Providências cautelares;
periculum in mora*
1. O sumário de RC 6/2/2024 (1715/23.0T8CTB.C1) o seguinte:
I – O esbulho – enquanto pressuposto necessário à procedência do procedimento cautelar de restituição provisória de posse – pressupõe a existência de um acto que prive o possuidor da posse que detinha, ou seja, um acto que lhe retira o poder de facto (de retenção/fruição) que detinha sobre a coisa e a possibilidade de o exercer.
II – A mera colocação de umas fitas no local em que é exercida uma servidão de passagem que não impediu a continuação do uso da servidão pelo titular do direito, não constitui acto de esbulho, traduzindo apenas um acto de turbação ou perturbação da posse.
III – O procedimento cautelar de restituição provisória da posse apenas se destina a reagir contra actos de esbulho (violento) que já tenham ocorrido, não sendo adequado para prevenir actos de esbulho perante receios ou ameaças justificadas de que eles venham a ser praticados.
IV – O fundado receio de que venha a ocorrer um acto de esbulho pode justificar o decretamento de uma providência cautelar, ao abrigo do disposto no art.º 362.º, desde que a lesão do direito – que venha a ser concretizada com esse esbulho – possa ser qualificada como grave e dificilmente reparável.
V – Para os efeitos referidos, a lesão será grave quando ela se repercute, de forma negativa, na esfera pessoal e/ou patrimonial do titular do direito, de forma assinável e relevante.
VI – A privação de um acesso/passagem para prédios rústicos constituídos por mato em relação aos quais não se provou a sua utilização para qualquer fim especifico, sem a prova de qualquer outro facto que evidencie que a privação desse acesso e do uso dos prédios possa ter alguma repercussão concreta e relevante na esfera pessoal e/ou patrimonial do titular do direito, não constitui lesão grave que justifique a concessão de uma providência cautelar não especificada.
I – O esbulho – enquanto pressuposto necessário à procedência do procedimento cautelar de restituição provisória de posse – pressupõe a existência de um acto que prive o possuidor da posse que detinha, ou seja, um acto que lhe retira o poder de facto (de retenção/fruição) que detinha sobre a coisa e a possibilidade de o exercer.
II – A mera colocação de umas fitas no local em que é exercida uma servidão de passagem que não impediu a continuação do uso da servidão pelo titular do direito, não constitui acto de esbulho, traduzindo apenas um acto de turbação ou perturbação da posse.
III – O procedimento cautelar de restituição provisória da posse apenas se destina a reagir contra actos de esbulho (violento) que já tenham ocorrido, não sendo adequado para prevenir actos de esbulho perante receios ou ameaças justificadas de que eles venham a ser praticados.
IV – O fundado receio de que venha a ocorrer um acto de esbulho pode justificar o decretamento de uma providência cautelar, ao abrigo do disposto no art.º 362.º, desde que a lesão do direito – que venha a ser concretizada com esse esbulho – possa ser qualificada como grave e dificilmente reparável.
V – Para os efeitos referidos, a lesão será grave quando ela se repercute, de forma negativa, na esfera pessoal e/ou patrimonial do titular do direito, de forma assinável e relevante.
VI – A privação de um acesso/passagem para prédios rústicos constituídos por mato em relação aos quais não se provou a sua utilização para qualquer fim especifico, sem a prova de qualquer outro facto que evidencie que a privação desse acesso e do uso dos prédios possa ter alguma repercussão concreta e relevante na esfera pessoal e/ou patrimonial do titular do direito, não constitui lesão grave que justifique a concessão de uma providência cautelar não especificada.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Dispõe o art.º 379.º do CPC que, ao possuidor que seja esbulhado ou perturbado no exercício do seu direito, sem que ocorram as circunstâncias previstas no artigo 377.º, é facultado, nos termos gerais, o procedimento cautelar comum. Significa isso, portanto, que o possuidor que seja esbulhado sem violência ou que não chegue a ser esbulhado, sendo apenas perturbado no exercício da sua posse, pode recorrer ao procedimento cautelar comum, caso se verifiquem os respectivos pressupostos, requerendo as providências necessárias para assegurar a efectividade e o exercício da sua posse. E foi isso precisamente que os Requerentes também solicitaram, pedindo, para o caso de improcedência da restituição provisória de posse, que o procedimento fosse convolado em procedimento cautelar comum para o efeito de ser decretada uma providência cautelar não especificada.
Resta, portanto, saber se estão reunidos os requisitos necessários para que seja decretada tal providência.
Dispõe o n.º 1 do art.º 362.º que “Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”, dispondo o art.º 368.º que a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão, não obstante possa ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.
A providência cautelar não especificada pressupõe, portanto:
• A probabilidade séria da existência de um determinado direito;
• O fundado receio de que outrem possa causar lesão grave e dificilmente reparável desse direito.
A decisão recorrida reconheceu como indiciariamente demonstrado que os Requerentes gozam de um direito de servidão de passagem sobre a parcela de terreno em questão, importando, por isso, concluir pela verificação do primeiro requisito (a probabilidade séria da existência de um determinado direito).
Também não temos dúvidas em afirmar que esse direito – e a posse correspondente – está a ser perturbado e ameaçado. Está a ser perturbado pela colocação das fitas a que alude o ponto 10 da matéria de facto (na medida em que indiciam a existência de oposição ao exercício da passagem no local) e está a ser ameaçado por força da iminência de construção de um muro no local (resultando provado que os Requeridos têm a intenção de construir um muro no local onde se encontram as fitas, circunstância que é confirmada pelas fotos que agora foram juntas aos autos) que, a ser efectivamente construído, corresponderá a um esbulho da posse dos Requerentes e a uma efectiva lesão do seu direito.
Existe, portanto, um fundado receio de que, perante a previsível demora da acção onde os Requerentes pudessem obter a tutela definitiva do seu direito, os Requeridos possam, entretanto, causar lesão ao direito dos Requerentes, esbulhando-os da posse respectiva que têm vindo a exercer.
Isso não basta, porém, para que seja decretada uma providência cautelar; para que tal seja possível é ainda necessário que essa lesão (que se receia poder vir a acontecer) seja uma lesão grave e dificilmente reparável.
E foi isso que a decisão recorrida entendeu não acontecer. Segundo a decisão recorrida, a lesão do direito que venha a ser concretizada não será uma lesão grave e dificilmente reparável; ela traduzir-se-ia apenas no dano de privação do uso/gozo de parte dos seus prédios, sem que resulte da alegação dos Requerentes qualquer outro dano efectivo que não possa ser ressarcido mediante indemnização a atribuir na acção definitiva.
Discordando da decisão, os Apelantes pouco dizem, de concreto, para contrariar a argumentação da decisão, limitando-se a sustentar que a impossibilidade de usar a passagem (que irá resultar da construção do muro) corresponde a lesão grave e dificilmente reparável para efeitos de decretamento de providência cautelar. [...]
Não temos grandes dúvidas em afirmar que a lesão aqui em causa (lesão que se perspectiva poder vir a acontecer e que se pretende evitar com esta providência) será irreparável ou dificilmente reparável, na medida em que ela implicará que os Requerentes, enquanto não obtiverem a tutela do seu direito, fiquem impossibilitados de usar a servidão e aceder aos seus prédios (com efeito, resultando da matéria de facto que, para aceder aos seus prédios, os Requerentes têm que passar por cima ou por baixo das fitas, é certo que, caso venha a ser construído um muro nesse local, os Requerentes não poderão passar). E nenhuma decisão posterior poderá alterar essa situação; ainda que lhes venha a ser reconhecido o direito, já não será possível eliminar o facto de terem ficado privados de aceder aos seus prédios durante esse período. Os Requerentes poderão ser compensados dessa privação, mas já não será possível tornar efectivo o direito que lhes assistia e que não puderam exercer.
Mas será que essa lesão também pode ser qualificada como lesão grave?
Uma lesão grave será, por natureza, uma lesão importante, intensa e relevante. [...]
Segundo M. Teixeira de Sousa [Cfr. Blog do IPPC, CPC online, anotação ao art.º 362.º.], “As providências cautelares não visam evitar irressarcibilidades futuras, mas antes obviar a danos presentes que resultam da demora na obtenção da tutela definitiva. (...) o “fundado receio” de “lesão grave e dificilmente reparável” é o justificado temor do requerente de que, sem uma tutela imediata do direito acautelado, sofrerá prejuízos significativos e dificilmente remediáveis”.
Assim, sem deixar de ponderar a concreta extensão e dimensão do conteúdo do direito que seja afectado pela lesão (será mais grave a lesão que impossibilite, em absoluto, o exercício do direito do que a lesão que apenas condicione ou restrinja o seu exercício em maior ou menor grau), a lesão do direito (que se receia) será grave, para efeitos de decretamento de uma providência cautelar, quando ela se repercute, de forma negativa, na esfera pessoal e/ou patrimonial do titular do direito, de forma assinável e relevante.
Ora, sendo assim, não poderemos concluir, à luz da matéria de facto que se julgou provada, que a lesão em causa (ou seja, a lesão que se perspectiva poder vir a acontecer com a construção do muro e que se pretende evitar com esta providência) seja uma lesão grave que, nessa medida, possa justificar a providência solicitada.
Com efeito, ainda que – como se referiu – a construção do muro seja um acto lesivo do direito dos Requerentes que impede, em absoluto, o seu exercício, privando os Requerentes da possibilidade de aceder a uma parte dos seus prédios, a verdade é que nada se provou que aponte para o facto de a privação de exercício pleno desses direitos (o direito de servidão de passagem e, por consequência, o direito de propriedade dos prédios em favor dos quais a servidão está constituída) ter alguma repercussão relevante na esfera pessoal e/ou patrimonial dos Requerentes, em termos de poder afirmar-se que a situação reclama uma tutela (provisória) imediata e não pode aguardar pela tutela definitiva do direito.
Ainda que tenham alegado, no requerimento inicial, uma série de factos em função dos quais seria possível concluir que a impossibilidade de uso de servidão determinaria danos relevantes e significativos (alegavam: que a servidão também era usada para aceder, não só aos terrenos, mas também às “suas casas”; que era também por aí que passariam os bombeiros caso fosse necessário socorrer alguns dos proprietários que residem no local, não existindo outra alternativa viável por onde consigam entrar; que era também por esse acessos que os funcionários dos CTT entregavam a correspondência aos Requerentes e que os funcionários dos serviços da água e da EDP levavam a efeito a contagem de contadores de água e de luz; que, com a privação do acesso, tudo isso era impedido, além de ficarem impedidos de lavrar e cultivar as terras e cuidar dos animais que têm nesses prédios), a verdade é que os Requerentes não fizeram prova desses factos e era sobre eles, naturalmente, que recaía o ónus de provar os factos em função dos quais se pudesse concluir que a lesão do direito (que receavam) era grave e dificilmente reparável.
Na verdade, apenas se provou que essa “canada” é usada para acesso a dois prédios rústicos e que, no essencial, estes prédios são constituídos por mato. Não se provou que essa “canada” também seja usada para acesso a casas de habitação (consequentemente, não se provou que seja por aí que acedem os bombeiros para socorrer quem aí habita ou os funcionários dos CTT e dos serviços da água e da EDP); não se provou que os Requerentes tenham animais nos prédios em causa; não se provou que cultivem esses prédios ou que os usem, efectivamente, para qualquer outro fim.
Ou seja, em função da matéria de facto que resultou provada, a eventual privação de acesso àqueles prédios implicará apenas que os Requerentes fiquem impedidos de limpar e recolher o mato aí existente (uma vez que os prédios não têm outra utilização), situação que, na nossa perspectiva, não pode ser qualificada como lesão grave do direito, na medida em que não tem repercussão relevante na esfera pessoal e/ou patrimonial dos Requerentes. Enquanto titulares do direito de propriedade sobre aqueles prédios, os Requerente terão, naturalmente, o direito de lhes aceder se e quando quiserem, para o efeito de os limpar ou para qualquer outro efeito e de usar, para o efeito, a servidão de passagem que esteja constituída em favor desses prédios; pensamos, porém, que esse direito não está carecido de tutela imediata (e provisória) por via do decretamento de uma providência cautelar; ainda que estejamos perante a perspectiva ou ameaça de lesão desse direito, ele pode aguardar pela tutela definitiva a obter pelas vias normais, sem que exista – ou, pelo menos, sem que tal se tenha demonstrado – o risco de, entretanto e por via da lesão que se venha a consumar, ocorrer prejuízo ou dano relevante e grave.
Refira-se que, caso o esbulho venha a ser concretizado – com a efectiva construção do muro – ele até poderá justificar, como acima referimos, uma nova providência cautelar de restituição provisória de posse, desde que possa ser considerado como esbulho violento, tendo em conta que essa providência cautelar não exige qualquer outro requisito, dispensando, por isso, qualquer análise sobre a existência de dano ou prejuízo grave resultante da privação da posse.
Mas, ainda que assim seja, a mera ameaça desse esbulho – ou seja, o fundado receio de que ele venha a ocorrer – não basta para o efeito de decretar uma providência cautelar não especificada que vise evitar a concretização dessa ameaça; para esse efeito, será necessário, como vimos, que a lesão do direito – no caso, a privação da posse do direito de servidão de passagem – seja grave e dificilmente reparável, o que implica, como vimos, que ela possa ter repercussão relevante na esfera pessoal e/ou patrimonial do possuidor, o que, no caso, não se pode ter como demonstrado.
*3. [Comentário] Não se discorda da decisão tomada no acórdão da RC, mas, sem deixar de salientar os méritos do acórdão, poderia ter havido maior rigor na delimitação do periculum in mora, isto é, na "lesão grave e dificilmente reparável" que se refere no art. 362.º, n.º 1, CPC
O acórdão parece aceitar que esse periculum é aferido pelo prejuízo que é causado ao requerente se a providência decretada não for decretada. É efectivamente a única orientação que é aceitável, pelo que o acórdão deve ser louvado por não padecer de algumas confusões que se têm suscitado na matéria.
Apesar disso, afirma-se no acórdão que
"[...] para que seja decretada uma
providência cautelar [...] é ainda necessário que [...]a lesão (que se receia poder vir a acontecer) seja uma lesão grave e
dificilmente reparável".
Aproveita-se a ocasião para referir que o que releva não é a "lesão grave e dificilmente reparável" que se receia que possa vir a acontecer (no futuro) ao direito do requerente, mas antes -- precisamente como consequência da premissa de que se parte no acórdão -- a lesão que vai acontecer (de imediato) a esse direito se a providencia cautelar não for decretada. Quer dizer: a prognose não é sobre a situação em que o requerente se vai encontrar se no futuro o seu direito for violado, mas antes sobre a situação em que o requerente se encontrará de imediato se a providência cautelar não for decretada.
É precisamente por isso que não se discorda do acórdão da RC, dado que, em função dos dados disponíveis, não parece que o requerente sofra qualquer "lesão grave e dificilmente reparável" se a providência não for decretada.
MTS