"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/05/2019

Jurisprudência 2019 (18)


Acção de divisão de coisa comum;
reconvenção; admissibilidade
 

1. O sumário de RP 17/1/2019 (764/18.5T8STB.E1) é o seguinte:

I - Sendo as diversas formas de processo - especial e comum -, o único obstáculo formal à admissibilidade da reconvenção, mas não seguindo as mesmas uma tramitação manifestamente incompatível, tanto mais que é expressamente admissível a transmutação do processo especial de divisão de coisa comum em processo comum, de acordo com o preceituado nos n.ºs 2 e 3 do indicado artigo 37.º, pode o juiz autorizar a reconvenção, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa-composição do litígio.

II - Quando a indivisibilidade do bem comum é aceite entre as partes e o único litígio verdadeiramente existente se prende com as questões relativas à aquisição da fracção autónoma em comum e na mesma proporção por ambos os comproprietários, com recurso a pedido de empréstimo bancário, que um alega ter suportado em quantia superior ao outro, o poder/dever de gestão processual permite a admissibilidade da reconvenção, em circunstâncias como as da presente lide.

III – Esta é a única interpretação que se harmoniza com os princípios que regem a lei processual civil, cada vez mais arredados de visões de pendor marcadamente formalista em detrimento da busca da garantia de uma efectiva composição do litígio que reponha a paz social quebrada com as visões antagónicas que as partes têm do caso que as divide e que são o único fundamento da demanda.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Dispõe o artigo 925.º do CPC, a respeito da petição do processo especial de divisão de coisa comum, que todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão de coisa comum requererá, no confronto dos demais consortes, que, fixadas as respectivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respectivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas.
 
Ponderou-se acertadamente na decisão recorrida que «a acção especial de divisão de coisa comum tem por objecto a concretização do direito dos comproprietários à divisão, a que se reporta o art.º 1412.º do Código Civil, ou, no caso de indivisibilidade material da coisa, o acordo na sua adjudicação a algum dos titulares do direito de compropriedade e preenchimento dos quinhões dos outros com dinheiro, ou na falta de acordo, a venda executiva e subsequente repartição do seu produto na proporção das quotas de cada um (cfr. art. 929.º n.º 2 do Código de Processo Civil).
 
Trata-se de uma acção de natureza real constitutiva, na medida em que implica uma modificação subjectiva e objectiva do direito real que incide sobre a coisa, porquanto, caso se verifique a sua divisibilidade, o direito de compropriedade será fragmentado, quer quanto aos sujeitos, quer quanto ao objecto e, nos casos de indivisibilidade, o direito de compropriedade transforma-se em direito de propriedade singular, passando a ser seu titular outro ou outros sujeitos (…)».
 
No caso concreto, conforme decorre das posições vertidas nos respectivos articulados, A. e R. não colocam em causa nem a aquisição da fracção em compropriedade nem a natureza indivisível da coisa. O que cristalinamente transparece dos autos é que o litígio entre os mesmos decorre de não chegarem a um entendimento quanto às quantias em dinheiro com que cada contribuiu para a aquisição do imóvel, bem como quanto às que despenderam/receberam desde a separação, pretendendo ambos ser reembolsados das despesas/rendas que discriminaram.
 
Portanto, o cerne da questão que nos preocupa é o de saber se, como se entendeu na decisão recorrida, com o aplauso da Apelada, na acção de divisão de coisa comum, a reconvenção, com estes fundamentos, não é admissível, ou inversamente, como pretende o Apelante, a admissão e apreciação do pedido reconvencional é essencial para, em conferência de interessados, “ser fixado o valor das tornas que o comproprietário que adjudique o prédio terá de pagar ao outro”.
 
Cremos ser pacífica a afirmação de que, se houver contestação, a acção especial de divisão de coisa comum admite reconvenção, pois aquele processo normalmente converte-se, nos termos do actualmente disposto na 2.ª parte do n.º 3 do artigo 926.º, do CPC, de processo especial, em processo comum [
Cfr. o recente Ac. TRG de 20.09.2018, proferido no processo n.º 242/17.0T8VPC-A.G1, bem como autores e jurisprudência aí referida], admitindo consequentemente todas as possibilidades processuais da tramitação deste.
 
Porém, a questão dos autos não está nessa parte pacífica da admissibilidade da dedução de reconvenção na acção especial de divisão de coisa comum, verificados que estejam os seus requisitos substantivos que se encontram enunciados no artigo 266.º do CPC, mas sim em saber se, nas situações hodiernamente mais frequentes como a ora trazida a juízo, em que a acção de divisão de coisa comum respeita a imóveis indivisíveis por natureza, adquiridos por virtude de uma situação de comunhão de vida, entretanto extinta, amiúde destinados a habitação e adquiridos com recurso a empréstimo bancário garantido por hipoteca, cujas prestações ou rendimentos são suportadas/recebidas em quantia diversa da proporção da aquisição do direito de propriedade, por um dos membros da comunhão, a simplicidade da questão suscitada pelo pedido de divisão, impede que à demanda seja trazida, por via reconvencional, a questão que é o efectivo objecto do litígio entre os consortes, mas que não pode ser sumariamente decidida. Por outras palavras, tudo está em saber se «as questões suscitadas pelo pedido de divisão», a que alude o n.º 2 do artigo 926.º do CPC, são inexoravelmente apenas as respeitantes à divisão física da coisa comum, ou podem contemplar aquelas que a divisão física suscita entre os comproprietários, mormente em caso de indivisibilidade as referentes à compensação do valor que um deles haja suportado a mais com a aquisição, do valor das tornas a haver pelo outro.
 
A questão não tem merecido entendimento pacífico, dividindo-se as posições entre aqueles que, como a decisão recorrida [...], consideram que a menos que as questões deduzidas na contestação/reconvenção possam ser decididas sumariamente, sem necessidade de prosseguir a causa nos termos do processo comum, a reconvenção não será admissível, e aqueloutros que consideram ser de admitir a reconvenção para assegurar a justa composição do litígio, quando tenha sido suscitada a compensação de invocado crédito por despesas suportadas para além da quota respectiva, com o crédito de tornas que venha a ser atribuído ao requerente, devendo a acção seguir os termos do processo comum, para que sejam decididas tais questões, só então se entrando na fase executiva do processo com a conferência de interessados
[Cfr. neste sentido, os Acs. TRL de 15.03.2018, proc. n.º 2886/15.5T8CSC.L1.L1-8, de 24.09.2015, proc. n.º 2510/14.3T8OER-A.L1-2, e TRG de 25.09.2014, proc. n.º 260/12.4TBMNC-A.G1. ].
 
Em suma, a decisão recorrida, tendo considerado que a questão suscitada pelo pedido de divisão era simples, tanto mais que a fracção é indivisível em substância, e as quotas foram adquiridas na proporção de 50% para cada comproprietário, louvou-se no Ac. TRL de 04.03.2010, proc. n.º 1392/08.9TCSNT.L1-6, para concluir que “é possível deduzir reconvenção no processo de divisão de coisa comum sempre que haja contestação. Se, no entanto, as questões deduzidas na contestação, no confronto com o pedido inicial, forem decididas sumariamente sem que haja de prosseguir a causa nos termos do processo comum, a reconvenção só é admissível se também dessa forma puder ser decidida”, e no Ac. TRL de 30.06.2009, para considerar que “são irrelevantes as contribuições de cada um dos consortes para liquidação do respectivo preço”. (…) “E o que foi pagando a título de amortização do empréstimo (que desde logo não é pagamento do preço de aquisição do imóvel mas amortização do empréstimo que serviu para esse pagamento) deve ser conferido dentro das relações dessa relação jurídica ou em liquidação do património comum do casal que constituíram”.
 
Salvo o devido respeito, consideramos que o entendimento preconizado não é o mais consentâneo com a interpretação conjugada dos preceitos pertinentes para encontrar a almejada justa-composição do litígio, quando é certo que o único verdadeiramente existente entre as partes se prende precisamente com as questões relativas à aquisição da fracção autónoma em comum e na mesma proporção por ambos os comproprietários, com recurso a pedido de empréstimo bancário, que um alega ter suportado em quantia superior ao outro.
 
Ora, com a visão preconizada na decisão recorrida, na conferência de interessados, caso exista adjudicação a um dos comproprietários, o valor a entregar de tornas ao outro, não terá em conta o verdadeiro cerne do litígio, tudo se passando como se ambos tivessem contribuído/beneficiado igualmente na proporção da quota respectiva. Diz cada um deles, e por diferentes razões, que tal não aconteceu, significando isso que as partes terão que recorrer a outro processo para resolver aquilo que verdadeiramente as divide e que é, em rectas contas, o encontro entre o “deve” e o “haver”, entre a contribuição de cada um para o valor da sua quota ou, noutra visão, o benefício que cada um retirou para além da quota parte respectiva. 
 
Mas, para dirimir o litígio fará isso sentido remeter as partes para outra acção? 
 
Pensamos que não.
 
Efectivamente, sendo certo que na acção de divisão de coisa comum quando o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, de acordo com o n.º 3 do artigo 926.º do CPC manda seguir, após a contestação, os termos subsequentes do processo comum, o único obstáculo que existe à determinação da convolação do processo especial em processo comum, será o decorrente da forma de processo, previsto no n.º 3 do artigo 266.º do CPC, que rege sobre a admissibilidade da reconvenção, porquanto a mesma, nos termos em que foi deduzida, sempre se enquadraria na previsão da alínea c) do n.º 2 do mesmo preceito.
 
Porém, logo no próprio n.º 3 do mesmo preceito consta salvaguarda a possibilidade de o juiz a autorizar, nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º do CPC, com as necessárias adaptações.
 
Assim, sendo as diversas formas de processo - especial e comum -, o único obstáculo formal à admissibilidade da reconvenção, mas não seguindo as mesmas uma tramitação manifestamente incompatível, tanto mais que é expressamente admissível a transmutação do processo especial de divisão de coisa comum em processo comum, de acordo com o preceituado nos n.ºs 2 e 3 do indicado artigo 37.º, pode o juiz autorizar a reconvenção, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa-composição do litígio.
 
Ora, quando o artigo 2.º, n.º 2, do CPC adverte para a garantia de acesso aos tribunais, mediante todos os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção, salvo se a lei disser o contrário, o que neste caso não diz; e, por via do artigo 6.º da mesma codificação compete ao juiz adoptar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a almejada justa-composição do litígio em prazo razoável. Neste sentido, tal poder/dever de gestão processual permite a admissibilidade da reconvenção, em circunstâncias como as da presente lide –, sendo esta a única interpretação que se harmoniza com os princípios que regem a lei processual civil, cada vez mais arredados de visões de pendor marcadamente formalista em detrimento da busca da garantia de uma efectiva composição do litígio que reponha a paz social quebrada com as visões antagónicas que as partes têm do caso que as divide e que são o fundamento da demanda.
 
Deste modo, fazemos nossas as judiciosas considerações tecidas no Ac. TRG de 20.09.2014, para concluir que «o interesse em discutir e decidir todas as questões que, para além da divisão, envolvem os prédios dividendos, (…) evitando dessa forma que ele se veja compelido a recorrer à propositura de uma outra acção para ver o seu direito reconhecido, para além de não beliscar qualquer daqueles princípios estruturantes, assume indiscutível relevância e que justifica plenamente a admissão da reconvenção. 
 
E o próprio processo especial de divisão de coisa comum contém em si os mecanismos adequados para adaptar o processo à cumulação autorizada bastando, para o efeito, seguir o “iter” inverso ao do despacho recorrido: em vez de decidir em primeiro lugar da possibilidade de proferir logo decisão sobre as questões suscitadas pelo pedido de divisão para, em face disso, concluir depois pela incompatibilidade de tramitação, começar por, reconhecendo o interesse relevante na admissão da reconvenção e, verificada a impossibilidade de conhecer sumariamente das questões suscitadas, mandar seguir os termos, subsequentes à contestação, do processo comum. 
 
Parece-nos, assim, que os princípios subjacentes àqueles poderes/deveres de gestão e adequação processual atribuídos ao juiz impõem que, acção de divisão de coisa comum, se for deduzida reconvenção em que o demandado formule pedido de indemnização por benfeitorias feitas no prédio dividendo, deverá a reconvenção ser admitida, ao abrigo do disposto nos artigos 266º, n.º 3 e 37º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Civil ordenando-se, em consequência, que o processo siga os termos, subsequentes à contestação, do processo comum»."

*3. [Comentário] O acórdão encontra-se bem fundamentado. Adere-se, sem dificuldade, à orientação nele consagrada. 

MTS