27/05/2020

Jurisprudência 2019 (246)



Acidente de trabalho;
competência material*

 
1. O sumário de RE 19/12/2019 (435/19.5T8STR-A.E1) é o seguinte:
 
I – Visando a autora com a ação a condenação da ré no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais causados pela privação de atos sexuais com o marido que, por ter sido vítima de acidente de trabalho, sofreu lesões que se agravaram e lhe causaram disfunção eréctil, o facto que constitui a causa de pedir da qual a autora faz derivar o seu direito à indemnização é o acidente de trabalho sofrido pelo seu marido.

II - A aptidão para o tratamento das questões específicas relativas a acidentes de trabalho, e doenças profissionais encontra-se deferida aos Tribunais de Trabalho por força do disposto no artigo 126º, nº 1, alínea c) da LOSJ.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fraciona e reparte o poder jurisdicional, que tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais [Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pp. 88 e 89]. [...]
 
No caso em apreço, a questão suscitada tem a ver com a incompetência absoluta do Tribunal recorrido, em razão da matéria.

Dispõe o artigo 64° do CPC [...] que «[s]ão da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional», acrescentando o artigo 65°, do mesmo Código, que «[a]s leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada».

Como é sabido e constitui jurisprudência constante quer do Tribunal de Conflitos, quer do STJ, quer do STA, a competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a ação é proposta, concretamente, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como configurada na petição inicial, isto é, no confronto entre o respetivo pedido e a causa de pedir, sendo que em sede da indagação a proceder em termos de se determinar a competência material do tribunal é irrelevante o juízo de prognose que, hipoteticamente, se pretendesse fazer relativamente á viabilidade da ação, por se tratar de questão atinente com o mérito da pretensão [Cfr., inter alia, o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 20.09.2012, proc. 07/12 e os acórdãos do STJ de 13.03.2008, proc. 08A391, e 12.02.2009, proc. 09A0078].

Nestas condições, importa recortar, com precisão, o efeito jurídico que a recorrente pretende obter com a ação e o ato ou facto – a causa petendi – de que, no seu entender, o direito indemnizatório alegado procede.

A autora/recorrida visa com a ação a condenação da ré/recorrente, no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais causados pela privação de atos sexuais com o marido que, por ter sido vítima de acidente de trabalho, sofreu lesões que se agravaram e lhe causaram disfunção eréctil.

Escreveu-se na decisão recorrida:

«Da análise do pedido e da causa de pedir, não resulta que a A. configure a acção como emergente de acidente de trabalho, mas como de responsabilidade civil, em que o acidente de trabalho sofrido pelo marido fundamenta o pedido que deduz contra a seguradora responsável pelos danos decorrentes do acidente. Neste caso, afigura-se irrelevante os termos em que ocorreu o acidente de trabalho (já decidido no âmbito do processo próprio), mas apenas as sequelas que dele derivaram e que terão reflexo na esfera jurídica da A., e que serão geradoras de danos.»

Salvo o devido respeito, não é assim.

O facto que constitui a causa de pedir da qual a autora faz derivar o seu direito à indemnização é efetivamente o acidente de trabalho sofrido pelo seu marido.

Na verdade, percorrendo a petição inicial, verificamos que até ao artigo 20º a autora se limita a descrever o evento ocorrido com o seu marido e as circunstâncias que caracterizam o mesmo como acidente de trabalho, nos artigos 21º a 41º refere as repercussões que a incapacidade atribuída ao marido (disfunção eréctil) teve na relação do casal, e nos restantes artigos quantifica os danos alegadamente sofridos.

Ou seja, a autora peticiona uma indemnização por danos não patrimoniais que fundamenta nas lesões e sequelas sofridas pelo marido em consequência de acidente de trabalho, da responsabilidade da recorrente, sem que alegue um único facto ilícito gerador de responsabilidade civil nos termos do artigo 483º do Código Civil.

Não se trata aqui da análise de uma situação autonomizada – o direito de indemnização reclamado pela autora - em relação a toda a factualidade consubstanciadora que conduziu a esse direito, isto é, o acidente de trabalho.

E que assim é, foi reconhecido pelo próprio Tribunal a quo, quando na audiência preliminar, a respeito da identificação do objeto do litígio, fez consignar que «[a] presente acção destina-se a responsabilizar a CC – Companhia de Seguros, S.A., pelos danos não patrimoniais causados em consequência do acidente de trabalho de que foi vítima o marido (da autora), …, e que lhe causou disfunção eréctil» [...].

Só assim se compreende, outrossim, que a autora tenha demandado a ré seguradora, por via da transferência das responsabilidades através da celebração obrigatória do contrato de seguro havido com a entidade patronal em sede de acidentes de trabalho.

Ora, a aptidão para o tratamento das questões específicas relativas a acidentes de trabalho, e doenças profissionais encontra-se deferida aos Tribunais de Trabalho por força do disposto no artigo 126º, nº 1, alínea c) da LOSJ.

Como se escreveu no acórdão do STJ de 30.04.2019 [...], «[c]onsagra-se, assim, o princípio da absorção das competências, o que equivale a dizer que tendo os Tribunais de trabalho a competência exclusiva para a apreciação das problemáticas decorrentes dos acidentes de trabalho, a eles competirá, mutatis mutandis, igualmente, o conhecimento de todas as questões cíveis relacionadas com aqueles que prestem apoio ou reparação aos respectivos sinistrados».

O recurso merece, pois, provimento."
 
*3. [Comentário] O art. 126.º, n.º 1, al. c), LOSJ estabelece que "compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível [...] das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais". Os danos indirectos provocados num terceiro não são necessariamente "questões emergentes de acidentes de trabalho". No entanto, o mais importante é uma constância jurisprudencial sobre a questão, evitando discussões infindáveis sobre soluções que não são inequívocas nem num sentido, nem no outro.
 
MTS