Convite ao aperfeiçoamento;
omissão; consequências*
omissão; consequências*
I. O sumário de RG 15/2/2024 (6563/21.0T8GMR.G1) é o seguinte:
1 – A alegação conclusiva de facto essencial deve suscitar um convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, nos termos do dever de gestão processual que se impõe ao Juiz, definido no art.º 590.º do C. P. Civil.
1 – A alegação conclusiva de facto essencial deve suscitar um convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, nos termos do dever de gestão processual que se impõe ao Juiz, definido no art.º 590.º do C. P. Civil.
2 – Não tendo existido tal convite, não existe alegação de facto que o Tribunal possa considerar provada ou não provada.
3 – Tal não pode implicar, contudo, a improcedência da ação e, quando assim tenha sido decidido, impõe-se anular a decisão proferida para que seja efetuado convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, circunscrevendo-se tal anulação à questão relativa à matéria de facto não alegada e à sua posterior subjunção [sic] jurídica.
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"A improcedência da ação decorreu do entendimento da Mm.ª Juiz a quo expresso nos seguintes termos:
"A improcedência da ação decorreu do entendimento da Mm.ª Juiz a quo expresso nos seguintes termos:
“(...), a afirmação da existência do direito de regresso da A. depende não apenas da responsabilização do R. pelo sinistro ocorrido mas igualmente de uma condição adicional: a de o condutor tripular a viatura com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.
O art. 81.º/1 CEst prescreve que “É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas.”, considerando-se sob influência de álcool “o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico.” (art. 81.º/2 CEst).
Provado ficou que o R. tripulava o QR com uma TAS de 0,294 g/l, pelo que, e aparentemente, não seria de considerar como estando a conduzir sob influência de álcool.
Porém, o art. 81.º/3 CEst preceitua que “Considera-se sob influência de álcool o condutor em regime probatório e o condutor de veículo de socorro ou de serviço urgente, de transporte coletivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxi, de TVDE, de automóvel pesado de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,2 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico.”
Não alega a A. factos concretos que permitam concluir pela aplicabilidade, ao R., do regime mais restritivo previsto no art. 81.º/3 CEst.
A este respeito, a A. apenas alega que o R. se encontrava “em regime probatório” (cfr. art. 57.º CEst) e nada mais.
O regime probatório encontra-se previsto no art. 122.º CEst. Lê-se nas respetivas disposições que:
“1 - A carta de condução emitida a favor de quem ainda não se encontrava legalmente habilitado a conduzir qualquer categoria de veículos fica sujeita a regime probatório durante os três primeiros anos da sua validade.
2 - Se, no período referido no número anterior, for instaurado contra o titular da carta de condução procedimento do qual possa resultar a condenação pela prática de crime por violação de regras de circulação rodoviária, contra-ordenação muito grave ou segunda contra-ordenação grave, o regime probatório é prorrogado até que a respetiva decisão transite em julgado ou se torne definitiva.
3 - O regime probatório não se aplica às cartas de condução emitidas por troca por documento equivalente que habilite o seu titular a conduzir há mais de três anos, salvo se contra ele pender procedimento nos termos do número anterior.
4 - Os titulares de carta de condução das categorias T, AM e A1 ou B1 ficam sujeitos ao regime probatório quando obtenham habilitação para conduzir outra categoria de veículos, ainda que o título inicial tenha mais de três anos de validade.
5 - O regime probatório cessa uma vez findos os prazos previstos nos n.os 1 ou 2 sem que o titular seja condenado pela prática de crime, contra-ordenação muito grave ou por duas contra-ordenações graves.”
2 - Se, no período referido no número anterior, for instaurado contra o titular da carta de condução procedimento do qual possa resultar a condenação pela prática de crime por violação de regras de circulação rodoviária, contra-ordenação muito grave ou segunda contra-ordenação grave, o regime probatório é prorrogado até que a respetiva decisão transite em julgado ou se torne definitiva.
3 - O regime probatório não se aplica às cartas de condução emitidas por troca por documento equivalente que habilite o seu titular a conduzir há mais de três anos, salvo se contra ele pender procedimento nos termos do número anterior.
4 - Os titulares de carta de condução das categorias T, AM e A1 ou B1 ficam sujeitos ao regime probatório quando obtenham habilitação para conduzir outra categoria de veículos, ainda que o título inicial tenha mais de três anos de validade.
5 - O regime probatório cessa uma vez findos os prazos previstos nos n.os 1 ou 2 sem que o titular seja condenado pela prática de crime, contra-ordenação muito grave ou por duas contra-ordenações graves.”
Resulta, assim, da lei que para que a conduta do R. fosse subsumível à previsão do art. 81.º/3 CEst necessário seria que, cumulativamente: i) o R. não estivesse legalmente habilitado a conduzir à data da emissão da carta de condução de que era titular; ii) a carta de condução de que o R. era titular à data do sinistro tivesse sido emitida há menos de 3 anos; iii) a carta de condução de que o R. era titular à data do sinistro não tivesse sido obtida por troca de documento equivalente que o habilitasse a conduzir há mais de 3 anos.
A A. não alegou quaisquer factos que, a comprovarem-se, demonstrariam o preenchimento dos requisitos enunciados no parágrafo anterior.
Logo, torna-se impossível afirmar que o R., à data de 02.09.2018, estava sujeito ao regime probatório, talqualmente alegado, e como tal impedido de conduzir veículos automóveis com uma TAS igual ou superior a 0,2 g/l.
Consequentemente, apenas poderá ser considerado, para efeitos de aferição da condução, pelo R., de um veículo com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, o comando previsto no art. 81.º/2 CEst.. [...].
O direito que a autora invoca nestes autos decorre da alegação de ter o réu conduzido o veículo seguro com uma taxa de álcool no sangue de 0,294 g/l, encontrando-se, à data do acidente, “em regime probatório”, sendo-lhe imputável a verificação do acidente.
Note-se que a taxa de álcool no sangue que foi alegada apenas se torna relevante se, como alegado, se poder concluir que o réu se encontrava “em regime probatório”, pois que, sem este regime, a taxa de álcool no sangue que releva é apenas a que for igual ou superior a 0,5 g/l – art.º 81.º, n.º2, do C. da Estrada.
Assim, o direito de regresso da autora depende da verificação da infração do art.º 81.º, n.ºs 1 e 3, do Código da Estrada.
As alegações de recurso evidenciam que a autora não compreendeu o que foi escrito na sentença proferida nesta matéria, assistindo razão à Mm.ª Juiz titular do processo quando afirma que a autora não alegou os factos que permitem concluir que o réu se encontrava, à data do acidente, em regime probatório.
A alegação de se encontrar em regime probatório não encerra em si mesmo qualquer conteúdo fáctico.
Mesmo a referência na nota de rodapé do art.º 16.º da petição inicial não integra “articulação de factos por remissão para documento” (na generalidade admitida pela jurisprudência), tratando-se de referência conclusiva aos “três primeiros anos da validade da carta de condução”, quando é certo que do documento referido pela autora consta apenas uma menção igualmente conclusiva de se encontrar o condutor réu “em regime probatório”. [...]
A autora não cumpriu assim o ónus de alegação que se lhe impunha, quanto ao facto essencial que permitiria concluir estar o réu, à data do acidente, “em regime probatório”, revelando-se manifestamente deficiente a petição inicial. O que existe é, apenas, uma alegação conclusiva que pressupõe matéria de facto essencial à procedência da ação.
Assiste, assim, razão, ao Tribunal da 1.ª instância quando referiu inexistir alegação de facto suficiente relativa ao “regime probatório”.
Atento o teor do pedido e causa de pedir, afigura-se, porém, estar em causa uma “causa de pedir complexa”, invocando a autora o direito de regresso contra o réu nos termos da alínea c), do n.º 1 do art.º 27.º do DL n.º 291/2007, de 21/08, com fundamento na infração dos arts.º 18.º, n.º 1 e 81.º, n.ºs 1 e 3, do Código da Estrada, descrevendo os respetivos factos integrativos desse direito, ou seja, o acidente, consequências danosas, o cumprimento pela ré, e a condução do réu sob efeito do álcool, invocando-se uma taxa de alcoolémia de 0,294 g/l.
Dependendo a violação do regime legal aplicável, do facto de que permitiria concluir que condutor réu se encontrava em “regime probatório”, são factos essenciais as circunstâncias factuais que permitem tal conclusão (a data de nascimento do réu, a data de emissão da primeira licença que o habilitou a conduzir, estando ou não em causa a licença que possuía à data do acidente, não estando em causa qualquer troca de carta de condução).
Encontrava-se, assim, por completar a causa de pedir, no que se refere à conclusão alegada pela autora de estar o autor, à data do acidente, em “regime probatório”.
Verifica-se, assim, não um caso de absoluta falta de alegação e concretização dos factos essenciais, mas, apenas (no limite, salienta-se), a alegação conclusiva de parte dos factos essenciais da causa de pedir, pois que a alegação realizada permite ainda definir e identificar a pretensão (como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3ª edição, 2022, pág.656), não se tratando de petição inepta.
Ora, nos termos do n.º 4 do art.º 581º, a causa de pedir consiste no ato ou facto jurídico simples ou complexo, mas sempre concreto donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer.
Relativamente ao ónus de alegação imposto às partes, referem autores referidos e in obra citada, pág.31: “a eventual incompletude no cumprimento desse ónus relativamente a factos complementares ou concretizadores dos inicialmente alegados não tem efeitos preclusivos, já que os factos omitidos podem ainda ser introduzidos nos autos através de uma articulado de aperfeiçoamento (artº 590º,nº4) ou (...)”.
E, como referem, ainda, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª edição, pág.634, com referência ao n.º4 do art.º 590.º: “constitui articulado deficiente aquele que encerra insuficiência ou imprecisão na exposição ou concretização da matéria de facto alegada ( nº4). O preceito reporta-se, fundamentalmente, aos factos principais da causa, isto é, aos que integram a causa de pedir e àqueles em que se baseiam as exceções (artº 5-1), pois só esses são suscetíveis de comprometer o êxito da ação ou da defesa (...) Trata-se, portanto, de completar ou retificar a causa de pedir ou uma exceção, considerando o conjunto dos articulados apresentados pela parte”.
E, mais referindo:
“O aperfeiçoamento é, pois, o remédio para os casos em que os factos alegados pelo autor ou réu (os que integram a causa de pedir e os que fundamentam as exceções) são insuficientes ou não se apresentam suficientemente concretizados”; “O poder do juiz não é, nestes casos, discricionário, mas vinculado”.
Concluindo-se, nos termos expostos, pela aplicabilidade no caso sub judice da previsibilidade do art.º 590.º, n.º 2, alínea b), e n.º4 do C. P. Civil, consequentemente, impondo-se ao Tribunal a prolação de despacho a convidar a parte a sanar o vício existente.
Não pode deixar de referir-se que resulta da contestação do réu que este aceita estar em “regime probatório”, pois que é o próprio que refere que aceita que se encontrava a conduzir com taxa de álcool ligeiramente superior ao permitido (art.º 20.º da contestação), sendo que a taxa de 2,94 g/l só é ligeiramente superior ao permitido, como vimos, se o condutor estiver, precisamente, em “regime probatório”.
Note-se que, nos termos dos arts. 590.º e 6.º do C. P. Civil, ao juiz compete o “dever de gestão processual” do processo, devendo dirigi-lo ativamente e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, impondo-se providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, convidando as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada.
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/12/2018, da Juiz Conselheira Rosa Ribeiro Coelho, proc. 414/07.5TBALR.E1.S1, in www.dgsi.pt, e, com referência ao âmbito de aplicação do art. 590º do CPC, “trata-se, agora, sem dúvida, de um dever que ao juiz se impõe de, havendo para tanto fundamento, em sede de despacho pré-saneador, convidar as partes a suprir insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto, de modo a impedir que estas irregularidades venham a ser a causa da improcedência da pretensão formulada pelo autor ou das exceções que o réu lhe tenha oposto”.
Impunha-se então, como agora, a prolação, pelo Tribunal de 1.ª Instância, de despacho a convidar a autora, nos termos e para os efeitos do art.º 590.º, nº2, alínea b), e n.º4 do C. P. Civil, com vista ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, a fim de articular os factos respeitantes à parte da causa de pedir relativa ao invocado “regime probatório” do réu na qualidade de condutor no acidente dos autos, em prazo a fixar, anulando-se a sentença recorrida.
Como decorre do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15/12/2016, do Juiz Desembargador Ataíde das Neves proc. 4158/08.2TBMTS.P1, in www.dgsi.pt, “neste caso, a "omissão do ato" em que consiste a nulidade, é anterior à prolação do despacho saneador, mas não implicará a mesma a anulação do mesmo nem de todos os atos posteriores, mas apenas da decisão de direito (e não de facto) proferida, tal como estatui o nº 2 do art. 195º do CPC, segundo o qual “quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes”. Assim, como o julgamento feito quanto aos factos apurados não contende com a omissão cometida, implicando esta apenas com a parte da sentença que aplicou o direito aos factos, apenas esta será anulada”.
Tal significa, na situação dos autos, que a anulação da sentença não implica qualquer anulação dos factos provados, com as alterações introduzidas neste Acórdão.
Assim, mantendo-se os factos provados, nesta redação, virá a ser realizado novo julgamento com vista ao apuramento dos factos que permitam concluir que, à data do acidente, o réu estava em “regime probatório”.
Anulando-se a sentença recorrida apenas na parte jurídica (de aplicação de direito aos factos), mantém-se o julgamento de facto já realizado, devendo o tribunal proferir despacho de convite da autora para alegar os factos que, nos termos definidos na lei e nesta decisão, permitam concluir que o réu se encontrava, à data do acidente, em “regime probatório”, sendo que os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não serão prejudicados pela decisão do recurso e anulação agora decididos – art.º 635.º, n.º 5, do C. P. Civil."
*3. [Comentário] Deixando de lado alguns pormenores, não se discorda da decisão tomada no acórdão, mas não se percebe com que fundamento a RG aplica ao caso em análise o disposto no art. 195.º, n.º 2, CPC, sendo certo que as nulidades inominadas não são de conhecimento oficioso (art. 196.º CPC) e não se consegue descobrir onde é que a autora recorrente alegou essa nulidade processual.
Acresce que a aplicação do regime das nulidades processuais inominadas ao caso em apreciação é particularmente duvidosa, dado que a alegada nulidade só ocorre em função do que se decidiu na sentença recorrida. Antes de se conhecer o conteúdo desta sentença não há nenhuma nulidade, pelo que, a haver uma nulidade processual, seria uma nulidade que é "descoberta" a posteriori.
Acresce que a aplicação do regime das nulidades processuais inominadas ao caso em apreciação é particularmente duvidosa, dado que a alegada nulidade só ocorre em função do que se decidiu na sentença recorrida. Antes de se conhecer o conteúdo desta sentença não há nenhuma nulidade, pelo que, a haver uma nulidade processual, seria uma nulidade que é "descoberta" a posteriori.
É por isso que o mais lógico é entender -- como também se tem vindo a defender na jurisprudência -- que o vício é próprio da sentença e que esta é nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC).
MTS
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