13/11/2024

Jurisprudência 2024 (47)


Acção de divisão de coisa comum;
reconvenção; admissibilidade


1. O sumário de RC 20/2/2024 (183/22.9T8PNI-B.C1) é o seguinte:

I – Na ação de divisão de coisa comum, é a lei, no art. 926º, nº 3 parte final, do n.C.P.Civil, que se mostra adaptável a incluir no processo especial de divisão de coisa comum, a forma de processo comum.

II – Quando a indivisibilidade do bem comum é aceite entre as partes e o único litígio verdadeiramente existente se prende com as questões relativas à aquisição da fração autónoma em comum e na mesma proporção por ambos os comproprietários, com recurso a pedido de empréstimo bancário (mais concretamente quanto ao pagamento por um deles de empréstimo bancário relativo ao prédio, e bem assim dos montantes a título de IMI e contribuições de condomínio), numa situação em que o pagamento caberia a ambos, é admissível a reconvenção quando tenha sido suscitada a compensação de alegado crédito por despesas suportadas para além da quota respetiva, com o crédito de tornas que venha a ser atribuído ao Requerente.

III – O poder/dever de gestão processual permite a admissibilidade da reconvenção.

IV – Sendo certo que esta é a única interpretação que se harmoniza com os princípios que regem a lei processual civil, cada vez mais arredados de visões de pendor marcadamente formalista em detrimento da busca da garantia de uma efetiva composição do litígio (de acordo com o art. 37º, nos 2 e 3, do mesmo n.C.P.Civil).


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Importa no presente recurso aferir e decidir do desacerto da decisão que não admitiu o pedido reconvencional formulado pela Requerida numa ação de divisão de coisa comum.

Um dos fundamentos base de tal decisão foi o entendimento de que é requisito do preenchimento do disposto no art. 266º, nº 2, al. c) do n.C.P.Civil[3], que estejam em causa dois “créditos”, sendo que não teria essa natureza o exercício do direito potestativo de exigir a divisão – direito exercitado pela Requerente nos autos.

O outro fundamento basilar foi o de que admitir a reconvenção «apenas serviria para complicar desnecessária e intoleravelmente a tramitação da presente ação de divisão de coisa comum».

Que dizer?

Salvo o devido respeito – e releve-se o juízo antecipatório! – não se mostra bem fundado o despacho recorrido em qualquer das suas duas vertentes.

Senão vejamos.

Consabidamente, a ação de divisão de coisa comum tem como pressuposto a compropriedade sobre um determinado bem, sendo que neste caso estava em causa um imóvel.

A ação de divisão de coisa comum é um processo especial que se encontra previsto e regulado nos arts. 925º e segs. do n.C.P.Civil, tendo por objeto a realização do direito dos comproprietários à divisão, conforme o art. 1412º do C.Civil, e, no caso de indivisibilidade material da coisa, o acordo na sua adjudicação a algum dos titulares do direito de compropriedade e preenchimento dos quinhões dos restantes com dinheiro, ou na falta de acordo, a venda executiva e subsequente repartição do respetivo produto na proporção das quotas de cada um (art. 929º, nº 2, do n.C.P.Civil).

Assim, tal tipo de ação é de natureza especial comportando uma fase declarativa [cf. arts. 925º a 928º do n.C.P.Civil] e uma fase executiva [cf. art. 929º do n.C.P.Civil], aquela dirigida a definir o direito da divisão e esta a efectivá-lo.

De referir que a questão da admissibilidade da reconvenção nas ações de divisão de coisa comum tem dividido a jurisprudência, entendendo uns que se verifica incompatibilidade processual entre o pedido de divisão e o pedido reconvencional face ao disposto no art. 266º, nº 3 do n.C.P.Civil, sendo que outros ultrapassam a questão ponderando o disposto no art. 37º, nos 2 e 3, ex vi do art. 266º, nº 3 do mesmo n.C.P.Civil.

Isto para dizer que a questão recursiva não é nova, antes tem sido frequentemente colocada.

Vejamos então.

O supra enunciado primeiro fundamento da decisão recorrida traduz a exigência duma certa conexão ou relação entre o objecto do pedido reconvencional e o objecto do pedido do autor em ação de divisão de coisa comum.

Ora, se como aconteceu na presente ação especial de divisão de coisa comum, a Requerida, apesar de deduzir contestação, confessa o pedido da Requerente [quanto à aquisição do imóvel em compropriedade e a natureza indivisível da coisa], é ainda assim admissível a reconvenção quando tenha sido suscitada a compensação de alegado “crédito” por despesas suportadas para além da quota respetiva, com o “crédito” de tornas que venha a ser atribuído ao Requerente.

Na verdade, em tais circunstâncias, o litígio entre as partes centra-se essencialmente na ausência de entendimento sobre as quantias pecuniárias com que cada contribuiu para a aquisição do imóvel.

Donde, “as questões suscitadas pelo pedido de divisão”, referidas no art. 926º, nº 2, do n.C.P.Civil, acabam por ser as relativas à compensação do valor que um deles haja suportado a mais com a aquisição, com o valor das tornas a haver pelo outro. [Neste sentido vide MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA em Comentário ao Acórdão da Relação de Évora de 17 de janeiro de 2019, proc. n.º 764/18.5T8STB.E1 – disponível para consulta in https://blogippc.blogspot.com/2019/05/jurisprudencia-2019-18.html.]

Com efeito, atento o facto de o prédio não ser divisível, a divisão de coisa comum terá de se realizar com a adjudicação do prédio a um dos comproprietários, mediante o pagamento de tornas ao outro comproprietário – art. 929º nº 2 do n.C.P.Civil.

Sucede que as despesas alegadamente realizadas por um dos interessados quer no pagamento de empréstimo bancário relativo ao prédio, quer nos montantes a título de IMI e contribuições de condomínio, numa situação em que o pagamento caberia a ambos, gera na esfera jurídica da Requerida, a fazer fé no por si alegado, um direito a ser ressarcida em ½ das despesas, sendo que esse “crédito” poderá assim ser compensado com o “crédito” do Requerente em tornas.

Assim, a não se admitir a discussão ampla e prévia daquela questão do “deve” e “haver” entre as partes, na conferência de interessados, no caso de se adjudicar o imóvel a um dos comproprietários, o valor de tornas a entregar ao outro não terá em conta o verdadeiro cerne do litígio, tudo se passando como se ambos tivessem contribuído igualmente na proporção da quota respetiva.

Porém, segundo o que cada uma das partes alega, tal não aconteceu…

Dito de outra forma: não existe razão para lançar mão de outro processo judicial com vista à resolução daquilo que, efetivamente, separa as partes: o encontro entre o “deve” e o “haver”, entre a contribuição de cada um para o valor da sua quota.

Por outro lado – e aqui entrando já na apreciação do segundo fundamento basilar da decisão recorrida! – vejamos agora da salvaguarda do expediente legal inscrito no citado nº 3, do art. 266º, do n.C.P.Civil.

É certo que se traduzem as diversas formas de processo – especial [quanto à divisão de coisa comum] e comum [quanto ao apuramento do “deve” e “haver” entre as partes] – no único obstáculo formal à admissibilidade da reconvenção, mas não seguem as mesmas uma tramitação manifestamente incompatível, tanto mais que é expressamente admissível a convolação do processo especial de divisão de coisa comum em processo comum, de acordo com o art. 37º, n.os 2 e 3, do n.C.P.Civil, isto é, segundo o qual o juiz pode autorizar a reconvenção, «(…) sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio».

Sendo certo que as formas de processo especial e comum, correspondentes aos pedidos da Requerente e da Requerida, não seguem uma “tramitação manifestamente incompatível”, pois o próprio legislador prevê, no art. 926º, nº 3, do n.C.P.Civil, a transmutação do processo especial de divisão de coisa comum em processo comum.

Acresce que o art. 2º, nº 2, do n.C.P.Civil adverte para a garantia de acesso aos tribunais, mediante todos os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação, salvo se a lei disser o contrário, o que neste caso não diz.

Finalmente, temos ainda que por via do art. 6º do mesmo n.C.P.Civil, compete ao juiz adotar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a almejada justa composição do litígio em prazo razoável.

Neste sentido, tal poder/dever de gestão processual permite a admissibilidade da reconvenção, em circunstâncias como as da presente lide – sendo esta a única interpretação que se harmoniza com os princípios que regem a lei processual civil.

Princípios esses cada vez mais arredados de visões de pendor marcadamente formalista em detrimento da busca da garantia de uma efetiva composição do litígio.

Nesta linha de entendimento já foi sublinhado o seguinte em douto aresto [Trata-se do acórdão do STJ de 09/10/2019, proferido no proc. nº 385/18.2T8LMG-A.C1.S2, acessível em www.dgsi.pt/jstj.]:

«É certo de igual forma que essa tramitação não se adequa em si mesma à tramitação inerente ao pedido reconvencional.

É ainda certo que a tramitação de processo comum a seguir em atenção ao pedido reconvencional altera a tramitação prevista para o processo de divisão de coisa comum.

Todavia, importa compreender que toda essa perturbação na tramitação processual é conatural à junção num só processo de pedidos que sigam uma tramitação diversa.

E o que é facto é que a lei não enjeita a possibilidade dessa junção.

Na perspetiva da lei, o inconveniente inerente à perturbação processual que é introduzida resolve-se através da adaptação do processado aos fins da reconvenção (n.º 3 do art. 37.º do CPCivil).

Isto só não deverá ser assim quando a ação e a reconvenção devam seguir tramitação “manifestamente incompatível””.

(…) incompatibilidade manifesta (intolerável, gritante) só existirá naqueles casos em que se imporia (ou, pelo menos, em que houvesse o risco disso suceder) praticar atos processuais contraditórios ou inconciliáveis. Não basta que se esteja perante tramitações desajustadas umas das outras, pois que isso sempre acontece, em maior ou menor grau, em formas processuais diferentes.

(…) a introdução da reconvenção em causa é fonte de perturbação no processo de divisão da coisa comum, mas isso, na perspetiva da lei, não é suficiente para impedir a reconvenção. (…)»

O que tudo serve para dizer que deve a ação seguir os termos do processo comum, para que sejam decididas tais questões, só então depois se entrando na fase executiva do processo com a conferência de interessados.

Esta mesma linha de entendimento – a qual, s.m.j. é claramente maioritária a nível jurisprudencial! – já foi sublinhada em douto aresto do nosso mais alto tribunal, como flui do seguinte:

«I. Na ação especial de divisão de coisa comum, em que o Requerido, apesar de deduzir contestação, confessa o pedido da Requerente, é admissível a reconvenção quando tenha sido suscitada a compensação de alegado crédito por despesas suportadas para além da quota respetiva, com o crédito de tornas que venha a ser atribuído ao Requerente, devendo a ação seguir os termos do processo comum, para que sejam decididas tais questões, só então se entrando na fase executiva do processo com a conferência de interessados.

II. No art. 266.º, n.º 3, do CPC, o legislador salvaguarda a possibilidade de o juiz autorizar a reconvenção “quando ao pedido do Requerido corresponda uma forma de processo diferente”, nos termos previstos no art. 37.º, n.ºs 2 e 3, do mesmo corpo de ºnormas, “com as necessárias adaptações”.

III. Traduzindo-se as diversas formas de processo - especial e comum - no único obstáculo formal à admissibilidade da reconvenção, mas não seguindo as mesmas uma tramitação manifestamente incompatível, tanto mais que é expressamente admissível a convolação do processo especial de divisão de coisa comum em processo comum, de acordo com o art. 37.º, n.ºs 2 e 3, do CPC, o Juiz pode autorizar a reconvenção, “sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa-composição do litígio”.

IV. O poder-dever de gestão processual permite a admissibilidade da reconvenção, em circunstâncias como as dos presentes autos.

V. Está em causa o interesse em discutir e decidir todas as questões que, para além da divisão, envolvem os prédios dividendos. Importa evitar que o Requerido se veja compelido a propor uma outra ação para ver o seu direito reconhecido.» [Citámos agora o acórdão do STJ de 26/01/2021, proferido no proc. nº 1923/19.9T8GDM-A.P1.S1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj, onde, aliás, se faz uma resenha jurisprudencial perfilhando a mesma posição; no mesmo sentido o acórdão do STJ de 25/05/2021, proferido no proc. nº 1761/19.9T8PBL.C1.S1, este citado nas alegações recursivas; ainda no mesmo sentido e com igual resenha jurisprudencial, vide o acórdão do TRL de 24/03/2022, proferido no proc. nº 823/20.4T8CSC-A.L1-2, este acessível em www.dgsi.pt/trl]."


[MTS]