19/06/2024

Jurisprudência 2023 (195)


Procedimento cautelar;
periculum in mora; aferição*


1. O sumário de RC 7/11/2023 (1260/21.9T8FIG.C2) é o seguinte:

i) A impugnação da decisão da matéria de facto deve ser indeferida se a alteração pretendida consiste, na utilização do advérbio “sobretudo” e no acrescento de “outros” à existência comprovada de resíduos de plástico, se, relativamente ao aludido advérbio não se divisar qual o seu relevo fáctico-jurídico, e quanto à outra parte, no requerimento inicial a impugnante não ter referido a sua existência, muito menos os concretizando, nem agora em recurso o fazendo; devia tê-lo feito, se relevantes, no seu req. inicial (art. 5º, nº 1, do NCPC) ou na sua impugnação recursiva (nº 2, b), do mesmo normativo), indicando quais eles eram especificamente e quais as provas em concreto (art. 640º, nº 1, b) e c), do NCPC);

ii) Como é sabido a pessoa física legal representante não se confunde com a pessoa colectiva representada (art. 5º do Cód. Soc. Comerciais); se a recorrente alegou no seu requerimento inicial que o requerido agiu em nome próprio, não pode agora, em impugnação recursiva sobre a decisão da matéria de facto, pretender que afinal o mesmo agiu na qualidade de legal representante de entidade societária terceira;

iii) É infrutífero recorrer ao regime da notoriedade dos factos para comprovar que uma pessoa física singular agiu ou em seu nome ou diferenciadamente como legal representante de sociedade, ou que resíduos plásticos são tóxicos, poluentes e inflamáveis, com recurso à figura dos factos notórios, pois como é óbvio não são do conhecimento geral as apontadas circunstâncias (art. 412º do NCPC);

iv) Não se estando perante providência cautelar, para defesa de interesses difusos, só os direitos subjectivos podem operar;

v) Os direitos de personalidade, previstos, no art. 70º, nº 1, do CC, estão ligados basicamente à personalidade física ou moral do ser humano, e em casos particulares das pessoas colectivas; as ofensas no círculo biológico respeitam apenas ao ser humano, ofensas físicas às pessoas colectivas não existem;

vi) Dentro do círculo biológico, que abrange a vida e a integridade física, temos, designadamente, os direitos à saúde, ao repouso e sono, a protecção contra emissão de ruídos e cheiros, o direito à qualidade do ambiente, a qualidade de vida;

vii) As potencias violações dos direitos de personalidade da requerente, sociedade comercial, como direitos ao ambiente, à qualidade de vida, à saúde - aliás não comprovados – não teriam cobertura legal;

viii) Em relação à violação de direitos subjectivos dos sócios da requerente não tem esta legitimidade para interpor qualquer providência cautelar não especificada, pois não é ela a lesada no seu direito (art. 362º, nº 1, do NCPC);

ix) Não concretizando a requerente de providência cautelar não especificada quaisquer prejuízos patrimoniais, irreparáveis ou de difícil reparação, que para a mesma requerente possam advir/advenham da circunstância de estar impedida pelo requerido de utilizar a parte do seu prédio por este ocupada com materiais, ou de que forma o depósito desses materiais ameaça as suas instalações (ainda por cima quando a ocupação já remonta há mais de 3 anos), nada sendo, outrossim, alegado quanto à (in)capacidade económica do requerido e à eventual dissipação de património que não lhe permita suportar uma eventual indemnização, não se verifica o requisito legal do periculum in mora.

2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II – Factos Provados

A) O prédio urbano composto por edifício destinado a armazém e actividade industrial com a área coberta de 8.965,05m2 e logradouro com a área descoberta de 11.029,95 m2, sito na Rua ..., ..., freguesia ... e concelho ..., inscrito na respectiva matriz urbana actualmente sob o Artº ...80º (correspondente ao anterior Artº 599º), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...63/..., com a licença de utilização emitida pela Câmara Municipal ... com o nº 31/17 e com a localização constante da Planta de situação, tem aquisição inscrita em nome da autora.

B) No mês de Maio de 2018, foram colocadas cerca de 200 toneladas de materiais plásticos, no limite poente do logradouro daquela sua acima identificada propriedade,

C) mais concretamente junto à linha do caminho de ferro e a uma linha de água aí existente, ou seja, no exacto local melhor identificado na planta (Doc. 2) e fotografias juntas (Doc. 3 e 4).

D) A Requerente, em 20 de Abril de 2020 findo, solicitou à entidade competente ARHC – Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro a sua intervenção com vista à solução da situação em apreço, entidade esta que apesar de ter prontamente comunicado à Requerente em 12 Maio 2020 findo que de imediato, solicitou ao Comandante da G.N.R. ... a sua fiscalização,

E) Nenhuma eficácia teve tal denúncia, porquanto, mantém-se ainda no local a totalidade dos materiais plásticos aí colocados. [...]

Factos não provados:

1) O requerido depositou os materiais identificados em B). [...]


III – Do Direito [...]

3. Na decisão recorrida escreveu-se que:

“Com o presente procedimento cautelar pretende a requerente que o requerido retire os materiais plásticos que depositou no logradouro do seu prédio e a fixação de uma sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação que vier a ser sentenciada.

Do disposto nos arts. 362º e 368º do Código de Processo Civil, resulta que, para a procedência da providência cautelar comum, é absolutamente necessário que se verifique:

1. Probabilidade séria da existência do direito invocado – fumus bonus iuris;

2. Fundado receio de que outrem, antes da acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito - periculum in mora;

Nos termos do art. 1311º, nº 1 do Código Civil, o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.

Uma vez que está demostrado que o prédio urbano inscrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...63 da Freguesia ... tem registo de aquisição em nome da autora, e que a presunção decorrente desse registo não se mostra contrariada (cfr. art. 7º do CRPredial), considera-se provado que a autora é proprietária do terreno onde foram depositados os materiais plásticos.

Sendo proprietária, tem direito a exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor do bem a restituição e o reconhecimento dessa propriedade.

Não se tendo provado, ainda que sumariamente, que tenha sido o requerido a colocar no terreno da autora os materiais plásticos e, consequentemente, a ocupar ilicitamente o respectivo espaço, ou seja, a sua qualidade de possuidor ou detentor, não pode a requerida dele exigir a remoção e a restituição do espaço.

A requerente não demonstra a titularidade do direito que se arroga contra o requerido, pelo que improcede a providência.

Ainda que assim não se entendesse, sempre se consideraria, face à factualidade que ficou demonstrada, não verificado o requisito periculum in mora.

Não existindo periculum in mora, ou não tendo a requerente demonstrado que corre um sério risco de que a demora na decisão definitiva lhe acarrete um dano irreparável ou de difícil reparação, sempre teria de improceder a providência requerida.”.

A recorrente discorda (cfr. conclusões de recurso H. e K-).

Face à inalteração da decisão da matéria de facto, desde já avançamos que o recurso não procede. Pela essencial e decisiva razão já indicada na decisão recorrida: não se provou – facto não provado 1) -, ainda que sumariamente, que tenha sido o requerido, em nome próprio, a colocar no terreno da requerente os materiais plásticos e, consequentemente, a ocupar ilicitamente o respectivo espaço, na qualidade de possuidor ou detentor. Não pode, por isso, a requerida dele exigir a remoção e a restituição do espaço, porque a requerente não demonstra a titularidade do direito que se arroga contra o requerido. Sempre, por esta razão essencial, teria de improceder a providência.

Mas por outras razões jurídicas também não poderia proceder. Expliquemos, embora, a partir deste lugar do aresto, necessariamente de modo mais abreviado.

Primeiro. Não estamos num procedimento cautelar para defesa de interesses difusos (ou colectivos), como se expressa o art. 31º do NCPC, para defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural, do domínio publico e da protecção do consumo de bens e serviços. O artigo refere-se à legitimidade para as acções relativas a interesses difusos, ou seja, a interesses que pertencem a todos e a cada um dos membros de um grupo ou de uma classe, sem que, contudoesses interesses sejam susceptíveis de ser individualmente apropriados por algum ou algum desses membros (vide M. Teixeira de Sousa, em CPC ONLINE, nota 1 (a) ao art. 31º, pág. 40).   

Efectivamente, a recorrente, quer no seu req. inicial quer nas suas alegações de recurso alega pretender defender, apenas, direitos seus, subjectivos, de propriedade e de personalidade, previstos nos arts. 70º e 1305º do C. Civil. Esclarecido este ponto prévio, prossigamos.

Segundo. Os direitos de personalidade, previstos, no art. 70º, nº 1, do CC, estão ligados à personalidade física ou moral, basicamente do ser humano, e em casos particulares das pessoas colectivas.

As ofensas no círculo biológico respeitam apenas ao ser humano, ofensas físicas às pessoas colectivas não existem (vide art. 160º, nº 2, do CC, art. 6º, nº 1, do C. S. Com., R. Capelo de Sousa, D. Geral de Personalidade, págs. 594/603, sobretudo págs. 594/596, Menezes Cordeiro, Comentário ao CC, Vol. I, pág. 276, L. Carvalho Fernandes, T. Ger. Dir. Civil, Vol. I, 2ª Ed., pág. 188).

Dentro do círculo biológico, que abrange a vida e a integridade física, temos, designadamente, os direitos à saúde, ao repouso e sono, a protecção contra emissão de ruídos e cheiros, o direito à qualidade do ambiente, a qualidade de vida (vide R. Capelo de Sousa, ob. cit., págs. 595/596, Menezes Cordeiro, Comentário ao CC, Vol. I, págs. 275 e 280/281, L. Carvalho Fernandes, T. Ger. Dir. Civil, Vol. I, 2ª Ed., págs. 195, 197/200, e Maria de Fátima Ribeiro, em Comentário ao CC, Parte Geral, U. Católica, nota 6 ao art. 70º, pág. 172).

Ora, as potencias violações dos direitos de personalidade da requerente, como direitos ao ambiente, à qualidade de vida, à saúde - aliás não comprovados, como resulta dos factos não provados 2), 3), 6) a 10) – não teriam cobertura legal.     

Terceiro. Em relação à violação de direitos subjectivos dos sócios – comprovada no facto provado I) e não provada no facto não provado 4), 2ª parte -, não tem a requerente legitimidade para interpor qualquer providência cautelar não especificada, pois não é ela a lesada no seu direito, como reza o art. 362º, nº 1, do NCPC.

Quarto. Em relação à potencial violação dos seus próprios direitos, temos que não provando prejuízos para a rega ou que se viu obrigada a recorrer a um reservatório – factos não provados 4) 1ª parte, e 5) -, também por aqui, não poderia obter a providência desejada.

Quinto. Por fim, face à matéria provada em B), C), H), I), 1ª parte, e J), com aparente violação do seu direito de propriedade e ameaça de prejuízo ao seu património, mesmo assim, a recorrente não lograria obter a dita providência. Por não verificação do requisito periculum in mora. Ou seja, a requerente não demonstrou que corre um sério risco de que a demora na decisão definitiva lhe acarrete um dano patrimonial irreparável ou de difícil reparação.

E para esta conclusão já foi apresentada fundamentação jurídica adequada, na decisão da 1ª instância anteriormente proferida nos autos, onde se disse que:    

Porém, no que concerne aos “danos patrimoniais tende entender-se que, salvo se o devedor estiver em situação económica difícil, insolvência iminente ou atual, em regra não são dificilmente reparáveis, porquanto, mesmo que irreparáveis in natura, são sempre indemnizáveis. A circunstância de poderem ser graves, em nada tange essa avaliação da suscetibilidade concreta de indemnização” [19].

Jurisprudencialmente, e a título meramente exemplificativo, referencie-se o sumariado:

- no douto Acórdão do STJ de 14/12/1995 [20], com algumas atinências ao caso sub júdice, no sentido de que “requisito primordial das chamadas providências cautelares não especificadas é um fundado receio de lesão grave e de difícil reparação do direito do requerente.

Nisso consiste o "periculum in mora", que terá de ser provado, em termos de convencer o tribunal de que a demora de uma decisão - a obter através da acção competente - acarreta um prejuízo a que se pretende obviar com o procedimento cautelar”;

- no douto aresto do mesmo STJ de 29/06/1999 [21], onde se escreveu que “se a requerida sociedade comercial - em providência cautelar contra si deduzida para retirada imediata de todas as montras, expositores, reclamos e anúncios luminosos afixados no respectivo estabelecimento - havia tomado de arrendamento a fracção em causa há mais de 25 anos, não se descortina qualquer subjacente "periculum in mora" que importe recorrer com carácter de urgência.

Os prejuízos resultantes do deferimento de tal providência poderiam, de resto, exceder, em medida considerável, os danos que com esta se pretendia evitar já que equivaleria ao encerramento do estabelecimento, o qual, mesmo, a título provisório, equivaleria na prática à sua morte”;

- no douto Acórdão de 25/11/1999 [22], realçando que “o receio deve ser fundado, isto é objectivamente fundamentado em factos concretos, que não em circunstâncias de carácter meramente eventual, hipotético ou conjectural”.

E, a propósito do ónus probatório, aduz impender “sobre o requerente o encargo de satisfazer no requerimento inicial o ónus de alegação de matéria de facto reveladora do direito de que é titular, a par de outros de onde possa concluir-se pela existência do "periculum in mora, funcionando assim, nesta sede, o princípio geral segundo o qual aquele que alega um direito, deve fazer prova dos factos constitutivos desse direito - artigo 342 n. 1 do CCIV66”.” – cfr. Ac. RL de 11.02.2021, proc. 534/16.5T8SXL-A.L1-2.

Confrontando o invocado no requerimento inicial com o que se deixa dito, facilmente se conclui que o substrato fáctico alegado não traduz qualquer fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável de direitos da requerente, pessoa colectiva, nomeadamente por via da indemnização. Com efeito, não são concretizados quaisquer prejuízos que para a requerente advenham da circunstância de estar impedida pelo requerido de utilizar a parte do seu prédio por este ocupada com materiais, ou de que forma o depósito desses materiais ameaça as suas instalações (tanto mais que se extrai da petição que a ocupação já remonta a Maio de 2018, pelo que desde então a requerente não usufruirá dessa parte do prédio), nada sendo, outrossim, alegado quanto à (in)capacidade económica do requerido e à eventual dissipação de património que não lhe permita suportar uma eventual indemnização.”.

E assim é realmente.  Perante os aludidos factos B), C), H), I), 1ª parte, e J), não se poderia concluir pelo perigo sério de que a demora na decisão definitiva acarretaria à requerente um dano grave de difícil reparação ou irreparável."

*3. [Comentário] Atentos os factos não provados, não de discorda da decisão tomada no acórdão.

Com o que não se pode concordar é com a concepção sobre o periculum in mora adoptado pelo acórdão (bem como, aliás, pelo tribunal de 1.ª instância). Importa recordar que o periculum in mora é aferido em função da necessidade de atribuir uma tutela provisória para evitar a lesão grave e de difícil reparação que decorreria de essa tutela ser concedida apenas através de uma tutela definitiva. É esse o sentido do disposto nos art. 2.º, n.º 2, e 362.º, n.º 1, CPC (para maiores desenvolvimentos, cf. MTS, CPC on line (2024.04), art. 362.º, 13 ss.).

A aferição do periculum in mora nada tem a ver com a capacidade económica do demandado. Por exemplo: ao requerente que solicita que um lixo tóxico seja retirado de uma sua propriedade não se pode responder "Não se preocupe! Não mandamos retirar o lixo, porque o requerido tem capacidade económica para reparar todos os danos que já sofreu ou que venha a sofrer na sua saúde". 

Como o exemplo bem demonstra, não faz sentido tornar a lesão grave e dificilmente reparável do direito como pressuposto de uma obrigação de indemnização mais fácil ou menos facilmente susceptível de ser satisfeita pelo requerido. O que a lesão grave e dificilmente reparável justifica é o proferimento de uma providência cautelar.

MTS