Competência internacional:
princípio da causalidade*
1. O sumário de RL 13/1/2022 (24974/19.9LSB.L1-8) é o seguinte:
I– A competência internacional dos Tribunais Portugueses afere-se pelo quid disputatum, isto é, pelos termos em que o autor configura a relação jurídica controvertida, pressupondo que o litígio apresenta um ou mais elementos de conexão com uma ou várias ordens jurídicas distintas do ordenamento do foro.
II– Consistindo – no entender do autor - o facto ilícito gerador de responsabilidade civil na utilização e exploração do nome e imagem do A, e ocorrendo aquele - com a criação do jogo, contendo o nome e outras características pessoais e profissionais do A, incluindo a sua imagem, sem sua autorização, o qual foi posteriormente divulgado - nos Estados Unidos da América, então os Tribunais Portugueses são internacionalmente incompetentes para o conhecimento da causa.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Coloca-se a questão da competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer dos termos da acção.
Há que sublinhar desde já que o problema deverá ser apreciado no âmbito da relação controvertida configurado pelo Autor na petição inicial.
Como se pode ler no acórdão do STJ de 09/12/2013, disponível no site da dgsi, “a competência (…) afere-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respectivos fundamentos, atendendo-se, apenas, aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados”.
O art. 62º do CPC estabelece quais os factores de atribuição de competência internacional:
a)-Quando a acção possa ser proposta em território português, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;b)-Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram;c)-Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o Autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.
De acordo com o alegado pelo Autor na petição inicial, o Autor tem nacionalidade italiana, é jogador de futebol desenvolvendo a sua actividade profissional actualmente no Brasil, onde reside. Quanto à Ré trata-se de uma empresa norte-americana, que conta com várias sociedades subsidiárias, uma das quais sediada na Suíça e que tem a responsabilidade da venda dos produtos criados pela Ré, perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão.
O Autor exerceu a sua actividade profissional de futebolista em Portugal de 2011 a 2013 e de 2015 a 2018.
A Ré é uma empresa global de entretenimento digital interactivo, desenvolvendo e fornecendo jogos, conteúdos e serviços online para consolas com ligação à Internet, dispositivos móveis e computadores pessoais.
A causa de pedir invocado pelo Autor consiste no seguinte: teve conhecimento que a sua imagem, nome, as suas características pessoais e profissionais foram e continuam a ser utilizados nos jogos denominados FIFA (ou FIFA Football ou FIFA Soccer) nas edições de 2012, 2013, 2016, 2017 e 2018; no jogo denominado FIFA MANAGER na edição de 2012; e no jogo denominado FIFA-ULTIMATE TEAM-FUT nas edições 2012, 2013, 2014, 2016, 2017, 2018 e 2019. Todos esses jogos são propriedade da Ré.
Sendo que o Autor nunca concedeu autorização expressa ou tácita para ser incluído em tais jogos, nem conferiu quaisquer poderes aos clubes para que o fizessem.
Assim o Autor viu a sua imagem ser retratada e o seu nome divulgado sem o seu consentimento em milhões de jogos de vídeo. [...]
O problema em causa, relativo também a um jogador profissional de futebol e à empresa aqui Ré, foi ponderado e decidido, a nosso ver com inteira pertinência no recente acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26/10/21, disponível no endereço electrónico da dgsi, e que passamos a transcrever parcialmente:
“… a causa de pedir que aqui é invocada pelo Autor consiste na utilização e exploração comercial da sua imagem e do seu nome e demais características pessoais (…) pela Ré, sem o seu consentimento e, portanto, de forma ilícita. Enquadra-se assim esta pretensa actuação da Ré no campo da responsabilidade civil extra-contratual (…).“É igualmente certo que, baseando-se o pedido do A na responsabilidade por factos ilícitos, são pressupostos cumulativos desta responsabilidade, enquanto fonte geradora da obrigação de indemnização, o facto, a ilicitude desse mesmo facto (ilicitude que pode revestir duas modalidades, traduzindo-se na violação do direito de outrem ou na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios), o nexo de imputação do facto ao lesante, o dano e, finalmente, o nexo de causalidade entre o facto e o dano.Nessa medida, o dano integra igualmente a causa de pedir, quando invocada está a responsabilidade civil decorrente de facto ilícito, pelo que, verificando-se em território nacional os danos (ou pelo menos, parte significativa e relevante desses danos) ter-se-ia por atribuída a competência internacional aos tribunais portugueses, com fundamento na alínea b) do art. 62º”.
Temos assim que o facto ilícito gerador de responsabilidade consiste na utilização e exploração do nome e imagem do A, e ocorre com a criação do jogo, contendo o nome e outras características pessoais e profissionais do A, incluindo a sua imagem, sem sua autorização, o qual foi posteriormente divulgado.
Significa isto que o dano, utilização não autorizada e indevida do nome e imagem do A, ocorre com a própria criação dos jogos. A amplitude da divulgação do jogo com o uso de diversos meios, o montante maior ou menor dos ganhos económicos para a Ré e para as aludidas subsidiárias poderão servir para aferir a medida dos danos, mas não são autonomizáveis, ou seja, o dano já estava cometido com a criação do jogo, independentemente das variáveis da sua comercialização.
Voltando ao mencionado acórdão, salienta-se que “o facto constitutivo essencial da causa reporta-.se à produção e divulgação destes jogos utilizando a imagem e o nome do A, sem sua autorização e que esta produção e divulgação se localizam em solo norte-americano, independentemente de o poderem ser posteriormente para todo o mundo, mediante acordos feitos com a proprietária dos jogos, suas subsidiárias ou por qualquer outro meio (…)
Dito de outra forma: não é o local, ou um dos locais onde essa divulgação ocorre que confere a competência internacional aos tribunais portugueses, por não se poder afirmar que o dano ocorreu em Portugal. Não é o local, ou um dos locais onde o jogo é vendido ao consumidor final que constitui o elemento relevante para atribuição da competência internacional, mas antes o local onde o jogo foi criado e posto em circulação, por ser nesse local que ocorreram os factos constitutivos do direito invocado pelo Autor.”
Quer o facto ilícito quer o dano resultante do uso da imagem e nome do Autor, sem autorização deste, alegadamente imputáveis à Ré, ocorreram nos Estados Unidos da América, com a criação do jogo e com a sua venda ou cedência, seja a que título for, a outras empresas, eventualmente subsidiárias da Ré que o comercializaram em todo o mundo, salvo nos próprios EUA, Canadá e Japão onde se supõe que terá sido a própria Ré a proceder a tal comercialização.
O Autor tem razão quando alega que, tendo afirmado, na petição inicial, que o jogo foi divulgado em todo o mundo, também o foi, forçosamente, em Portugal.
Mas já não tem razão, em nosso entender, quando pretende que o dano, ou parte significativa do mesmo, ocorreu em Portugal.
Foi nos Estados Unidos da América, onde está sediada a Ré, que o jogo foi criado e onde se gerou a sua circulação, já que foi a Ré, através de sociedades subsidiárias ou através de outros meios, que iniciou tal circulação, ou seja, tal divulgação pública.
Não se verificam, pois, circunstâncias que possam preencher os requisitos do art. 62º b) do CPC.
Quanto à alínea c) do mesmo preceito, não se vislumbra que o direito invocado pelo Autor não possa tornar-se efectivo se não for por meio de acção proposta em tribunal português.
Aliás, o próprio Autor invoca no art. 177º da sua petição, um precedente, em caso similar ao seu, julgado nos Estados Unidos da América e com condenação da Ré.
Nestes termos, julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida."
*3. [Comentário] A RL decidiu bem.
A situação seria diferente se o autor pedisse apenas o ressarcimento dos danos sofridos em Portugal, mesmo que, como se compreende, seja muito difícil quantificar esses danos parciais.
MTS
A situação seria diferente se o autor pedisse apenas o ressarcimento dos danos sofridos em Portugal, mesmo que, como se compreende, seja muito difícil quantificar esses danos parciais.
MTS