18/07/2022

Jurisprudência 2022 (6)


Maior acompanhado;
direito a testar; representação


I. O sumário de RL 13/1/2022 (4106/11.2TCLRS-B.L1-8) é o seguinte:

1.–A Lei nº 49/2018 de 14/08, que criou o regime jurídico do maior acompanhado e eliminou os institutos da interdição e da inabilitação, previstos no Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de novembro de 1966, determinou no seu art. 26º, a aplicação imediata da nova lei aos processos de interdição (nº 1); estabeleceu que as interdições e inabilitações já decretadas passavam a estar sujeitas ao regime do maior acompanhado, com a atribuição ao acompanhante de poderes gerais de representação (nº 4); manteve a determinação dos atos que o acompanhado não pode praticar por si ou só por si, prevendo a possibilidade de tal determinação ser revista (nºs 4, 6, e 8); e definiu que os tutores passavam a ter o estatuto de acompanhantes.

2.–O maior incapaz mantém-se impedido de exercer os direitos que ficou impedido de praticar em consequência da declaração de interdição, designadamente, o direito a testar (vide art. 2189º, al. b), do CC na redação anterior à lei 49/2018, de 14/08), sem prejuízo de poder ser dirigido requerimento fundamentado ao juiz, pedindo autorização para a prática livre e direta do ato, e/ou de ser suscitada a revisão do acompanhamento anteriormente decretado à luz do regime atual (art. 26º, nºs 5, e 8, respetivamente, da sobredita Lei).

3.–O direito a testar insere-se na categoria dos direitos pessoalíssimos, sendo, como tal, insuscetível de ser praticado por terceiros, nomeadamente pelo acompanhante em representação do maior acompanhado, titular dos direitos e bens a testar, não podendo, por conseguinte, ser deferido o pedido de autorização do acompanhante, para testar em nome daquele, considerando o disposto nos arts. 2179º, nº 1, 2181, e 2182º, e bem assim, o disposto nos arts. 145º, 1938º, nº 1 e 1889º, nº 1, todos do mesmo Código.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A única questão a abordar e a decidir, face ao objeto do recurso já enunciado, é aferir sobre a possibilidade de ser concedida autorização ao requerente para, na qualidade de acompanhante do filho - o maior acompanhado J…M…S…S… - outorgar testamento em sua representação, relativamente a bens/direitos de que este é titular.

E adianta-se, desde já, que a sentença recorrida fez o devido enquadramento jurídico dos factos, não nos merecendo qualquer censura.

Assim, J…M…S…S… foi declarado interdito, de forma definitiva, por sentença proferida em 21 de março de 2013, e nomeado como seu tutor o ora requerente e seu pai, J…A… S…. 

A Lei nº 49/2018 de 14/08, criou o regime jurídico do maior acompanhado e eliminou os institutos da interdição e da inabilitação, previstos no Código Civil (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de novembro de 1966).

O seu art. 26º determinou a aplicação imediata da nova lei aos processos de interdição (nº 1); estabeleceu que as interdições e inabilitações já decretadas passavam a estar sujeitas ao regime do maior acompanhado, com a atribuição ao acompanhante de poderes gerais de representação (nº 4); manteve a determinação dos atos que o acompanhado não pode praticar por si ou só por si, prevendo a possibilidade de tal determinação ser revista (nºs 4, 6, e 8); e definiu que os tutores passavam a ter o estatuto de acompanhantes.

O regime do maior acompanhado introduziu alterações significativas aos regimes da interdição e da inabilitação, decorrendo agora do nº 1, do art. 145º do Código Civil, que o acompanhamento limita-se ao necessário, a definir necessária e casuisticamente pelo juiz, em função das particularidades do acompanhado, só podendo ser atingidos direitos pessoais e “negócios da vida corrente” se a lei ou decisão judicial o impuser (art. 147º, nº 1, do mesmo Código), consagrando o nº 2, da mesma norma, como direitos pessoais, entre outros, o direito a testar.

O art. 2189.º, alínea b) do Código Civil, na redação anterior à que lhe foi dada pela sobredita lei, declarava os interditos por anomalia psíquica incapazes de testar; hoje, dispõe que os maiores acompanhados são incapazes de testar apenas nos casos em que a sentença de acompanhamento assim o determine.

À luz do enquadramento enunciado, concluiu, então, e com acerto, a Mmª Juíza do tribunal a quo que, “No caso dos autos, atendendo a que o Acompanhado foi declarado interdito, à luz do regime então em vigor, julga-se que os direitos que o mesmo foi declarado incapaz de exercer manter-se-ão tout court, mas agora ao abrigo da nova lei.

De facto, da Lei n.º 49/2018 não se retira a intenção do legislador em repristinar o exercício de quaisquer direitos pessoais de que o interdito estivesse incapaz de exercer, mas tão só, por um lado, a de adaptar as medidas então decretadas à nova realidade legal, e, por outro, estabelecer um modelo mais flexível de medidas de acompanhamento a adoptar e a decidir casuisticamente, de acordo com a incapacidade verificada.”

A Lei 49/2018 forneceu instrumentos que permitem a reavaliação do exercício de direitos por parte de quem havia sido interditado, facultando ao acompanhante, entre outros, o direito de pedir a revisão do acompanhamento anteriormente decretado, à luz do regime atual (art. 26º, 4, 6, e 8), de forma a obter sentença que defina o regime a cometer ao acompanhante e avalie sobre a possibilidade do livre exercício de direitos pessoais e negócios da vida corrente pelo acompanhado, faculdade que terá de ser exercida no âmbito do processo de interdição.

No caso, o requerente propôs ação de autorização judicial para a prática de ato, invocando o disposto no nº 5, do mesmo art. 26º, que prevê:

O juiz pode autorizar a prática de atos pessoais, direta e livremente, mediante requerimento justificado”.

Resulta inequivocamente de tal disposição, nomeadamente, das expressões “direta e livremente”, que o pedido que pode ser dirigido ao juiz visa a autorização para a prática de ato pelo próprio acompanhado e que este está impedido de realizar por força da interdição anteriormente decretada.

Ora, no caso, o que o requerente pretende é coisa diversa, é a obtenção de autorização para ser ele, em representação do maior acompanhado, a outorgar testamento relativamente a bens/direitos de que este é titular.

O testamento é um ato unilateral e irrevogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles (art. 2179º, nº 1, do Código Civil).

Podem testar todos os indivíduos que a lei não declare incapazes de o fazer (art. 2188º, do Código Civil).

O caráter pessoal do testamento, quer quanto à vontade, quer quanto à declaração é consagrado, por seu turno, no art. 2181º, nº 1, do Código Civil, ao dispor que: “O testamento é ato pessoal, insuscetível de ser feito por meio de representação ou de ficar dependente do arbítrio de outrem, quer pelo que toca à instituição de herdeiros ou nomeação de legatários, quer pelo que respeita ao objeto da herança ou do legado, quer pelo que pertence ao cumprimento ou não cumprimento das suas disposições”.

O direito a testar insere-se na categoria dos direitos pessoalíssimos que, como se lê na decisão recorrida, afirmam-se  “(…) como originários ou adquiridos, oponíveis erga omnes, intransmissíveis, perenes e imprescritíveis, bem como dotados de um carácter extrapatrimonial, em regra indisponíveis ou irrenunciáveis, uma vez que não são, em princípio, reconhecidas faculdades jurídicas que permitam a sua extinção, a sua disposição a favor de outrem, ou, ainda, a sua obrigação perante outrem de exercer tais poderes”.

E tanto assim é, que do elenco dos atos relativamente aos quais o acompanhante deve solicitar prévia autorização judicial, em representação do acompanhado, não consta efetivamente o direito a testar, como se alcança da leitura conjugada dos arts. 145º, 1938.º, n.º 1 e 1889.º, n.º 1, do Código Civil, restando concluir pela impossibilidade de autorizar o requerente a outorgar testamento em representação do filho/acompanhado, por se tratar de ato vedado pela lei, concluindo-se, como na sentença recorrida, a cujos fundamentos se adere, que “ (…) não está previsto na lei que o Tribunal possa autorizar terceira pessoa a fazer testamento, em nome e representação do titular de direito de testar. Assim como não poderá autorizá-lo, v.g., a votar, porque inerentes a uma vontade, consciência e decisão próprias, não compatíveis com o exercício por terceiros, ainda que judicialmente autorizado.

Veja-se, neste mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15.12.2020, Proc. n.º 19055/18.5T8SNT-A.L1-7, disponível in www.dgsi.pt, onde se concluiu que: «III. Por se tratar de acto pessoalíssimo e “insuscetível de ser exercido por terceiros, mesmo que pelo representante do titular dos bens e direitos a testar”, não é legalmente admissível o deferimento de autorização judicial, apresentada pelo acompanhante de um maior acompanhado, para testar em nome daquele - artigos 2179.º, n.º 1, 2181.º e 2182.º, n.º 1, do Código Civil.»

Ainda um terceiro argumento se pode chamar à colação e relativo à livre revogabilidade do testamento. Na verdade, como se garantiria, neste caso, a livre revogabilidade do testamento, se, atenta a incapacidade do Acompanhado, o mesmo estaria sempre dependente de um acto do Acompanhante (o ora designado ou outro)?

Não se pode, pois, autorizar o pretendido acto, na medida em que tal autorização não se encontra legalmente prevista e, bem ainda, por não ser possível garantir que a mesma corresponde a uma vontade própria do Acompanhado e que este possa, em qualquer momento, revogar a sua pretensão.”

[MTS]