11/03/2020

Jurisprudência 2019 (193)


Valor da causa;
recorribilidade

 
I. O sumário de RE 10/10/2019 (76/12.8TBMCQ-A.E1) é o seguinte:

1 – Se o recurso do saneador-sentença que, além de conhecer do mérito da causa, fixou o valor desta última, for interposto e admitido ao abrigo do disposto no artigo 629.º, n.º 2, al. b), do CPC, e o tribunal ad quem concluir que o valor da causa não excede a alçada do tribunal a quo, o recurso deverá ser imediatamente julgado improcedente, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo recorrente.

2 – À petição de embargos de executado é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 552.º do CPC, nomeadamente na al. f) do seu n.º 1, pelo que o embargante deverá indicar o valor dos embargos. Na falta dessa indicação, considera-se que o embargante aceita, como valor dos embargos, o da acção executiva.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O n.º 1 do artigo 629.º do CPC (diploma ao qual pertencem as normas doravante referenciadas sem menção da sua origem) estabelece a regra de que o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa. O n.º 2 do mesmo artigo prevê excepções a esta regra. Nomeadamente, nos termos da al. b), é sempre admissível recurso, independentemente do valor da causa e da sucumbência, das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre. Trata-se aqui de «uma aplicação do princípio que o Prof. Castro Mendes designa como “tutela provisória da aparência”, na medida em que, na dúvida sobre o valor de um processo, se trata a situação como se o valor fosse superior ao da alçada do tribunal a quo, permitindo-se o recurso» [
Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lisboa, 1992, páginas 154-155].

O presente recurso foi interposto e admitido ao abrigo desta norma excepcional. Logo, caso se conclua que o valor dos presentes embargos de executado não excede a alçada do tribunal a quo, o recurso deverá ser imediatamente julgado improcedente, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo recorrente. Por outras palavras, o conhecimento, pelo tribunal ad quem, das questões subsequentes à do valor da causa está dependente de se concluir que este último permite o recurso nos termos estabelecidos no n.º 1 do artigo 629.º.

O recorrente baseia a sua tese sobre o valor dos embargos, desde logo, em pressupostos de facto manifestamente errados. Temos em vista a conclusão 5.ª, na qual aquele afirma que, em 27.10.2010, em requerimento de injunção, foi peticionado o valor global de € 4.631,32, pelo que, à data da audiência prévia, o valor dos juros vencidos, nos termos e para os efeitos do artigo 297.º, n.º 2, 2.ª parte, é de € 1.482,53 (calculados à taxa de 4%) e, por isso, o valor da causa deveria ser de € 6.113,85. Estaria assim, segundo o recorrente, viabilizado o recurso.

Não é assim. O valor indicado no requerimento de injunção foi de € 4.631,32, mas, no requerimento executivo, a recorrida, reconhecendo que, entretanto, o executado lhe pagara € 3.436,30, alegou que a dívida era, naquele momento, de apenas € 1.195,02, valor este cuja cobrança pretendia, acrescido de juros de mora vincendos, custas, despesas e honorários do agente de execução e demais encargos com esta última. Em conformidade, a recorrida indicou, como valor da execução, € 1.195,02. Logo, mesmo de acordo com a forma de cálculo proposta pelo recorrente, nunca o valor em dívida na data em que a audiência prévia se realizou excederia € 5.000,00, que é o valor da alçada do tribunal a quo, nos termos do artigo 44.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto).

O recorrente também labora em erro de direito.

Os embargos de executado constituem uma acção declarativa enxertada no processo executivo, uma contra-acção através da qual o embargante pretende obstar à agressão do seu património através deste último. Não se trata de uma contestação integrada no próprio processo executivo, mas sim de uma acção declarativa estruturalmente autónoma, proposta através da apresentação em juízo de uma petição inicial. Se esta petição for liminarmente recebida, o exequente/embargado será notificado para contestar, dentro do prazo de 20 dias, seguindo-se, sem mais articulados, os termos do processo comum declarativo (artigo 732.º, n.º 2). A procedência dos embargos extingue a execução, no todo ou em parte (n.º 4 do mesmo artigo).

À petição de embargos é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 552.º, nomeadamente na al. f) do seu n.º 1. Ou seja, o embargante deverá indicar o valor da causa.

Os artigos 296.º a 310.º, que regulam o incidente de verificação do valor da causa, não estabelecem um regime específico para a fixação do valor dos embargos de executado, pelo que tem de se lhes considerar aplicável o disposto no n.º 1 do artigo 304.º do mesmo código, que dispõe que o valor dos incidentes é o da causa a que respeitam, salvo se o incidente tiver realmente valor diverso do da causa, porque nesse caso o valor é determinado em conformidade com os artigos anteriores, bem como no n.º 1 do artigo 307.º, que estabelece que, se a parte que deduzir qualquer incidente não indicar o respectivo valor, se entende que aceita o valor dado à causa.

Na petição de embargos, o recorrente não indicou o valor da causa. Consequentemente, por força dos citados artigos 304.º, n.º 1, e 307.º, n.º 1, considera-se que o recorrente aceitou, como valor dos embargos, o da execução, sendo acertada a decisão do tribunal a quo de atribuir, aos primeiros, o valor da segunda. Sendo esse valor de € 1.195,02, não excede o da alçada do tribunal de 1.ª instância e, consequentemente, nos termos do n.º 1 do artigo 629.º, o saneador-sentença recorrido não era, afinal, susceptível de ser objecto de recurso de apelação, ficando, assim, prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas pelo recorrente. Deverá, pois, o recurso ser julgado improcedente."

III. [Comentário] O acórdão merece uma rectificação. 

A recorribilidade depende, entre outros factores, da circunstância de o valor da causa exceder a alçada do tribunal que proferiu a decisão impugnada. Trata-se de um pressuposto processual do recurso, respeitante, como, aliás, resulta da letra do art. 629.º, n.º 1, CPC, à sua admissibilidade.

Sendo assim, a falta desse pressuposto de recorribilidade nunca pode conduzir à improcedência do recurso. O que sucede é que falta um pressuposto que impede que o tribunal ad quem se pronuncie sobre o mérito do recurso, não chegando este tribunal, por isso, a decidir sobre a procedência ou improcedência do recurso.

MTS