no território de um Estado-Membro da União Europeia.

Deste modo, por falta de inserção no respectivo âmbito espacial de aplicação, é de concluir pelo afastamento do regime do Regulamento nº 1215/2012.

No que respeita ao âmbito espacial de aplicação da Convenção de Lugano II, convenção que, como consta do Preâmbulo, tem como objectivo primacial estender às partes contratantes (União Europeia e certos Estados da EFTA) os princípios do Regulamento nº 44/2001 (antecessor do Regulamento nº 1215/2012), nela se adopta, no nº 1 do artigo 4º, uma regra equivalente à do supra transcrito artigo 6º, nº 1, do Regulamento nº 1215/2012, a saber:

“Se o requerido não tiver domicílio no território de um Estado vinculado pela presente convenção, a competência será regulada em cada Estado vinculado pela presente convenção pela lei desse Estado, sem prejuízo da aplicação do disposto nos artigos 22.º e 23.º”

Deste modo, o âmbito espacial de aplicação da Convenção de Lugano II é também definido em razão de o demandado ter domicílio no território de uma das partes contratantes.

Na medida em que, de acordo com o artigo 60º, nº 1, alínea a) da Convenção de Lugano II, uma pessoa colectiva tem domicílio na sua sede social, a R. encontra-se domiciliada no território da Suíça, Estado que é parte contratante da Convenção de Lugano II. Confirma-se assim a inserção da presente lide no respectivo âmbito espacial de aplicação."

[MTS]