I. A admissão do recurso com o fundamento específico da ofensa do caso julgado tem consequências no plano do objecto do recurso: a revista restringe-se à apreciação da ofensa de caso julgado, não sendo conhecidas outras questões eventualmente suscitadas, exceptuadas aquelas que sejam de conhecimento oficioso.
"OS FACTOS
São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:
1. Os AA intentaram a presente acção em 22.11.2020, demandando os RR. I...., S.A., e H..., S.A.R.L.
2. Requereram a desanexação do prédio dos autos com reconhecimento da sua propriedade livre de ónus e encargos.
3. Demandaram a Ré H..., S.A.R.L., na qualidade de credora hipotecária do prédio discutido nos autos (artigo 9.º da petição).
4. Juntaram documentos – certidão da CRP, na qual consta averbada - AP. 1146 de 2019/12/11 11:48:13 UTC – Transmissão de Crédito da apresent. 12 de 2006/01/05 - Hipoteca Voluntária (…) CAUSA: Cessão de Crédito, Anotação - OF. de 2017/01/31 12:30:08 UTC – SUJEITO(S) ATIVO(S): ** LX INVESTMENT PARTNERS III SARL – SUJEITO(S) PASSIVO(S): ** H..., S.A.R.L..
5. A Ré H..., S.A.R.L., por contestação apresentada extemporaneamente, deduziu a sua ilegitimidade passiva em face da cessão do crédito hipotecário à LX INVESTMENT PARTNERS III S.A.R.L, registada na CRP a 11.12.2019.
6. A contestação foi mandada desentranhar.
7. A acção não foi contestada pelos demais RR, tendo sido, em 2-03-2022, proferido despacho a considerar confessados os factos articulados na petição inicial, nos termos do artigo 567.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e a dar cumprimento ao n.º 2 do citado normativo.
8. Em 28-10-2021, foi deduzido incidente de habilitação de cessionário da LX INVESTMENT PARTNERS III S.À.R.L,
9. Em 27-04-2022, foi proferida sentença, que transitou em julgado, a declarar habilitada a ocupar a posição processual até aqui ocupada pela Ré, H..., S.A.R.L., e, nesta qualidade, a LX INVESTMENT PARTNERS III, S.A.R.L.
10. Em 4-12.2022, foi proferida a sentença de que se recorre.
11. Nos autos não foi proferido despacho saneador.
O DIREITO
Considerações prévias – Dos termos em que o presente recurso é admitido e da (consequente) delimitação do seu objecto
Como decorre do antecedente Relatório, impugna-se no presente recurso um Acórdão do Tribunal da Relação do Porto em que, na sequências de outras decisões, se atribuiu prazo para contestar à adquirente. O Acórdão recorrido aprecia, pois, visivelmente, uma decisão interlocutória (i.e., não final nos termos do artigo 671.º, n.º 1, do CPC) que recai unicamente sobre a relação processual ou versa exclusivamente sobre matéria adjectiva [...]
Ora, o artigo 671.º, n.º 2, do CPC dispõe:
“Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:
a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível;
b) Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”.
Nas conclusões de recurso, são invocadas tanto a ofensa de caso julgado pelo Acórdão recorrido como a sua contradição com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães (Proc. 7153/15.1T8GMR-B.G1) (cfr., entre outras, as conclusões 2, 3 e 4). [...]
Já relativamente ao segundo fundamento – a ofensa do caso julgado, prevista na al. a) da mesma norma –, a conclusão deverá ser diferente.
A recorrente afirma que o Acórdão recorrido violou o caso julgado formado pela decisão que julgou extemporânea a apresentação da contestação pela primitiva ré proferida em 16.12.2021 (a que se referem, entre outras, as conclusões 3 e 9), pela decisão de indeferimento do requerimento de intervenção da adquirente proferida em 2.03.2022 (a que se referem, entre outras, as conclusões 3 e 13) e pela sentença de habilitação da adquirente para ocupar a posição processual da primitiva ré proferida por apenso aos presentes autos em 27.04.2022 (a que se referem, entre outras, as conclusões 3 e 12).
Estando identificados os casos julgados que a recorrente entende terem sido ofendidos e correspondendo-lhes, de facto, decisões com trânsito em julgado susceptíveis de ser ofendidas [...], admite-se o recurso ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, al. a), ex vi do artigo 672.º, n.º 1, al. a), ambos do CPC.
Mas a admissão do recurso com este fundamento específico de recorribilidade tem consequências no plano do objecto do recurso: só será possível conhecer dos aspectos do recurso (questão e argumentos) que se prendam ou contendam com a alegada ofensa do caso julgado. Por outras palavras: a revista restringe-se à apreciação da ofensa de caso julgado, não sendo conhecidas outras questões eventualmente suscitadas, exceptuadas aquelas que sejam de conhecimento oficioso.
É, de facto, consensual que “nestas situações, a admissibilidade excepcional do recurso não abarca todas as questões que incidam sobre a exceção dilatória de caso julgado, mas apenas aquelas de que alegadamente resulte a 'ofensa' de caso julgado já constituída" [Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., p. 54. Cfr. ainda a doutrina e a jurisprudência citada na p. 55 (nota 71).]
Concretizando, a questão a apreciar neste recurso é, exclusivamente, a de saber se, ao decidir, na sequência de outras decisões, que devia ser dado à habilitada prazo para contestar, o Tribunal a quo incorreu em ofensa do caso julgado, nada mais – nenhuma outra questão ou argumento – se podendo apreciar. [...]
Do objecto do recurso – Da ofensa de caso julgado
[...] O caso julgado formal – que é o que está em causa nos presentes autos – tem força obrigatória apenas dentro do processo (cfr. artigo 620.º, n.º 1, do CPC), obstando a que o juiz possa, na mesma acção, alterar a decisão anteriormente proferida5.
Já se viu que a recorrente indica três decisões cuja força de caso julgado terá sido, segundo ela, violada, quais sejam:
1.ª) a decisão (transitada em julgado) que julgou extemporânea a apresentação da contestação pela primitiva ré (a que se referem, entre outras, as conclusões 3 e 9);
2.ª) a decisão (transitada em julgado) de indeferimento do requerimento de intervenção [espontânea] da adquirente (a que se referem, entre outras, as conclusões 3 e 13);
3.ª) a sentença (transitada em julgado) de habilitação da adquirente (a que se referem, entre outras, as conclusões 3 e 12).
É razoavelmente evidente que o Acórdão recorrido não comporta violação do caso julgado formado por nenhuma das decisões mencionada, não se decidindo em nenhuma das decisões mencionadas a questão que veio posteriormente a ser apreciada e decidida no Acórdão recorrido.
Recorde-se que, como se viu atrás, a questão apreciada no Acórdão recorrido respeitava a saber se, em face das circunstâncias (ilegitimidade da primitiva ré e respectiva sanação através da substituição processual pela adquirente), a sentença proferida nos autos produzia efeitos em relação à adquirente ou não, devendo ser dado, neste último caso, prazo para contestar à adquirente. E a decisão foi “Declarada sanada a ilegitimidade singular da ré H..., S.A.R.L., com a sua substituição pela recorrente, LX Investment Partner III SARL, anulado o despacho que foi proferido nos termos do artigo 567º do Código de Processo Civil, e termos posteriores, incluída a sentença, devendo ser proferido despacho a conceder ao recorrente prazo para contestar nos termos legais”.
Ora, a questão apreciada e decidida na 1.ª decisão era a de saber se a contestação apresentada pela primitiva ré havia dado ou não entrada dentro do prazo legalmente fixado e devia ser admitida ou considerada extemporânea (decidiu-se que “não se admite a contestação e os meios de prova ora apresentada, por extemporâneos, pelo que se considera a ação não contestada”); a questão apreciada e decidida na 3.ª decisão era a de saber se deveria admitir-se a intervenção da adquirente (decidiu-se que “não se admite a dedução do incidente de intervenção provocada ou de qualquer outro incidente de intervenção legalmente previsto”); por fim, a questão apreciada e decidida na 3.ª decisão era a de saber se a devia ou não haver lugar à habilitação da adquirente (decidiu-se “julga[r] habilitada a LX INVESTMENT PARTNERS III, S.A.R.L., devendo esta passar a ocupar a posição processual até aqui ocupada pela Ré, H..., S.A.R.L., e nesta qualidade”).
Por outras palavras e sinteticamente: para estarmos perante ofensa de caso julgado formal, a decisão do Tribunal recorrido teria de ter apreciado e decidido uma questão definitivamente decidida antes no processo; ora, isto, manifestamente, não acontece.
*3. [Comentário] A Relação recorrida fez uso dos seus poderes de gestão processual e de adequação formal (art. 6.º, n.º 1, e 547.º CPC) e considerou que a habilitação da nova ré que se verificou na 1.ª instância sanou a situação de ilegitimidade da primeira ré que foi demandada na acção. Nada se tem a opor a esta opção da Relação, sendo certo que, como, aliás, se refere no acórdão, a ilegitimidade singular não é susceptível de sanação (coisa de que a 1.ª instância parece nunca se ter apercebido). Quer dizer: a Relação aproveitou a habilitação da nova ré para considerar que, em termos práticos, a ilegitimidade singular da primeira demandada se encontrava sanada.
A Relação também foi coerente com a sanação da ilegitimidade singular ocorrida na 1.ª instância ao considerar que a nova ré tinha a faculdade de apresentar a contestação. Não faria sentido que se promovesse a intervenção de alguém que devia ter sido demandado ab initio na acção e se lhe coarctasse a possibilidade de se defender nessa mesma acção (neste sentido, não se pode acompanhar o voto de vencida declarado no acórdão do STJ).
Nesta circunstância, realmente são se antevê em que é que o acórdão recorrido ofendeu qualquer caso julgado formal.
MTS