07/06/2022

Jurisprudência 2021 (213)


Dívidas a prestações;
perda do benefício do prazo; fiador*


1. O sumário de STJ 14/10/2021 (475/04.9TBALB-A.P1.S1) é o seguinte:

I. O desencadeamento do vencimento antecipado de todas as prestações a que se alude no artº 781º do CC é uma faculdade do credor (é ele quem decide se quer, ou não, continuar sujeito aos prazos de escalonadamente estabelecidos de vencimento das prestações), pelo que só a tornará efectiva, querendo e por via da interpelação do devedor.

II. A perda do benefício do prazo não se estende aos fiadores, salvo se, na relação contratual havida e onde se estipulou a obrigação de fiança, se tiver estipulado (ao abrigo do princípio da liberdade contratual ou da autonomia da vontade ínsito no 405º do CC), de forma expressa e clara, que aquela perda também os vinculava.

III. Assim, não havendo estipulação contratual em contrário, devem os fiadores ser interpelados para lhes poder ser exigido o pagamento da totalidade das prestações e demais em dívida nos termos constantes do contrato de mútuo celebrado com o devedor principal – ou seja, para, querendo, porem termo à mora, a fim de obviarem ao vencimento antecipado das prestações.

IV. A ausência de comunicação/interpelação aos fiadores não afasta, porém, a relevância da posterior citação destes para a execução, considerando-se realizada a necessária interpelação admonitória dos fiadores com essa citação, dessa forma afastando a regra do artigo 782.º e fazendo funcionar o regime do artigo 781.º, com exigibilidade, a partir da citação, de todas as prestações em dívida e devidas até ao final dos prazos dos contratos, contando-se os juros moratórios, apenas, a partir daí.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO

Analisemos, então, as questões suscitadas na revista, quais sejam; aferir se a exequente tinha de interpelar os fiadores, previamente à instauração da execução, para pagamento do valor em dívida para que a obrigação lhes fosse exigível; na afirmativa, se essa interpelação pode considerar-se verificada/preenchida com a citação para a execução.

Adiantando solução, cremos que ambas as questões merecem resposta afirmativa.

E as razões justificativas dessa solução são, no essencial, as que se deixaram vertidas em anterior acórdão deste Supremo Tribunal de 11.03.2021, também relatado pelo ora Relator, ut processo nº 1366/18.1T8AGD-B.P1, disponível em www.dgsi.pt.[---].

Como tal (e até porque a factualidade é de todo idêntica à daqueles autos, no essencial apenas divergindo as partes e os valores em dívida), seguiremos muito de perto o que ali deixámos dito, por considerarmos que corresponde à solução jurídica mais acertada, face aos factos e à justiça do caso.

**
Não vamos aqui tecer considerações sobre a posição do fiador ou o âmbito e/ou a natureza da fiança, designadamente sobre as características desta, saber se o fiador é, também ele, devedor, ou se, pelo contrário, é mero objecto de uma relação de responsabilidade. Para tal remete-se, sem mais, para o que naquele aresto deixámos dito.

Da mesma forma, sobre a questão de saber se, para ser exigido ao fiador (no caso sub judice, aos embargantes) o pagamento da totalidade das prestações antecipadamente vencidas por incumprimento do devedor principal, é necessária a sua prévia interpelação, também aqui reiteramos o que ali se escreveu, tendo-se concluído pela necessidade dessa interpelação.

Sobre esta questão escreveu-se, com efeito, no citado processo 1366/18.1T8AGD-B.P1:

“(…). Ou seja, mesmo em relação ao devedor, o disposto no art. 781 C. Civil [---] não dispensa a sua interpelação: só com esta se pode desencadear o vencimento imediato das prestações vincendas e, subsequentemente, sua exigibilidade (teríamos, então, também em relação a ele, a apontada exigibilidade em sentido fraco).

O que bem se compreende, até mesmo na perspectiva do interesse do credor, pois o vencimento ope legis até pode nem lhe interessar (v.g., atenta a confiança que mantém no devedor - ou por quaisquer outras razões – , pode não ser do seu interesse desencadear o vencimento antecipado de todas as prestações).

Dito de outra forma: o desencadeamento do vencimento antecipado de todas as prestações é uma faculdade do credor (é ele quem decide se quer, ou não, continuar sujeito aos prazos de escalonadamente estabelecidos de vencimento das prestações), pelo que só a tornará efectiva, querendo e por via da interpelação do devedor.

Este é, ao que supomos, entendimento generalizado [Cfr. Antunes Varela, Direito das Obrigações, 6.ª ed., vol. II, pg. 52 e ss.; Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 11.º ed., pg. 892 e ss.; Vasco da Gama Lobo Xavier, RDES, ano XXI, n.ºs. 1 a 4, pg. 201, nota 4; Pessoa Jorge, Direito das Obrigações, vol. I, pg. 317, apud Almeida Costa, op. Cit.; Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7.ª ed., pg. 270 e ss.- este último a sustentar que, não obstante tal solução não se encontrar expressamente consagrada na lei vigente, deve ser a consagrada de jure condendo.]”.

Da mesma forma, como ali justificámos e concluímos, é igualmente necessária a prévia interpelação dos fiadores, atento o que ali ficou explanado quanto à natureza da fiança e o que reza o artº 782º.

Justificou-se nesse aresto do STJ:

«Esta solução (a necessidade de interpelação prévia dos fiadores (ou demais previstos no artº 782º CC) para lhes ser exigido a totalidade das prestações e demais previsto nos contratos de mútuo com hipoteca celebrados com a devedora principal), já ressaltava dos ditames da boa fé: só assim não serão surpreendidos e injustamente prejudicados pelas desmandas e/ou desleixos do devedor principal que, eventualmente, deixou agravar a dívida de forma francamente censurável, quiçá até para intencionalmente prejudicar os (“ignorantes”) fiadores (dessa forma dando cabo do património destes numa altura em que, eventualmente, o devedor principal já nada teria de seu e, como tal, até já “nada tinha a perder”).

Não se pode olvidar que a ligação – melhor, vinculação – dos fiadores a tais contratos de mútuo foi resultado de solicitação/imposição do banco credor e pedido da devedora principal. Pelo que, nesta perspectiva, bem se compreenderá que, estando, afinal, os fiadores a fazer um “favor” à devedora e, dessa forma, a permitir seja viabilizada a concretização dos contratos de mútuo, quer a devedora, quer o credor fiquem vinculados para com aqueles a certo tipo de condutas, àquilo a que a doutrina designa de deveres acessórios de conduta [---], como é o caso (no que ora importa) da obrigação do banco credor de informar, tempestivamente, os fiadores sobre o desleixo do devedor principal, da falta de pagamento por este das prestações, com o acumular em catadupa da dívida e…eventual vencimento antecipado de todas as prestações, a repercutir-se no património dos fiadores. Só assim procedendo se pode dizer que agiram em conformidade com os padrões da diligência, da honestidade e da lealdade exigíveis do homem no comércio jurídico.

Era, de facto, exigível à devedora e ao banco credor que tivessem para com os fiadores (que, afinal, se limitaram a satisfazer interesses daqueles), um comportamento honesto, correcto, leal, não defraudando a legítima confiança ou expectativa que neles os fiadores depositaram. Mas assim não procederam, pois defraudaram essa confiança, o que saiu bem caro aos (quiçá “ingénuos”) fiadores! (...).

Ainda a propósito [---], escreve Januário da Costa Gomes [Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina, 2000, págs. 961/962] que sendo o credor “parte numa relação contratual com o fiador, está vinculado à adoção de determinados comportamentos, entre os quais se inclui o de informar este, em tempo, das vicissitudes relevantes da relação principal” pois “ainda que se entenda que o regime do art. 782 é imperativo, o fiador acaba por “sofrer” as consequências da progressiva formação de uma “torrente de dívida” (...) cuja “velocidade” de efetivação depende do credor”. Assim, entende o referido autor que “uma vez iniciada a quebra de pagamentos por parte do devedor, desde que, pela sua frequência, seja objetivamente indiciadora da dificuldade ou impossibilidade económica do devedor cumprir - ou do propósito de não cumprir –, o credor tem o ónus de informar o fiador. Se o não fizer, este, quando instado para pagar, já eventualmente em processo executivo, pode opor ao credor a exceção de inexigibilidade (parcial) da obrigação exequenda” [---]».

A transcrição acabada de fazer, do supra citado acórdão deste Supremo Tribunal (repete-se, cujo Relator foi o mesmo dos presentes autos), “encaixa” plenamente nos presentes autos, apenas se observando que, enquanto ali era um o devedor principal (mutuário nos contratos de mútuo celebrados pela (também) aqui exequente), aqui são dois os devedores mutuários. O que, para a solução jurídica a dar ao caso, é absolutamente irrelevante.

Conclui-se, assim, ser necessária a prévia de interpelação dos fiadores, pois que a perda do benefício do prazo com a falta de pagamento de uma das prestações nunca se lhes estende, a não ser que tenha sido convencionado expressamente o afastamento desse regime legal, dada a natureza supletiva do artº 782º CC – e dos autos não consta que tivesse havido esse acordo contratual.

A interpelação aos fiadores é imposta pelo citado artigo 782º tanto mais que o vencimento imediato das prestações cujo prazo ainda se não venceu constitui um benefício que a lei não impõe ao credor e por isso este terá sempre que interpelar aquele a quem pretende exigir a totalidade dos pagamentos.

Ora, tal interpelação prévia não teve lugar, pois que, como consta do facto provado K), “a exequente não procedeu à interpelação dos ora embargantes, enquanto fiadores, antes de intentar a ação executiva a que os presentes autos correm por apenso.”.

**
Resta, então, saber se com a citação dos fiadores para a execução se pode considerar concretizada aquela (faltosa) interpelação. Ou seja, saber a interpelação admonitória dos Fiadores pode considerar-se realizada com a citação para a execução, dessa forma afastando a regra do artigo 782.º e fazendo funcionar o regime do artigo 781.º, com vencimento da totalidade das prestações.

De novo, respondemos pela afirmativa.

Sobre este aspecto, escreveu-se no Ac. do STJ de 14.01.2021 [Proc. 1366/18.1T8AGD-A.P1.S1 (MANUEL CAPELO)]: «A citação dos fiadores para a execução - para contestar ou pagar a totalidade da dívida resultante da antecipação de vencimento - não pode suprir a falta de tal interpelação, pois, através dela, não é dada oportunidade aos fiadores de procederem ao pagamento das prestações vencidas, evitando a exigibilidade das vincendas, e só através de interpelação para cumprir a obrigação se pode efectivar tal exigibilidade. Aliás, tal exigência foi sugerida por Adriano Vaz Serra, “Fiança e Figuras Análogas”, Sep. BMJ nº 71, onde propôs, no artigo 10/3 do Anteprojeto: “(…) Quando a obrigação principal só se vencer com a interpelação do devedor, o fiador deve ser igualmente interpelado para que a interpelação seja eficaz em relação e ele”, justificando-a no facto de o fiador poder querer cumprir logo, evitando o alargamento da responsabilidade decorrente da mora. Embora não tenha sido feita constar expressamente na lei relativamente aos casos de obrigação pura ou a termo incerto, o legislador fê-lo relativamente aos casos de dívida liquidável em prestações, regulando a questão do reflexo, nos obrigados e terceiros garantes, da perda pelo devedor do benefício do prazo ocorrida nos termos dos artigos 780 e 781 (artigo 782º)».

Chegados a este ponto, é nele que se coloca a questão final de determinar se a falta de interpelação do fiador, necessária por este não ter renunciado ao benefício do prazo, não podendo ser substituída pelos efeitos da citação na execução, impõe a extinção da execução ou se permite relevar aquela citação, vinculando o fiador ao pagamento do capital das prestações em dívida, vencidas e vincendas, apenas com a salvaguarda de a exigibilidade desse montante, datado na citação, tornar devidos os juros de mora a partir desta. Ou, num outro entendimento já sufragado também pela jurisprudência, apenas as vencidas à data da execução, e acrescida dos juros pedidos desde a data da citação.

No plano da definição dos princípios, afirmámos a necessidade de interpelação do fiador por parte do credor e que com ela não se confunde a citação que lhe haja sido realizada na execução para exigir o pagamento da totalidade da dívida, porque a citação não permitiria ao fiador a oportunidade de pagar as prestações vencidas, evitando a exigibilidade das vincendas. No entanto, por razões de relevância pragmática, várias são as decisões que, sensíveis a que a citação é em qualquer caso uma comunicação, admitem que esta, não tendo o valor nem a natureza da interpelação que era exigível, possa ter a utilidade para através dela o credor exigir ao fiador a totalidade da dívida (prestações vencidas e vincendas) excepto no que diz respeito aos juros de mora que se contariam desde a citação apenas.». Posição esta que ali veio a ser seguida.

Foi seguindo as “razões de relevância pragmática” de que fala aquele aresto do Supremo que a Relação decidiu como decidiu.

Diz da Relação:

«(...) sendo inequívoca esta ausência de comunicação aos embargantes/fiadores, julgamos não dever escamotear a relevância que deve ser conferida à posterior citação para a presente execução, daí decorrendo a imediata exigibilidade de todas as prestações em dívida, atento o extenso lapso temporal entretanto decorrido e tanto mais que o imóvel dado de garantia terá sido inclusivamente já vendido, conforme aventa a embargada. Além de tudo o mais, constata-se, uma vez compulsados os autos principais executivos, que a executada CC foi, inclusivamente, declarada insolvente.

O pragmatismo desta solução, que busca no caso concreto a sua maior legitimação, corresponde ao que nos parece ser a abordagem mais equilibrada, no âmbito das exigências decorrentes de um comércio jurídico que se pretende fluído e “business friendly”, atentando quer na situação de insolvência de um dos executados, com as decorrentes consequências em termos da dívida exequenda, quer ainda no grau de vinculação assumido por estes concretos fiadores, erigidos, contratualmente, como principais pagadores e não beneficiando da excussão prévia.

Ademais, o vencimento antecipado de toda a dívida em face do incumprimento dos mutuários há muito já terá ocorrido, até por força da insolvência referenciada, inviabilizando, na prática, a possibilidade de pôr fim à mora ou de obstar à resolução dos contratos.” [---].

Esta foi, também, a posição que defendemos no já citado Ac. deste STJ de 11.03.2021 [Processo nº 1366/18.1T8AGD-B.P1], onde se escreveu:

«(...). Neste segmento, entende-se que a resposta deve ser positiva, mas com ressalva no que tange aos juros de mora que aos fiadores possam ser exigidos, pois que, dada a ausência da já aludida prévia interpelação por banda da credora, tais juros moratórios contar-se-ão, somente, a partir da citação.

Entendimento, diga-se, sufragado por variados arestos. (…)».

É certo que a citação para a execução não visa pôr termo à mora ou impedir a resolução do contrato. Mas aquela ausência de comunicação/interpelação ao embargante não afasta a relevância da posterior citação para a execução, conduzindo esta à imediata exigibilidade de todas as prestações em dívida e devidas até ao final dos prazos dos contratos, embora a exigibilidade da totalidade da dívida quanto aos fiadores somente se deva considerar a partir da citação para a execução.

Assim também, no Ac. o Acórdão da Relação do Porto de 14.06.2017 [Processo nº 11257/15.2T8PRT-A.P1, in www.dgsi.pt]: “Não pode negar-se no entanto a relevância que nesse sentido se reveste a citação para a execução, conducente à exigibilidade imediata de todas as prestações em dívida e devidas até final do prazo dos referidos contratos, ainda que entendendo que, contrariamente ao alegado pela Exequente no requerimento inicial, a exigibilidade da totalidade da dívida no que aos fiadores concerne se deva considerar apenas a partir da citação dos Executados e não desde a data apontada no requerimento executivo.

(…). “as consequências do comportamento da Exequente quanto à obrigação exequenda não assumem os contornos de inexigibilidade pretendidos pelos Recorrentes, mas refletem-se no conteúdo da mesma, relativamente ao montante dos respetivos juros moratórios (quanto às prestações ainda não vencidas à data da citação), que serão devidos desde a citação.”.

Ainda a propósito da exigibilidade da obrigação e citação na demanda executiva, pode trazer-se à colação o ensinamento de CASTRO MENDES [Acção executiva, 1980-14.]: “se a obrigação não está vencida, faltando apenas a interpelação, vale como tal a citação para a acção executiva. Trata-se de uma interpelação judicial” [---]».

Assim se conclui – tal como decidido naqueles arestos deste Supremo Tribunal – que a citação para a execução constitui interpelação bastante para pagamento, assistindo à Exequente o direito a exigir (solidariamente com a devedora principal) dos fiadores o pagamento da totalidade das prestações que, por força do estatuído no artº 781º, se venceram (e não apenas as já vencidas e não pagas até à data da instauração da execução), com a contabilização dos juros moratórios a partir daquela citação, despesas e comissões devidas."

*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, a solução adoptada no acórdão suscita muitas dúvidas.

É verdade que, em regra, a citação substitui a interpelação para o cumprimento, mas parece muito duvidoso que a citação do fiador na acção executiva seja suficiente para afastar a não extensão da perda do benefício do prazo aos co-obrigados que se encontra estabelecida no art. 782.º CC, isto é, baste para provocar, em relação ao fiador, o vencimento de todas as prestações em dívida.

No fundo, se, na falta de convenção entre as partes, a interpelação do fiador não é suficiente para provocar, em relação a ele, a perda do benefício do prazo, então esta perda também não pode resultar de nenhuma citação do fiador.

MTS