17/10/2024

Jurisprudência 2024 (28)

Acção de divórcio; 
pedido reconvencional*

 
1. O sumário de RL 8/2/2024 (1238/21.2T8CSC-B.L1-6) é o seguinte:

[...] É de admitir a reconvenção em acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge porque, apesar de o efeito imediato do divórcio, pedido pelo autor, e pedido pela ré/reconvinte ser o mesmo, a dissolução do casamento, a verdade é que o momento da produção de efeitos patrimoniais do divórcio, na acção e na reconvenção, são diferentes: na acção, vem pedida a retroação dos efeitos à data da separação definitiva, alegadamente ocorrida em 13/03/2018; e, na reconvenção, nada é dito, inculcando a produção dos efeitos patrimoniais do divórcio à data de dedução da reconvenção, ou seja, 22/03/2022.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"3.3- A Questão Enunciada: se há fundamento para revogar a decisão que não admitiu a reconvenção.

Segundo a ré/reconvinte/apelante, não é irrelevante que o divórcio seja decretado com base nos factos e enquadramento jurídico alegados pelo autor ou venha a ser decretado com base nos factos e enquadramento jurídico invocados pela reconvinte; e que a reconvenção deduzida não é destituída de efeito prático.

A 1ª instância entendeu não admitir a reconvenção que “Trata-se de uma mera situação de facto a apurar e relativamente à qual se possa concluir que o vínculo matrimonial se encontra irreversivelmente comprometido. Consequentemente, concluindo-se pela verificação de tal ruptura definitiva, sendo como tal o divórcio decretado, nenhuma consequência advém, para qualquer das partes, de tal ter assentado em factos praticados por (ou imputáveis a) um ou outro dos cônjuges.
 
Em face de tudo o exposto, um pedido – como o formulado pela R., em contestação – de que o divórcio seja decretado com base em certos factos e não noutros, revela-se destituído de qualquer efeito prático ou jurídico, carecendo, por isso, de utilidade, e mesmo de autonomia, relativamente ao pedido formulado na petição inicial.”

Será assim?
 
Vejamos.
 
O art.º 266º do CPC, com epígrafe “Admissibilidade da reconvenção”, estabelece, nos seus nºs 1, 2 e 3 (no que ao caso interessa) que:
 
1 - O réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor.
2 - A reconvenção é admissível nos seguintes casos:
a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;
b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;
c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;
d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.
3 - Não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações.
4- (…);
5- (…);
6- (…).”
 
O nº 1 do preceito contém uma definição algo simplificada de reconvenção. Pode dizer-se que a reconvenção consiste num pedido do réu formulado contra o autor, mas distinto dos normais pedidos de defesa que são deduzidos pelo réu (absolvição da instância, absolvição do pedido). A reconvenção é uma contra-acção e o seu objecto poderia constituir objecto de uma acção autónoma e tem os mesmos elementos de qualquer objecto do processo: um pedido e uma causa de pedir. (Cf. Teixeira de Sousa, CPC online, Livro II, pág. 144, no blog do IPPC, consultado no dia 30/11/2023).
 
Por outro lado, a dedução da reconvenção produz os mesmos efeitos da propositura da acção (art.º 259º nº 1). Ou seja, a notificação da apresentação da contestação na qual haja sido deduzida reconvenção (artº 583º nº 1) equivale, para efeitos do disposto no art.º 259º nº 2 à citação do réu.
 
Temos assim que a reconvenção é um pedido no sentido restrito da palavra, dado que ele conjuga o elemento material com o elemento processual; é um pedido autónomo, no sentido de diferente do sentido normal da absolvição do pedido e, portanto, não necessariamente dependente da improcedência da acção; é um pedido autónomo formulado, normalmente, contra o autor o que implica que o réu (reconvinte) é o autor do pedido reconvencional e que o autor (reconvindo) é o réu deste pedido. (Cf. Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, 2022, pág. 449).

No caso em apreço, a ré deduziu pedido reconvencional contra o autor, visando obter o decretamento do divórcio, não com os mesmos fundamentos alegados pelo autor, mas com outros fundamentos e, até, com efeitos (patrimoniais) diferentes: (i) o autor pretendia, rectius, pedia o decretamento do divórcio baseando-se na separação de facto por mais de um ano (artº 1781º nº 1 al. a)) e que os efeitos patrimoniais do divórcio retroagissem à data da separação em Março de 2018; (ii) a ré/reconvinte pede se decrete o divórcio com fundamento em ruptura da vida em comum, mas nada refere quanto aos efeitos patrimoniais, o que inculca a aplicação do artº 1789º nº 1, 2ª parte, ou seja, efeitos à data da apresentação da reconvenção.
 
Nos termos do artº 266º nº 2, al, d), supra citado, a reconvenção é admissível “Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.”
 
Trata-se de situações em que o elemento de conexão entre o pedido do autor e o pedido reconvencional visam a identidade de efeitos.
 
Nestes casos, a reconvenção é admissível quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter. O efeito jurídico é o mesmo, mas não é a mesma a decisão do tribunal: se o pedido reconvencional for julgado procedente, o tribunal decreta o efeito jurídico a favor do réu reconvinte.

Na doutrina, podemos encontrar autores que admitem a possibilidade de dedução de reconvenção em acção de divórcio.
 
Assim, sem ser exaustivo, podemos ver Castro Mendes/Teixeira de Sousa (Manual…, cit., I, pág. 453) dão como exemplo de admissibilidade de reconvenção os casos de acção de divórcio; o réu pode pedir a sua absolvição (do pedido) de divórcio e, em reconvenção pedir ele o divórcio com fundamento diverso.
 
Guilherme de Oliveira (Manual de Direito da Família, 2ª edição, 2022, pág. 313) menciona, igualmente, a possibilidade de o réu, em acção de divórcio, poder deduzir pedido reconvencional de divórcio.
 
Geraldes/Pimenta/Sousa (CPC anotado, vol. II, 2020, pág. 375) referem expressamente “Na contestação, o réu, além da defesa por excepção ou por impugnação, pode pedir pedido reconvencional como corolário da alegação de factos que, na sua perspectiva, também integrem algum dos fundamentos do divórcio sem consentimento (artº 266º nº 2, al. d).”
 
António José Fialho (O divórcio por mútuo consentimento – o difícil percurso pelos tribunais, CEJ, E-book O Divórcio, Julho de 2014, pág. 65) refere:
 
Não obstante, existem duas situações em que vislumbramos a importância de um pedido reconvencional: a primeira, se o réu tiver interesse na fixação da data da separação de facto para efeitos patrimoniais e esse pedido não tenha sido formulado pelo autor (artigo
1789.º, n.º 2 do Código Civil) e a segunda, se o réu tiver interesse na obtenção de uma decisão que constitua caso julgado relativamente a uma futura ação de responsabilidade civil por facto ilícito contra o autor (artigos 1792.º, n.º 1 do Código Civil e 619.º, 621.º e 622.º, todos do Código de Processo Civil).” (http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/O_divorcio.pdf)

A jurisprudência tem sido igualmente favorável a esta possibilidade de admissão de pedido reconvencional em acção de divórcio.
 
Assim, sem ser exaustivo, por exemplo:
 
- TRL de 14/01/2021 (Jorge Leal, Proc. 7101):
 
II. A procedência da ação de divórcio sem consentimento, assente na invocação da separação de facto dos cônjuges, não prejudica a apreciação da reconvenção, em que igualmente se peticiona o divórcio, mas com fundamento em outros factos, integradores da alínea d) do art.º 1781.º do CC.”
 
- TRL de 23/02/2021 (Diogo Ravara, Proc. 1942):
 
I - Na ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge em que a causa de pedir é a separação de facto por um ano consecutivo (art.º 1781º, nº 1 do Código Civil), pode a/o ré/u deduzir reconvenção, invocando o mesmo fundamento de divórcio, mas alegando que a separação teve início em data diversa da alegada pelo/a autor/a.
 
- TRG de 08/10/2020 (Fernanda Proença, Proc. 1478):
 
“I – Em princípio, em acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, não é admissível a dedução de reconvenção por parte do réu (pedindo que se decrete o divórcio), quando este manifesta igualmente a vontade de o obter.
II – Tal já será admissível se o réu tiver interesse na obtenção de uma decisão que constitua caso julgado relativamente a uma futura acção de responsabilidade civil por facto ilícito contra o autor, para o que terá de invocar factualidade que possa ser fundamento de uma acção de responsabilidade civil a intentar nos tribunais comuns.
III
Em acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, o réu pode na reconvenção, deduzir pedido de alimentos contra o autor, bem como a fixação de um regime quanto às matérias referidas no n.º 7 do artigo 931.º do CPC.”

Transpondo a posição da doutrina e da jurisprudência referidas para o caso dos autos, verifica-se que é de admitir a reconvenção porque, apesar de o efeito imediato do divórcio, pedido pelo autor, e pedido pela ré/reconvinte ser o mesmo, a dissolução do casamento, a verdade é que o momento da produção de efeitos do divórcio, na acção e na reconvenção, são diferentes: na acção, vem pedida a retroação dos efeitos à data da separação, alegadamente em 13/03/2018; na reconvenção, nada é dito, inculcando a produção dos efeitos do divórcio à data de dedução da reconvenção, ou seja, 22/03/2022.
 
Por aqui se afasta o argumento invocado pela 1ª instância para rejeitar a reconvenção: “Em face de tudo o exposto, um pedido – como o formulado pela R., em contestação – de que o divórcio seja decretado com base em certos factos e não noutros, revela-se destituído de qualquer efeito prático ou jurídico, carecendo, por isso, de utilidade, e mesmo de autonomia, relativamente ao pedido formulado na petição inicial.”
 
A esta luz, impõe-se que a decisão recorrida seja revogada, devendo tal decisão substituída por outra, que admita a reconvenção, com as necessárias consequências.
 

*3. [Comentário] A RL decidiu bem, mas, salva a devida consideração, não considerou o que devia ter considerado.

Apesar de nem sempre se ter presente, importa não esquecer que, quando a reconvenção pretende obter o mesmo efeito jurídico que o autor pretende conseguir (art. 266.º, n.º 2, al. d), CPC), a reconvenção só é apreciada no caso de o pedido do autor não ser considerado procedente. A bem dizer, essa reconvenção é sempre, pela sua natureza, uma reconvenção subsidiária. P. ex.: se, numa acção de reivindicação, o réu deduz um pedido reconvencional em que pede o reconhecimento da sua propriedade sobre o mesmo bem e a restituição deste bem, este pedido reconvencional só vai ser apreciado se o pedido de reivindicação formulado pelo autor for julgado improcedente.

Isto é: o tribunal não coloca em comparação (ou em "competição") o pedido do autor e o pedido reconvencional e não aprecia em simultâneo ambos os pedidos antes de considerar procedente apenas um deles. O que o tribunal vai fazer é, primeiro, apreciar o pedido (de reivindicação) do autor e, para o caso de este ser considerado improcedente, então apreciar o pedido (de reivindicação) do réu. O mesmo vale para a hipótese de, numa acção de divórcio, ser formulado um pedido reconvencional de divórcio.

Nesta óptica, não tem nenhuma relevância se os efeitos patrimoniais do divórcio requerido pelo réu são iguais ou diferentes dos efeitos patrimoniais requeridos pelo autor. Lembre-se o básico: o pedido de divórcio do réu só será apreciado se o pedido de divórcio do autor for julgado improcedente; logo, ainda que os efeitos patrimoniais sejam os mesmos, nada obsta à dedução do pedido reconvencional.

Mais até: não tem nenhuma relevância que a causa de pedir do pedido reconvencional coincida com a causa de pedir alegada pelo autor. Se, p. ex., o autor alega a ruptura da vida conjugal como causa de pedir (art. 1781.º, al. d), CC), nada impede que o réu invoque essa mesma causa de pedir (ou esse mesmo "facto conclusivo") para fundamentar o seu pedido de divórcio, dado que os factos (probatórios) alegados pelo autor dos quais se pode inferir essa ruptura não têm de concidir com os factos (probatórios) invocados pelo réu.

MTS