28/05/2020

Jurisprudência 2019 (247)

 
Acção popular;
legitimidade activa
 
 
I. O sumário de RG 17/12/2019 (6324/17.0T8GMR-A.G1) é o seguinte:

1- Apenas as pessoas colectivas referidas nos artºs 52º da CRP e 2º, nº 1 da Lei 83/95 têm legitimidade para proporem a acção popular civil.

2- O artº 2º, nº 1 (parte final) não amplia as categorias das pessoas colectivas com legitimidade para a acção popular.


II. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Banco (…) Sa, intentou acção com processo comum, do Juízo Central Cível de Guimarães, Juiz 5, da comarca de Braga, contra (…) e esposa, (..) que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca DE (…)

Pediu:

“a) Ser reconhecida à A., como parte interessada e legítima neste pedido, nos termos do n.º 2 do artigo 1281.º do Código Civil, o direito de propriedade sobre o prédio identificado no artigo 1.º deste articulado, condenando-se os RR. no reconhecimento desse direito;

b) Serem os RR. condenados a remover o portão colocado no caminho público de acesso ao imóvel do A., a demolir o muro construído no mesmo caminho e a abster-se de praticar quaisquer outros factos que impeçam ou condicionem o acesso ao prédio do A., assim cessando a violação do direito de propriedade e posse do A.; [...]

Em 27.11.2018 foi proferido despacho:

“Nos presentes autos propostos como acção comum, a Autora pede, entre outras coisas, sejam os Réus …condenados a remover o portão colocado no caminho público de acesso ao imóvel do A. (…).

Na sequência de convite dirigido pelo tribunal por despacho de 11.09.2018, veio a Autora aperfeiçoar a sua petição inicial (fls. 73 e ss.) alegando os pressupostos de facto de que depende a qualificação do caminho em apreço como público.

Uma vez que a pretensão a Autora compreende o reconhecimento da natureza pública de um caminho, questão que se encontra protegida pela previsão legal do n.º 2 do artigo 1º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto que regula o direito de participação procedimental e de acção popular, o processo deve seguir as especificidades previstas neste diploma legal.

Termos em que, ao abrigo do disposto no art.º 6º, n.º 2 do C.P.C., determino:

- a alteração da espécie dos presentes autos para acção popular; [...]”.
Cumpre decidir. [...]

A acção popular tem como fim a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções de interesses previstas no nº 3 do artigo 52º da Constituição (artº 1º, nº 1 da Lei 83/95, de 31.08) ou, ainda, nas palavras daquele normativo, a promoção, o asseguramento e a defesa dos mesmos.

Quem está legitimado para promover a acção popular, a par da participação procedimental em procedimentos administrativos, segundo o disposto no artº 2º da Lei 83/95, de 31.08, sob a epígrafe “Titularidade dos direitos de participação procedimental e do direito de acção popular”, são os cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras de interesses previstos quer no artº 52º, nº 3 da CRP quer no artº 1ª da mesma lei.

Os interesses prosseguidos pelo artº 52º, nº 3 da CRP, sob a epígrafe “Direito de petição e direito de acção popular” são: a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural, a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.

Na Lei 83/95, directamente, identificam-se grosso modo os mesmos interesses, ainda que de forma não taxativa e inteiramente coincidente em termos nominais: a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.

Este é o objecto da tutela da acção popular.

Mas o que da conjugação destas normas resulta seguramente, depois do nº 1 do citado artº 52 referir-se a “todos os cidadãos” e no seu nº 3 a “a todos, pessoalmente” é que para além dos cidadãos, pessoas singulares no gozo dos direitos civis e políticos apenas as pessoas colectivas que representem aqueles, as referidas no nº 3 do preceito constitucional e do nº 1 do artº 2º estão autorizadas a instaurar e mover esta espécie processual, ou seja, “associações de defesa dos interesses em causa” ou “as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior”, consoante o preceito, e, atento à natureza de alguns desses interesses naturalmente, segundo o nº 2 do artº 2º, “as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição”.

Acresce, no domínio da tutela dos interesses difusos, a legitimidade para a as acções e procedimentos cautelares é configurada em termos idênticos no artº 31º do CPC.

Segundo ele, sob a epígrafe “Acções para a tutela de interesses difusos”:

“Têm legitimidade para propor e intervir nas ações e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à proteção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei.”.

Desta previsão especial resulta que apenas secundariamente viria ao caso aludir ao disposto no artº 30º do CPC que define o conceito de legitimidade em termos genéricos, assim, para qualquer procedimento judicial.

No despacho em que se decidiu pela improcedência da nulidade arguida pelo recorrente, reconhece-se a legitimidade da A para propor a acção popular através da causa de pedir que alegou, embora a considere uma sociedade comercial e não um cidadão, nem uma associação ou fundação defensora do interesse na manutenção da utilização do caminho.

Para o efeito, socorre-se do artº 2º, nº 1 (parte final) que legitima a titularidade do direito procedimental de participação popular e do direito à acção popular independentemente de se ter ou não interesse directo na demanda:

“Efectivamente, a leitura atenta da parte final do n.º 1 do artigo 2º da Lei 83/95, onde consta …independentemente de terem ou não interesse direto na demanda… dá-nos um vislumbre da intenção do legislador que, por força do especial interesse público na tutela dos valores protegidos pela acção popular, entendeu atribuir legitimidade a entidades que não poderiam propor a acção se nos ativéssemos ao regime mais estrito previsto pelo artigo 30º do CPC, onde se exige um interesse próprio e directo do autor na demanda judicial.

Por isso, as regras sobre legitimidade previstas pela Lei 83/95 devem ser tidas como complementares do regime previsto no artigo 30º do Código de Processo Civil, conferindo a possibilidade de zelar pela tutela jurídica de interesses supra individuais, não apenas aos interessados directos que, como o Autor, têm simultaneamente um interesse no reconhecimento da condição pública do caminho, também a outros cidadãos e entidades públicas (associações, fundações, órgãos da administração local e também ao M.ºP.º, entre outros).

Este é, salvo mais avisado entendimento, o sentido que melhor se adequa à letra e ao espírito do artigo do n.º 3 do artigo 52º da Constituição da República Portuguesa – que alude “…a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa…” [...], sem distinguir entre pessoa singular ou colectiva - e da Lei n.º 83/95 que, como bem lembra o M.º P.º no artigo 13º da douta contestação, abriu “… portas larguíssimas ao exercício de acção popular para protecção dos interesses previstos no n.º 2 do artigo 1º da LAP” [...].”


Não podemos concordar com estas asserções.

É que nesta parte do normativo o legislador não amplia as categorias de pessoas colectivas com legitimidade para a acção popular.

Unicamente confere legitimidade a quem directamente refere e que não tendo qualquer benefício pessoal com a tutela do interesse difuso não deixa de prosseguir um interesse pluri-subjectivo como fim primeiro e principal.

Nos termos do decidido no acórdão do STA de 12.07.2016, (procº 0838/16;www.dgsi.pt):

“Expõe-se, lapidarmente, no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.04.2003, processo n.º 047545:

“I - A acção popular traduz-se, por definição, num alargamento da legitimidade processual activa dos cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua relação específica com os bens ou interesses em causa.

II - O objecto da acção popular é, antes de mais, a defesa de interesses difusos. A acção popular tem sobretudo incidência na tutela de interesses difusos, pois sendo interesses de toda a comunidade, deve reconhecer-se aos cidadãos uti cives e não uti singuli, o direito de promover, individual ou associadamente, a defesa de tais interesses.

II - Sobre um determinado bem pode incidir um interesse individual, ou seja, um direito subjectivo ou interesse específico de um indivíduo, um interesse público ou interesse geral, subjectivado como interesse do próprio Estado e de outras pessoas colectivas, um interesse difuso, que é a refracção em cada indivíduo de interesses da comunidade e um interesse colectivo, quando se trata de um interesse particular comum a certos grupos e categorias.”

O mesmo se defende no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.10.2005, no processo n° 05B2578:

“Não é, portanto, qualquer interesse meramente individual e egoístico que pode estar na base de uma acção popular.

Muito embora a lei atribua legitimidade processual a qualquer pessoa singular para intentar tal acção popular, os direitos que se pretende ver tutelados deverão ter um carácter comunitário, ou seja, um valor pluri-subjectivo e os interesses subjacentes devem assumir um cunho meta-individual.”

Ou seja, a expressão “independentemente de terem ou não interesse directo na demanda” significa que o autor pode não ter interesse directo na demanda. Não significa que só o autor tenha um interesse directo da demanda.

Pressuposto essencial para poder ser usado o meio “acção popular” é que haja um interesse difuso ou colectivo a defender que pode coincidir ou não com o interesse individual.

O simples interesse individual legitima o uso de outros meios processuais que não a acção popular.

Em concreto em relação às pessoas colectivas — e em consonância com a ideia mestra de que a acção popular serve para defender em juízo interesses difusos ou colectivos - a lei refere que só têm legitimidade activa as pessoas colectivas que, tendo personalidade jurídico, “incluírem nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate” – alíneas a) e b) do artigo 3º da Lei 83/95, de 31.08.

O que não é o caso da autora Construções A..., Lda., uma sociedade industrial, com fins lucrativos e que, por isso, não tem por objecto social a defesa de interesses difusos ou colectivos.

A lei exclui, de resto, do leque de pessoas colectivas com legitimidade para intentarem a acção popular as que exerçam “qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais” — alínea c) do artigo 3º da Lei 83/95, de 31.08.

O que bem se compreende, para evitar que sob o capa da defesa de interesses colectivos se vise, em exclusivo, a defesa de interesses particulares, concorrentes com outros igualmente particulares, beneficiando das vantagens que a acção popular traz, em particular no que diz respeito a custas – artigo 20º da Lei 83/95.”. [...]

Ora, a A é uma sociedade comercial cujo objecto social principal é a actividade bancária, obviamente com intuito lucrativo.

Por seu turno, na acção está em causa a alegada existência de caminho público de acesso ao seu prédio e a construção pelos RR de um muro e a colocação pelos mesmos de um portão nesse domínio público que condiciona o trânsito de pessoas e viaturas a esse prédio.

Ainda que assim seja, o reconhecimento da existência desse caminho é meramente instrumental do interesse e fim prosseguido pelo A que se esgota na sua esfera privada: manter incólumes as faculdades que o direito de propriedade lhe pode proporcionar, como, de resto, o confirma a ultima pretensão no sentido da compensação económica em virtude da violação estrita desse direito. Por um lado constata-se o intuito e o objectivo de se exercer e efectivar um direito individual, subjectivo. Por outro lado, sem qualquer cunho comunitário, colectivo ou supra individual, como exige o objecto de tutela da acção popular.
Por tudo isto a A nunca teria legitimidade para intentar qualquer acção popular civil (artº 12º, nº 2 da Lei 83/95) com os fundamentos que arrolou.

Pelo exposto deve ser julgado procedente o recurso na parte em que pretende a revogação do primeiro despacho recorrido, sendo certo que o conhecimento da segunda parte do recurso encontra-se prejudicado já que a respectiva pretensão é formulada subsidiariamente (artºs 608º, n.º 2 e 663º, n.º 2, in fine, do CPC)."

[MTS]