“BB, cabeça de casal no presente inventário para separação de meações, veio requerer a realização de diligências probatórias adicionais, tendo em vista aferir que contas bancárias eram tituladas pelo interessado AA à data da decretação do divórcio. Para tanto, alega ter agora obtido “informações muito credíveis de familiares” de que o ex-cônjuge era titular de várias contas bancárias, circunstância que reputa de “absolutamente normal” face à profissão por este exercida.
Notificado para pronunciar quanto à pretensão da cabeça de casal, o interessado AA nada disse.
Cumpre apreciar e decidir.
É consabido que o quadro processual do regime do inventário na redacção dada pela Lei n.º 117/2019, de 13/09 introduziu amplas alterações ao paradigma pregresso, sendo uma delas a existência de fases processuais estanques, numa lógica de auto-responsabilização das partes. Aos desideratos de celeridade e de simplificação processual inerentes à reforma do processo de inventário, o legislador fez corresponder um princípio de auto-responsabilidade das partes, instituindo um sistema de preclusões que, concorrendo embora para uma marcha processual mais ágil, onera as partes com o exercício tempestivo das faculdades que adjectivamente lhes são conferidas.
Sabendo-se que a preclusão não encontra assento legal expresso, configura um instituto de criação doutrinal e jurisprudencial, radicado no ónus da concentração da defesa aplicável à contestação, cf. art. 573.º do CPC. Na síntese de Miguel Teixeira de Sousa, “(…) a preclusão pode ser definida como a inadmissibilidade da prática de um acto processual pela parte depois do prazo peremptório fixado, pela lei ou pelo juiz, para a sua realização” – “Preclusão e caso julgado”, Blog do IPPC, 2016, p. 1.
Nas esclarecedoras palavras de Pedro Pinheiro Torres, a propósito do ónus de alegação e prova a cargo do cabeça de casal, “[p]rocurou valorizar-se o processo de partes, configurado pelos articulados, o que, de modo significativo, se traduz na imposição ao requerente do inventário, quando este se arrogue ser titular (por direito ou obrigação legal) do exercício das funções de cabeça de casal, de um ónus de alegação e prova em tudo semelhante ao cometido a um qualquer autor numa ação judicial, passando a competir-lhe, nos termos do artigo 1097.º do CPC, trazer aos autos os elementos de identificação e prova suficientes para que sejam conhecidos a causa de pedir (abertura de sucessão) a sua legitimidade e os demais interessados, todos os elementos que entenda poderem influenciar a partilha, e a relação dos bens e dos créditos e dívidas da herança, deste modo se reunindo naquela peça processual diversos actos até aqui dispersos” - Notas Breves de Apresentação do Processo de Inventário na Redacção dada pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, Inventário: o novo regime, Centro de Estudos Judiciários, 2020, p. 21.
Também Carlos Lopes do Rego deixa clara a mudança de paradigma, sublinhando que é possível destrinçar, actualmente, uma fase de articulados, que abrange a fase inicial (espoletada com um requerimento que, quando apresentado pelo cabeça de casal, assume a natureza de petição inicial) e as fases de oposições e de verificação do passivo, “em que as partes, para além de requererem a instauração do processo, têm obrigatoriamente de suscitar e discutir todas as questões que condicionam a partilha, alegando e sustentando quem são os interessados e respetivas quotas ideais e qual o acervo patrimonial, ativo e passivo, que constitui objeto da sucessão” – “A recapitulação do processo de inventário”, Julgar Online, Dezembro de 2019, p. 9.
A marcha processual do processo de inventário caracteriza-se, assim, por fases distintas e estanques, que fluem inexoravelmente para a realização da partilha, e entre as quais não há, nem pode haver, vasos comunicantes. São elas: (i) a fase dos articulados, que tem por elemento axial a relação de bens e a declaração de compromisso de honra, (ii) a fase de oposição, impugnação e reclamação, (iii) o despacho de saneamento, forma à partilha e agendamento da conferência de interessados, (iv) conferência de interessados e, finalmente, (v) mapa de partilha e sentença homologatório.
É através deste recorte processual que o legislador pretende que se estabilizem, na fase de saneamento do processo, todas as questões que possam influir na partilha, quais sejam a identificação das pessoas que a ela concorrem, os respectivos quinhões ideais e o acervo patrimonial a partilhar. Daí que, uma vez proferidos os despachos previstos nos n.ºs 1 e 2 do art. 1110.º do CPC, não seja admitida a reapreciação das questões de facto e direito sobre as quais eles incidiram, sendo a interposição de recurso o meio processualmente próprio para reagir a tais decisões, como previsto no art. 1123.º, n.º, 2, al. b).
São apodícticas as palavras de Pedro Pinheiro Torres a este propósito: “Após o termo do prazo resultante da notificação prevista na al. b) do n.º 1 do art. 1110.º, o juiz deverá proferir um despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha, definindo as quotas ideais de cada interessado e designando dia para a realização da conferência de interessados. Com a previsão da prolação dos despachos enunciados nos n.ºs 1 e 2 do artigo 1110.º do CPC o legislador procurou dotar os interessados do conhecimento dos termos (fixados pelo Juiz) em que deverão intervir na Conferência de Interessados, quer relativos aos bens a partilhar ou aos encargos da herança, quer os relativos ao quinhão ideal de cada um na herança, isto é, à “percentagem” com que cada um concorre à mesma, independentemente dos bens que, em concreto, poderão vir a preencher esses quinhões.
Com estas decisões pretende-se estabilizar, nesta fase do saneamento, as questões de facto e de Direito suscetíveis de interferir no curso da “partilha” propriamente dita, excetuando deste o conhecimento de eventual incidente de verificação e redução de inoficiosidades, que deve ser suscitado até ao momento do início das licitações e sobre o qual mais abaixo será feita uma referência mais detalhada.
Como reforço dessa proposta de estabilidade – e, naturalmente, da força dessas decisões no processo – foi consagrada, na alínea b) do n.º 1 do artigo 1123.º do CPC a possibilidade de apelação autónoma das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha, admitindo-se, mesmo, no n.º 3 desse artigo que o Juiz poderá atribuir efeito suspensivo do processo ao recurso interposto daquelas decisões se a questão a ser apreciada puder afetar a utilidade prática das diligências que devam ser realizadas na conferência de interessados.
Com esta previsão de recorribilidade, cria-se, naturalmente, a força do trânsito em julgado daquelas decisões, quando não impugnadas, retirando, assim, às partes, a possibilidade de virem a suscitar, posteriormente, as questões conhecidas nas mesmas, como se de meras decisões interlocutoras se tratasse” – cf. “Notas Breves (…)” cit., p. 26.
Tendo presentes estas premissas, fácil é concluir que a realização das diligências probatórias requerida pela cabeça de casal carece de fundamento legal, por ostensivamente extemporânea.
Com efeito, no dia 14/01/2023 foi proferida sentença relativa à reclamação à relação de bens deduzida pelo interessado AA, o que equivale dizer que foram resolvidas todas as questões susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar, sem prejuízo daquelas quanto às quais as partes foram remetidas para os meios comuns. Logo, a realização de diligências probatórias adicionais com vista à identificação de outros saldos bancários que, eventualmente, pudessem integrar o património comum, implicaria a reapreciação de questões relativamente às quais o tribunal já se pronunciou e, decorrentemente, quanto às quais está esgotado o seu poder jurisdicional (cf. art. 613.º, n.º 1 do CPC). Numa palavra, está encerrada a segunda fase do processo, i.e., a fase de oposição, impugnação e reclamação.
Sempre se diga que, ainda que não tivesse sido proferida decisão quanto à reclamação à relação de bens, sempre a pretensão da cabeça de casal estaria votada ao insucesso. Isto porque, pese embora pudessem ser alegados factos objectiva ou subjectivamente supervenientes, nos termos consignados no art. 588.º do CPC, esta segunda modalidade de superveniência (como é o caso da invocada) depende da prova de que a parte apenas tomou conhecimento dos mesmos após o termo dos prazos previstos nos artigos 1104.º e 1105.º. Ora, uma vez que a cabeça de casal não indicou qualquer meio de prova da superveniência que alega, não poderia ser admitida a introdução de elementos factuais inovadores. Mal se compreende, de resto, que, sendo conhecedora da profissão do interessado, carecesse da informação de um familiar para requerer as informações bancárias ora solicitadas, já que as poderia ter requerido no momento processualmente próprio.
Em face do exposto, e sem necessidade de considerações adicionais, indefere-se o requerido pela cabeça de casal”.
- à data da formulação do requerimento se encontrava encerrada a fase de oposição, impugnação e reclamação; e- não ter sido produzida prova da superveniência do conhecimento (quanto à existência de outras contas tituladas pelo cointeressado à data do divórcio).
[MTS]