21/10/2024

Afinal, havia dois bons caminhos para chegar a uma boa decisão


1. O sumário de um acórdão de uma das Relações é o seguinte:

I - As partes podem confessar factos ou confessar o pedido, dispondo do direito, mas não podem confessar ou acordar a conclusão jurídica que está em discussão na acção.

II - Numa acção de responsabilidade civil as partes não podem acordar que a ré é responsável pelos danos que se vierem a provar e a acção prosseguir apenas para julgamento dos danos.

III - Se da fundamentação de facto da sentença não constam os factos atinentes aos restantes pressupostos da responsabilidade civil, a sentença deve ser anulada para ampliação da matéria de facto aos factos atinentes a esses pressupostos.

 
2. Para melhor se perceber o problema em causa, transcreve-se o essencial da fundamentação do acórdão:

"O presente recurso evidencia uma situação insólita que, com todo o devido respeito, não podia ocorrer.

A sentença recorrida, com efeito, não possui a fundamentação de facto necessária ao preenchimento dos pressupostos do instituto da responsabilidade civil que constitui o fundamento do pedido de indemnização. Não se alcança como foi possível proferir-se uma sentença a condenar a ré a pagar à autora uma indemnização com fundamento no artigo 483.º do Código Civil quando não existe na sentença absolutamente nenhum facto que permita o preenchimento dos requisitos do aludido instituto, com excepção apenas do requisito do dano.

É certo que na acta da audiência consta o seguinte: «foi acordado pelas partes, através dos seus ilustres mandatários presentes, de que a ré assume a obrigação de indemnização à autora por pelos danos a apurar e a liquidar na presente audiência que apresentem em nexo de casualidade adequada com o acidente em discussão nos autos».

Todavia, ao assinalarem isto os mandatários lavraram num manifesto erro, indevidamente tolerado pelo tribunal.

A lei permite às partes confessar factos (artigos 352.º e seguintes do Código Civil) ou confessar pedidos (artigo 283.º do Código de Processo Civil).

Também é possível o reconhecimento de qualidades jurídicas, mas isso apenas quando essas qualidades jurídicas não são precisamente o objecto do processo, nem são determinantes para a solução do caso.

O réu pode assim confessar factos ou confessar o pedido, dispondo do direito, mas não pode confessar a conclusão jurídica que está em discussão na acção.

Numa acção de responsabilidade civil, por exemplo, pode admitir-se que o réu reconheça que o autor é proprietário da coisa danificada, mas já não que o réu reconheça que a responsabilidade pelos danos provocados é sua. A responsabilidade pelos danos resultará sempre da aplicação do direito aos factos, o que é tarefa do tribunal.

Com efeito, desde que na sequência da instauração da acção e na falta de transacção das partes sobre o respectivo objecto, a decisão do conflito esteja confiada ao tribunal, como nessa tarefa o tribunal é livre (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), o tribunal não pode ser forçado pelas partes a tirar a conclusão jurídica que corresponde à interpretação de qualquer das partes ou de ambas. [...].

Não se compreende igualmente que na sequência daquela declaração feita para a acta o Mmo. Juiz a quo tenha, no relatório da sentença, escrito que «a assunção pela ré da obrigação de indemnizar a autora pelos danos decorrentes do acidente, cuja determinação será objecto de julgamento constitui uma confissão parcial do pedido. Considerando a disponibilidade do objecto e a qualidade da declarante, homologo a confissão parcial formulada em audiência, nos termos dos arts. 290.º, n.ºs 1 e 3, e 283.º, do CPC.» [...]

Nesse sentido, jamais o Mmo. Juiz podia fazer o que fez, ou seja, decidir que «não se pronunciar(ia) sobre a factualidade respeitante ao acidente e respectivo juízo de culpa e ainda a atinente ao contrato de seguro, limitando-se a apurar os danos decorrentes e respectivo nexo de causalidade com o acidente

Qual a consequência deste erro técnico-jurídico para efeitos do processo?

A consequência é a de que a sentença recorrida não possui a fundamentação de facto indispensável para permitir a esta Relação conhecer do objecto dos recursos. [...]

Quando a fundamentação de facto é insuficiente para a apreciação do mérito da causa em relação a algum dos pedidos, a Relação é obrigada a determinar a ampliação da matéria de facto, nos termos da alínea c) dos n.ºs 2 e 3 do artigo 662.º do Código de Processo Civil. [...]

Em suma, impõe-se anular a sentença recorrida para se proceder à indispensável ampliação da matéria de facto, procedendo-se à discussão e julgamento dos factos alegados pelas partes e atinentes aos restantes pressupostos do instituto da responsabilidade pelas consequências do acidente (o facto, a ilicitude, a culpa ou risco e o nexo de causalidade), elaborando-se de seguida sentença de cuja fundamentação."

 
3. a) Salvo o devido respeito, o acórdão lavra num equívoco e não esgotou as hipóteses de análise do problema.

O acórdão enquadrou a questão no âmbito da confissão de factos (art. 352.º ss. CC; art. 452.º ss. CPC), mas o que estava em causa era uma confissão parcial do pedido (art. 283.º, n.º 1, CPC), como, aliás, se entendeu na 1.ª instância. 

A Relação considera que assim não se pode entender com a seguinte argumentação:

"O pedido formulado pela autora não é «que a ré seja condenada a reconhecer que é responsável pelo pagamento de uma indemnização à autora». O pedido é o da «condenação da ré pagar-lhe a indemnização de 54.180,87 €, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal de 4% ao ano, desde a instauração da até pagamento, e a indemnização que vier a ser fixada em decisão ulterior ou em incidente de liquidação».

Na declaração dos mandatários registada na acta não há nenhuma confissão deste pedido, ainda que parcial, tanto mais que, inclusivamente, o que resulta dessa declaração é que a obrigação de pagamento da indemnização dependia ainda do que se viesse a provar quanto aos danos; ou seja, nem sequer é uma assunção em definitivo da responsabilidade pelo pagamento de qualquer indemnização."

Salvaguardada toda a consideração, não se pode acompanhar esta argumentação. No processo em análise, ocorreu efectivamente uma confissão parcial do pedido, dado que a Ré confessou ser responsável pelos danos, ficando apenas por quantificar o seu montante. O que daqui resulta é que a confissão não é total, mas apenas parcial.

A seguir-se a orientação da Relação (que parece entender que a confissão parcial do pedido exige a confissão de uma parte quantificada do pedido), também não seria uma confissão parcial do pedido o reconhecimento pelo réu de que, tal como se formula no pedido, tem de entregar a habitação, se essa parte acrescentar que ainda não se completou o prazo para essa entrega
. Na orientação da Relação, quem queira confessar que tem de entregar uma coisa tem também de aceitar que a entrega é imediata; se não aceitar a entrega imediata, não há nenhuma confissão do pedido e o dever de entrega tem de ser averiguado na acção pendente.

Convém ainda recordar que, no processo pendente, o resultado que foi obtido com a confissão parcial do pedido também seria atingido se a Ré tivesse apenas impugnado os factos relativos aos danos e seus montantes, não se pronunciando sobre os factos relativos aos demais pressupostos da responsabilidade civil (que assim ficariam admitidos por acordo: art. 574.º, n.º 2, CPC). Porque é que a admissão por acordo de todos os factos relativos aos pressupostos da responsabilidade civil, com excepção daqueles que respeitam aos danos, não suscita nenhumas dúvidas, mas não se aceita que a ré confesse a parte do pedido que se refere a esses mesmos pressupostos?

Também não parece muito feliz a argumentação da Relação de que 

"O réu pode assim confessar factos ou confessar o pedido, dispondo do direito, mas não pode confessar a conclusão jurídica que está em discussão na acção".

Cabe perguntar: não é a confissão de uma conclusão jurídica o que ocorre em toda e qualquer confissão do pedido? Se o réu confessa o pedido de pagamento de uma dívida, não está a confessar uma "conclusão jurídica"? Pode até afirmar-se que é por aí que passa a diferença entre a confissão de factos e a confissão do pedido: (i) a confissão de factos não é a confissão de uma "conclusão jurídica", pois que o tribunal continua a ter a liberdade de qualificar o facto confessado (art. 5.º, n.º 3, CPC); (ii) a confissão do pedido é necessariamente a confissão de uma "conclusão jurídica" ("o autor é proprietário"; "sou devedor do autor"; "a dívida está paga"); é, aliás, isto que permite que o tribunal se limite a condenar "nos [...] precisos termos" da confissão realizada pelo réu (art. 290.º, n.º 3, CPC).

Do acórdão consta a seguinte afirmação:

"Se quiser assumir a responsabilidade, independentemente da sua culpa ou contra esta, o demandado poderá confessar o pedido ou os factos que o suportam, mas, nesta hipótese, fica sempre sujeito ao que for entendido como resultante da aplicação do direito aos factos confessados (que, independentemente da opinião das partes, podem ser ou não suficientes para alicerçar o juízo de responsabilidade formulado pelo autor)."

A interpretação da afirmação não é isenta de dificuldades, dado que não é claro se o "nesta hipótese" se refere apenas à confissão de factos ou também à confissão do pedido. Admitindo que a afirmação respeita apenas à confissão de factos, então, a contrario sensu, na confissão do pedido o demandado "não fica sempre sujeito ao que for entendido como resultante da aplicação do direito aos factos confessados" (o que, aliás, é absolutamente correcto). Só que isto é precisamente o contrário do que se defende no acórdão, como resulta do seguinte trecho dele constante:

"Numa acção de responsabilidade civil, por exemplo, pode admitir-se que o réu reconheça que o autor é proprietário da coisa danificada, mas já não que o réu reconheça que a responsabilidade pelos danos provocados é sua. A responsabilidade pelos danos resultará sempre da aplicação do direito aos factos, o que é tarefa do tribunal".

Não é difícil concluir que, se assim fosse, a confissão do pedido ficaria sem campo de aplicação. Note-se que não é impossível o tribunal da causa rejeitar a homologação de uma confissão do pedido por motivos relacionados com o próprio pedido. No entanto, isso só pode suceder nos raros casos em que o pedido seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes. Fora destes restritos casos, o tribunal deve homologar a confissão do pedido.

É claro que a confissão do pedido é um acto unilateral do réu que não necessita de nenhuma concordância do autor. A circunstância de, no caso concreto, a confissão do pedido ser apresentada como um acordo das partes não deve ser motivo de confusão. No fundo, o que as partes disseram foi que estão de acordo quanto à confissão parcial do pedido pela Ré. A formulação não é feliz, mas não isenta a Relação de interpretar o verdadeiro sentido jurídico da afirmação.

b) Em conclusão: salva a devida consideração, nada havia a censurar na totalmente defensável sentença recorrida.

4. Pode admitir-se que a Relação não se sentisse confortável com o enquadramento do caso sub iudice na confissão parcial do pedido. Havia então um outro enquadramento que a Relação devia ter considerado.

Recorde-se que, segundo se transcreve no acórdão, 

«foi acordado pelas partes, através dos seus ilustres mandatários presentes, de [sic] que a ré assume a obrigação de indemnização à autora por pelos danos a apurar e a liquidar na presente audiência que apresentem em nexo de casualidade adequada com o acidente em discussão nos autos».

Não é impossível interpretar esta afirmação como referida a um contrato probatório, em concreto como um contrato probatório sobre o objecto da prova: as partes acordam sobre o que consideram assente e, portanto, não carecido de prova e sobre o que entendem controvertido e, portanto, necessitado de prova. Nada no disposto no art. 345.º CC obsta à validade desse contrato.

A favor da validade deste contrato está certamente a circunstância de nada impedir que as partes tivessem celebrado esse mesmo contrato probatório antes da instauração da acção. Certamente ninguém diria que esse contrato celebrado antes da pendência da causa não seria válido por "
o tribunal não pode[r] ser forçado pelas partes a tirar a conclusão jurídica que corresponde à interpretação de qualquer das partes ou de ambas".


5. O resultado prático do acórdão -- a baixa do processo à 1.ª instância para que nesta se amplie a matéria de facto "no que respeita aos factos essenciais alegados pela autora nos artigos 1.º a 115.º da petição inicial" -- também é bastante discutível. Vai-se obrigar a 1.ª instância a proceder ao julgamento de matéria de facto sobre a qual as partes estão de acordo? Não é isso um bom exemplo de desperdício de recursos?

Se as partes mantiverem o espírito de colaboração, a situação pode ser "salva" através da confissão pela Ré dos factos respeitantes aos pressupostos da responsabilidade civil, com excepção daqueles que se referem à quantificação dos danos. Em todo o caso, trata-se de um expediente que apenas se torna necessário, porque a Relação esteve longe de ser feliz na decisão que proferiu.

Convém ainda referir que o recurso principal da Ré e o recurso subordinado da Autora se referem exclusivamente a questões relacionadas com a quantificação dos danos. O acórdão da Relação conclui pela anulação do julgamento da matéria de facto realizado em 1.ª instância, algo que não é referido em nenhum dos recursos interpostos por ambas as partes. Isto significa que as partes foram verdadeiramente surpreendidas (e talvez não só em termos jurídicos) com uma decisão com que não podiam contar. Como não consta do acórdão que as partes tenham sido previamente ouvidas sobre a referida nulidade, o acórdão da Relação constitui uma decisão-surpresa e, consequentemente, é nulo por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), e 666.º, n.º 1, CPC).

MTS