15/04/2020

Jurisprudência 2019 (218)

 
Abuso do direito à acção;
litigância de má fé*
 
 
I. O sumário de RL 21/11/2019 (329/14.0TBFUN-B.L1-6) é o seguinte:
 
1. A condenação da parte por litigância de má fé não se basta com a dedução de pretensão ou oposição arredada de qualquer fundamento, exigindo-se que tenha a mesma actuado com dolo ou com negligência grave, ou seja, sabendo de antemão da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição, ou encontrando-se em situação/posição que lhe permitia saber sem dificuldade que a pretensão deduzida estava votada ao fracasso.

2. Age com negligência grosseira, estando a litigar com má-fé a entidade expropriante , que em razão da respectiva qualidade , posicionamento e integração em órgão executivo de Região Autónoma, e agindo de harmonia com os mais elementares deveres de indagação e diligência, facilmente saberia que concretas parcelas expropriadas não fazem parte do domínio público hídrico, pelo que em fase processual em que apenas se discute o mérito de pedido do expropriado de expropriação total - de expropriação, vem sustentar e/ou alertar para a referida natureza e qualidade das parcelas expropriadas.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] integra a alínea d), do nº2, do artº 542º, do CPC, como que uma verdadeira cláusula geral do abuso de processo, obstando a que seja o mesmo usado de forma reprovável, porque direccionado essencialmente para a salvaguarda de interesses de todo diversos daquele que o preordena (Cfr. PAULA COSTA E SILVA, in A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, 2008, págs. 411 e 412.).

Depois, e para que se justifique a subsunção da conduta do litigante à previsão da mesma alínea d), exigível é que tenha a parte abusado do processo com o fito/propósito (qual elemento subjectivo na modalidade de dolo específico, não bastando a mera negligência grosseira ou grave  e/ou intenção de alcançar um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade ou protelar injustificadamente o andamento do processo e o trânsito em julgado da decisão. (Cfr. PAULA COSTA E SILVA, ibidem , pág. 413)

Uma última abordagem se impõe in casu fazer [o que se explica em razão desde logo dos fundamentos de que se serviu o tribunal a quo para sancionar a apelante], dizendo a mesma respeito à viabilidade de, em sede de penalização de condutas processuais de má-fé, poder o tribunal lançar mão de pressupostos/fundamentos que não se mostram especificamente expressis verbis] previstos no instituto adjectivo da litigância de má fé, stricto sensu, antes decorrem já da aplicação de outras cláusulas gerais do sistema.

Abordando tal assunto, e “alinhando” com Menezes Cordeiro, defende Paula Costa e Silva (Ibidem , págs 620 e segs.) que é inquestionável que também no domínio processual vale, como cláusula geral, a boa fé, pois que, não é o processo agnóstico, não se podendo confundir os planos da provocação de efeitos processuais típicos com a admissibilidade ou a procedência da postulação, a que acresce que, reforça Paula Costa e Silva, v g “as situações de abuso de direito são mais extensas do que aquelas que o artº 542º reconduz à litigância de má fé já que esta, pressupondo comportamentos típicos, não abarca todos os grupos de casos que vêm sendo reconduzidos a situações de abuso de direito”, em suma, o abuso não é, efectivamente, absorvido pela litigância de má fé.

Em termos conclusivos, defende assim Paula Costa e Silva (Ibidem, págs 627) que legítimo é considerar como sendo abusivos, ao abrigo da cláusula geral do abuso do direito, comportamentos que não são absorvidos pelo tipo central do artº 542º, do CPC .

Socorrendo-nos de António Menezes Cordeiro  In Litigância de Má-Fé ,Abuso do Direito de Acção e Culpa “ In Agendo”, 3ª Edição, Almedina, págs. 139 e segs.), defende o conceituado Professor que se é verdade que o princípio da boa-fé tem uma típica estrutura civil, indiscutível é que ele expande-se aos mais diversos sectores e, de resto, o primeiro sector do extra-civil no qual a boa-fé se impôs foi, precisamente o do processo civil (Entendimento que igualmente tem Pedro de Albuquerque, Ibidem, pág.69), logo, conclui Menezes Cordeiro, inquestionável é que o instituto do abuso do direito [o qual traduz a aplicação, nas diversas situações jurídicas, do principio da boa fé] tem aplicação no campo do Direito processual civil, maxime é claramente aplicável ao direito de acção judicial, ou, mais latamente, ao exercício de quaisquer posições no processo (Ibidem, pág. 141/145).

É que, esclarece Menezes Cordeiro, agindo a boa-fé essencialmente através de dois princípios - a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente -, ambos concretizam-se numa constelação de situações típicas, desde o venire ao desequilíbrio no exercício, e, nestas condições, a aplicação da boa-fé e do abuso do direito, nos domínios processuais civis, não oferece quaisquer dúvidas.

Assim, para Menezes Cordeiro, “As acções judiciais intentadas contra a confiança previamente instilada ou em grave desequilíbrio, de modo a provocar danos máximos a troco de vantagens mínimas, são abusivas: há abuso do direito de acção judicial. Mas também no plano puramente técnico, a matéria do abuso pode surgir. Assim sucederá sempre que as situações puramente processuais defrontem, nos parâmetros apontados, o princípio da boa –fé “.

Em rigor, e outrossim em sintonia com Paula Costa e Silva, consubstancia o abuso do direito de acção (lato sensu) mais um instrumento oferecido aos particulares interessados, resultante das exigências globais do sistema e que transcende em muito as margens estreitas da litigância de má-Fé. (Ibidem, pág. 147)

Em termos conclusivos, e socorrendo-nos para tanto de PEDRO DE ALBUQUERQUE (Ibidem, págs. 74/76), pacífico é actualmente a aceitação pela doutrina da recepção e aplicação do Princípio da boa fé e do abuso do direito no âmbito do processo civil, maxime nas modalidades de exercício inadmissível de posições jurídicas; a proibição de concretizar dolosamente posições processuais; a proibição de venire contra factum proprium; a proibição de abuso de poderes ou meios processuais a supressio”.

Sufragando há muito a nossa jurisprudência o entendimento doutrinal supra explanado [considerando v.g o STJ (Vide os Acs do STJ de 17/1/1989 e de 26/10/1999) que consubstancia inclusive a litigância de má fé uma modalidade/particularização especial do abuso de direito] e abordando bem a propósito a possibilidade de no âmbito de uma mesma acção se entrecruzarem os dois institutos jurídicos que não se confundem [o da litigância de má fé e o do abuso de direito], explicou – em Acórdão de 24-04-2008 (Proferido no Proc. nº 2889/2008-6, e in www.dgsi.pt) - já este mesmo Tribunal da Relação de Lisboa o modo de os aplicar no âmbito do mesmo processo, frisando que :

“Com efeito, a litigância de má fé, em processo, distingue-se do abuso do direito ainda que possa haver áreas de coincidência entre os dois institutos, ao nível das consequências. Nessas áreas, a litigância de má fé deve prevalecer, como instituto especial, sobre o abuso de direito, de ordem geral.

Mas tal coincidência, por regra, não se verifica, quer em termos processuais, quer em termos materiais.

Em termos processuais, é necessário ter presente que a litigância de má fé tem de ser apreciada imediatamente, na própria acção, podendo oficiosamente ser declarada, enquanto o abuso do direito, para além de poder ser apreciado nas mesmas condições, pode ainda ser considerado em acção própria, instaurada para o efeito.

Em termos materiais, a litigância de má fé está sujeita às restrições impostas pelo art. 456º do CPC, o que se não verifica com o abuso de direito.”

Em rigor, subscrevendo o aludido Acórdão de 24-04-2008 o entendimento de Menezes Cordeiro, recorda-se que na sua obra (Ibidem, pág. 146/147) considera o ilustre Prof que podendo é verdade existir áreas de coincidência, em processo, entre os dois institutos, v g ao nível das consequências, então nas referidas situações importará aplicar a litigância de má fé, instituto último este que deve prevalecer sobre o abuso, de ordem geral, não existindo entre ambos – como regra – coincidência, quer em termos processuais, quer materiais.

Aquiescendo nós os considerandos explanados no Acórdão acabado de citar, pacífico é outrossim que nesta matéria, maxime no tocante aos pressupostos de actuação de cada um dos referidos institutos, mostra-se igualmente a doutrina – especializada - em sintonia, esclarecendo designadamente Paula Costa e Silva (Ibidem, pág. 413) que, se em causa está o exercício disfuncional de situações jurídicas, a verdade é que os respectivos pressupostos são distintos, pois que e vg, se a base do artº 334º do CC é objectiva, já a do artº 542º [ artº 456º,nº2, alínea b) ] é um tipo de ilícito, pressupondo uma actuação dolosa ou negligente da parte.

Também para Menezes Cordeiro (Ibidem, págs. 205/208), pacífico é que os pressupostos de actuação da litigância de má fé e do abuso do direito de acção, são diferentes, v g quer no tocante ao subjacente facto ilícito [descrições típicas no primeiro, versus conceito indeterminado no segundo], quer relativamente à culpa [dolo ou negligência grave, no primeiro ,versus resp. objectiva, no segundo, não dependente de qualquer específico elemento subjectivo], quer ainda relativamente à indemnização [eventual, limitada e prefixada - artº 543º,do CPC - no primeiro, e eventual, limitada e, havendo-a, sujeita às regras gerais no segundo – artº 483º, do CC], precisando Menezes Cordeiro que, se perante o Direito Civil o regime do abuso do direito assenta em duas vertentes, a cessação da conduta abusiva e a reparação dos danos perpetradas, outrossim no campo em que o abuso respeite a situações processuais, assim será. (Ibidem, págs. 145)

Concordando no essencial com ambos, outrossim para Pedro de Albuquerque (Ibidem, págs. 92/93), e em sede de confronto entre o regime da litigância de má fé, de um lado, e do outro o abuso de direito, desde logo importa atentar à natureza objectiva do último, porque não dependente da existência de culpa do agente, ao passo que a litigância de má fé depende da existência de culpa grave ou de dolo.

Outrossim no tocante aos danos, esclarece Pedro de Albuquerque que se o abuso de direito pressupõe a sua existência, devendo os mesmo ser ressarcidos/indemnizados in totum, quando se verifiquem os respectivos pressupostos da responsabilidade civil, já em relação à litigância de má fé “ a simples obstrução da justiça e a violação de deveres processuais é suficiente para a condenação da parte”, a que acresce que os danos sofridos poderão apenas ser contemplados de forma parcial (artº 543º, nºs 1 2 e 3, do CPC), ou seja, a indemnização pode ser meramente compensatória e sem fins ressarcitórios.

Aqui chegados, e após as considerações tecidas, resta descer agora ao facto adjectivo que se mostra subjacente à decisão apelada, aferindo se justifica ele integrar o tipo central do artº 542º, do CPC, ou, ainda que tal não suceda, se serve também o mesmo, agora ao abrigo da cláusula geral do abuso do direito, para ancorar/suportar a decisão apelada."
 
*III. Apenas uma observação: não se nega que que se possa verificar em qualquer processo um abuso do direito à acção (a não confundir com o exercício abusivo do direito que é invocado na acção), mas não se entende que esse abuso possa ser relevante fora das situações de litigância de má fé.
 
Realmente, não se concebe que se possa verificar um abuso do direito à acção sem os elementos subjectivos que são típicos da litigância de má fé. Por exemplo: a mentira em juízo é concebível sem dolo ou negligência grave?; o uso manifestamente reprovável de um meio processual pode verificar-se sem uma actuação dolosa ou gravemente negligente?; uma situação de venire contra factum proprium (negando nas alegações de recurso o que antes tinha reconhecido na contestação, ou vice-versa) é concebível sem dolo ou negligência grave?
 
MTS