11/03/2020

Aplicação no tempo do art. 721.º, n.º 5, do CPC (exequibilidade da nota discriminativa de honorários e despesas do agente de execução)


1. A questão a solucionar consiste em saber se, em regra, a exequibilidade dos títulos executivos é definida pela lei em vigor à data da execução.  
 
Admita-se a seguinte hipótese: em 01/06/2009, o credor exequente A instaurou execução em processo comum para pagamento de quantia certa que moveu contra o devedor executado B, tendo sido designado nesse processo agente de execução C; este agente praticou diligências executivas que lhe foram requeridas por aquele credor; a final, em função das provisões entregues e dos atos praticados, foi elaborada a nota discriminativa de honorários e despesas do agente de execução pelo exercício das suas funções, de acordo com a Portaria n.º 331-B/2009, de 30/03, tendo-se verificado existir um saldo devedor de € 500,00, da responsabilidade do exequente; em 30/06/2013, o agente de execução notificou este credor para lhe pagar os honorários devidos em conformidade com o disposto na mencionada portaria; o exequente não reclamou dos honorários e das despesas, nem procedeu ao pagamento da quantia em dívida; para obter a cobrança daquele montante, em 30/10/2013, o agente de execução instaurou processo executivo contra o credor A, dando à execução a nota discriminativa de honorários e despesas por si elaborada no processo em que foi designado, acompanhada de comprovativo da sua notificação ao exequente naquele processo.

2. O artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho – que aprova o Código de Processo Civil – estabelece o seguinte: “O disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, aplica-se, com as necessárias adaptações, a todas as execuções pendentes à data da sua entrada em vigor”; determinando o seu n.º 3 que: ”O disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, relativamente aos títulos executivos, às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor”.

Por sua vez, dispõe o n.º 5 do artigo 721.º do mesmo Código que: “A nota discriminativa de honorários e despesas do agente de execução da qual não se tenha reclamado, acompanhada da sua notificação pelo agente de execução ao interveniente processual perante o qual se pretende reclamar o pagamento, constitui título executivo”.

Com base nestes normativos, poder-se-á entender, na execução instaurada para cobrança dos honorários do agente de execução, que falta título executivo?

3. Antecipando a nossa resposta, parece dever entender-se que o artigo 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, não constitui um desvio à regra geral em matéria de aplicação no tempo da lei processual que determina a exequibilidade.

Com efeito, a norma de direito processual que estabelece os requisitos de exequibilidade dos títulos executivos - que, no atual Código, é o artigo 703.º, n.º 1 – não interfere com o conteúdo dos direitos subjetivos conferidos pelos documentos, cuja exequibilidade é atribuída ou eliminada pelo legislador ordinário num dado momento histórico, mas apenas com o modo de realização em juízo ou a tutela jurisdicional desses direitos, ou seja, aquela norma apenas interfere com a definição do meio processual adequado para o exercício do direito subjetivo substancial incorporado naquela espécie de documentos. No que se refere à relação jurídica da qual emerge o direito tutelado, a lei processual é prospetiva. A pós-atividade da lei processual determina-se por referência à data em que é instaurada a ação para defesa do direito subjetivo, e não pelo momento da constituição da relação substancial (v. ANTUNES VARELA/MIGUEL BEZERRA/SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição (revista e atualizada), Coimbra Editora, 1985, p. 48; ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, Almedina, 1981, p. 53).

Em matéria de aplicação no tempo das leis processuais civis, na falta de uma disposição transitória especial, rege o princípio da aplicabilidade imediata, conforme orientação que tem prevalecido na doutrina, assentando a justificação desse princípio na natureza publicista das razões subjacentes às soluções processuais legais e no carácter instrumental do direito processual civil (v. CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, vol. I, AAFDL, 1980, pp. 172 ss.; MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra Editora, 1993, pp. 42 ss.; ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, Almedina, 1981, pp. 45 e 56; ANTUNES VARELA/MIGUEL BEZERRA/SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição (revista e atualizada), Coimbra Editora, 1985, pp. 47 a 49; TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Direito, Almedina, 2015, p. 283; TEIXEIRA DE SOUSA, Aplicação da lei no tempo, in Cadernos de Direito Privado, n.º 18, abril/junho 2007, pp. 3 ss.; REMÉDIO MARQUES, Acção declarativa à luz do código revisto, Coimbra Editora, 2007, pp. 139 ss.).

4. De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 6.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, a eliminação da eficácia executiva dos documentos particulares negociais opera para o futuro, ou seja, os documentos particulares formados e assinados pelo devedor depois de 1 de setembro de 2013 – data da entrada em vigor daquele diploma (cf. art. 8.º da mesma lei) – não podem servir de base a uma pretensão executiva formulada após aquela data, ainda que a relação substancial que representam se tenha constituído em momento anterior.

O que significa, ainda de acordo com o mesmo preceito legal e a sua eficácia ex nunc, que os documentos formados na vigência do Código de Processo Civil de 1961, e que gozavam de força executiva ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º desse código, mas que tivessem sido dados à execução em ações instauradas antes de 1 de setembro de 2013 e que nessa data se encontravam pendentes, mantêm o respetivo regime de execução e, por conseguinte, a sua exequibilidade (art. 6.º, n.º 3 da mencionada Lei).

Quer dizer: o disposto no n.º 3 do artigo 6.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, está em linha com o princípio da norma geral de direito transitório do artigo 12.º, n.º 1, 1.ª parte, do Código Civil, segundo o qual a lei nova dispõe para o futuro. Porque aquele normativo é, como se disse, de aplicação futura, a eliminação da eficácia executiva dos documentos particulares impedia que títulos desta natureza pudessem ser dados à execução depois da entrada em vigor do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

No entanto, o Tribunal Constitucional, através da declaração com força obrigatória geral de inconstitucionalidade firmada no Acórdão n.º 408/2015, de 23 de setembro (publicado no Diário da República n.º 201/2015, Série I de 2015-10-14), sufragou a manutenção da exequibilidade dos documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, e que até esse momento não houvessem sido dados à execução, garantindo, deste modo, que execuções propostas já depois da entrada em vigor do novo Código pudessem ser baseadas em documentos particulares negociais formados antes daquela data (que, assim, sobrevivem à eliminação da eficácia executiva).

Não obstante, parece dever entender-se que em matéria de exequibilidade dos documentos que integram o elenco dos títulos executivos, é em função da data em que é instaurada a execução que se deve aferir se o documento que lhe serve de fundamento goza ou não de força executiva, independentemente do momento em que esse documento se formou (v. TEIXEIRA DE SOUSA, Títulos executivos perpétuos?, in Cadernos de Direito Privado, n.º 48, outubro/dezembro 2014, pp. 12 ss.). A exequibilidade é, pois, definida pela lei em vigor à data da execução. É só nesse momento que o direito à execução se materializa com o acesso à jurisdição. Esta solução aplica-se de igual modo aos títulos executivos de formação judicial compósitos, como é o caso da nota discriminativa de honorários e despesas do agente de execução.

Em suma: sem prejuízo da resolução jusconstitucional relativa aos documentos particulares a que se fez referência – mas que se limita ao domínio de aplicação da alínea c) do n.º 1 do artigo 703.º do CPC e apenas no que se refere à eliminação da exequibilidade, e não também ao reconhecimento dessa qualidade –, a conclusão que se retira é, pois, no sentido de que o novo regime dos títulos executivos (no qual se insere o artigo 721.º, n.º 5 do CPC) é aplicável imediatamente e para o futuro, quer elimine a exequibilidade a um documento que já a possuía, quer reconheça exequibilidade a um documento formado ao abrigo da lei antiga que não tinha essa qualidade, solução que está de acordo, como se disse, com o princípio da norma geral de direito transitório do artigo 12.º, n.º 1, 1.ª parte, do Código Civil.

Por conseguinte, um documento que não gozava de força executiva ao abrigo da lei antiga pode servir de fundamento a uma execução instaurada na vigência da lei nova que atribui a esse documento exequibilidade; e, vice-versa, um documento que gozava de força executiva ao abrigo da lei antiga não pode servir de fundamento a uma execução instaurada na vigência da lei nova que eliminou esse documento do elenco dos títulos executivos.

5. Sendo assim, há que entender que o n.º 3 do artigo 6.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, não impede a aplicação do artigo 721.º, n.º 5 do CPC – que consagra um título executivo novo no domínio da alínea d) do n.º 1 do artigo 703.º do CPC –, nas execuções iniciadas após a entrada em vigor daquela lei (01/09/2013), em relação a notas discriminativas de honorários e despesas do agente de execução formadas (elaboradas, notificadas e não reclamadas) em ações executivas propostas no domínio da lei processual anterior.

Como já sublinhámos, o que releva para aplicação no tempo da exequibilidade é o momento da instauração da execução. Se na data em que a execução for instaurada o documento em que a mesma se fundamenta gozar de exequibilidade à luz da lei em vigor nessa data, esse documento é título executivo, mesmo que se tenha formado numa altura em que a lei não lhe atribuía essa qualidade. Esta solução aplica-se de igual modo aos títulos executivos de formação judicial compósitos, como é o caso da nota discriminativa de honorários e despesas do agente de execução.

Podemos, então, concluir que, na interpretação normativa conjugada do artigo 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, com o artigo 703.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, aprovado em anexo àquela lei, não resulta alteração ao mencionado princípio geral, dado que o primeiro dos preceitos indicados, no que ao regime dos títulos executivos diz respeito, não é uma norma de direito transitório especial, nem relativamente à eficácia executiva dos documentos aos quais foi retirada a qualidade de título executivo (ressalvada a mencionada jurisprudência do Tribunal Constitucional), nem em relação à eficácia executiva dos documentos que passaram a ter essa qualidade, como se procurou explicar.

6. Por fim, resta acrescentar que, mesmo a entender-se que para a aplicação no tempo da lei processual em matéria de exequibilidade também releva o momento da constituição do título, cumpre referir que a nota discriminativa de honorários e despesas do agente de execução foi integrada no elenco dos títulos executivos antes da entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

Com efeito, de acordo com o artigo 5.º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º 4/2013, de 11 de janeiro, a nota discriminativa de honorários e despesas do agente de execução da qual não se tivesse reclamado para o juiz, acompanhada de comprovativo da sua notificação pelo agente de execução ao exequente, constituía título executivo. Aquele normativo, não obstante, ter vigência temporária, era de aplicação imediata (cf. art. 12.º daquele diploma).
 
J. H. Delgado de Carvalho