24/04/2025

Jurisprudência 2024 (154)


Autoridade de caso julgado;
âmbito subjectivo; âmbito objectivo*

I. O sumário de RL 11/7/2024 (2992/19.7T8ALM.L1-7) é o seguinte:

1. Verificado os pressupostos duma situação em que se imponha o respeito pela “autoridade do caso julgado”, o Tribunal não se deve abster de decidir o pedido correspondente. Pelo contrário, deve decidir e deve fazê-lo em conformidade com a decisão anterior transitada em julgado.

2. No caso dos autos, o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão transitado em julgado, proferido relativamente à mesma relação contratual aqui “sub judice”, mas em processo anterior, sustentou que em causa estaria uma “venda fiduciária em garantia” válida, à qual não se aplicaria, designadamente, a proibição legal do pacto comissório.

3. Considerando que a consequência do incumprimento definito do contrato pelo devedor, numa venda fiduciária em garantia, determina a perda definitiva do direito de propriedade a favor do credor (beneficiário da coisa vendida em garantia), num caso em que o valor económico da coisa vendida é manifestamente superior ao crédito garantido, o afastamento da proibição legal do “pacto comissório” só se torna aceitável se for corrigido, através do instituto do enriquecimento sem causa (Art. 473.º do C.C.), o efeito pernicioso e legalmente inadmissível que decorrerá de o credor fazer definitivamente sua a coisa dada em garantia.

4. Doutro modo, seria permitir o abuso de direito (cfr. Art. 334.º do C.C.), porque a finalidade social e económica da garantia assim prestada não pode servir finalidade diversa e permitir um enriquecimento ilegítimo do credor e sem causa justificativa.


II. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"I- RELATÓRIO

CR e JR intentaram a presente ação de simples apreciação, de execução específica e de condenação, em processo declarativo comum, contra C.B.G.- Imobiliária, S.A., e CG, formulando os seguintes pedidos:

a) Ser reconhecido como venda fiduciária em garantia de um mútuo o contrato celebrado entre os AA. e a R. CBG e usurários os juros cobrados pela R. nesse contrato, com a sua redução à quantia de €15.256,48, ou outra que venha a resultar da aplicação da taxa legal de 7%, a liquidar em execução de sentença; [...]

IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO [...]

2. Do mérito dos pedidos principais.

O Recorrente convocou para reapreciação na presente apelação o mérito de praticamente todos os pedidos formulados na petição inicial, pugnando pela revogação da sentença no sentido de todos eles deverem ser julgados por procedentes, nomeadamente, e desde logo, os 3 pedidos principais.

É verdade que a sentença recorrida julgou a ação parcialmente procedente, condenando a R., C.B.G.- Imobiliária, S.A., a pagar ao A., aqui Recorrente, a quantia de €67.500,00, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento. Mas tal só corresponde à apreciação feita do pedido subsidiário constante da al. f) da petição inicial, pois quanto aos demais pedidos, a decisão final constante da sentença foi no sentido da absolvição dos R.R. “do pedido”.

Sucede que que a sentença recorrida, na verdade, não apreciou nenhum dos pedidos constantes das alíneas a) e b) da petição inicial, apesar de os enunciar (cfr. fls. 239 verso), debruçando-se praticamente em exclusivo sobre o pedido de execução específica, que constava da al. c) do petitório, dele fazendo uma apreciação que é objetivamente conforme à decisão final de absolvição dos R.R. desse pedido.

A sentença não inclui uma única linha para fundamentar a improcedência do pedido formulado na alínea a) da petição inicial, limitando-se a concluir que não poderia haver execução específica de contrato-promessa cujo prazo de vigência cessou (cfr. fls. 240). Ora, o pedido da alínea a) nada tem a ver com o pedido de execução específica que se julgou improcedente.

Dito isto, temos de reconhecer, no entanto, que poderia existir uma razão para essa omissão pronúncia, decorrente do contexto do processado dos autos. Simplesmente essa hipotética razão não é atendível e só poderia resultar dum claro equívoco.

Efetivamente, no que concerne ao pedido da alínea a) da petição inicial, ele suporta-se na alegação de factos e de qualificações jurídicas que já haviam sido apreciadas em anterior ação judicial, que correu termos no extinto 2.º Juízo Central Cível de Almada, sob o n.º 1626/12.5TBMTJ, no qual figuravam, como A.A.: CR e MJ, respetivamente a co-A. nesta ação e a filha do aqui Recorrente; e como R.R.: a C.B.G. – Imobiliária, S.A. e JR, que são, respetivamente, a 1.ª R., que é um dos aqui Recorridos, e o A., que é Recorrente na presente apelação.

Nessoutra ação, relativamente à qual, patentemente, não havia coincidência absoluta entre as partes aí em litígio por reporte às da presente, também não havia coincidência de pedidos, pois ali pretendia-se apenas que fosse declarada a nulidade, por simulação, do contrato de compra e venda da herdade de … celebrado entre C.B.G. – Imobiliária, S.A. e JR, com o consequente cancelamento da inscrição do registo da propriedade a favor da sociedade R..

Não havendo coincidência absoluta das partes, nem havendo sequer uma mínima semelhança entre os pedidos formulados nas duas ações, existia, no entanto, uma coincidência parcial dos factos que serviam de causa de pedir às mesmas. Por isso, muitos dos factos dados por provados na presente ação são precisamente os mesmos que foram provados no processo n.º 1626/12.5TBMTJ, tal como se mostra refletido na factualidade da sentença aqui recorrida (v.g. factos provados 1 a 34 e facto 37, alíneas “A” a “AAA”).

Mais, a ação anterior, que correu termos sob o n.º 1626/12.5TBMTJ, veio a ser julgada improcedente por não provada, sendo os ali R.R. absolvidos do pedido de declaração de nulidade do contrato de compra e venda, por alegada simulação, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de junho de 2017, transitado em julgado em 18 de setembro de 2017 (cfr. certidão junta de fls. 41 verso a 61 verso), porque se julgou que não se verificavam os requisitos da simulação, mas também por se ter feito uma qualificação jurídica diversa do negócio efetivamente celebrado, configurando-o como um “venda fiduciária em garantia” (cfr. págs. 23 a 39 do cit. doc. n.º 12 junto com a petição inicial – v.g. fls. 53 a 61).

Precisando melhor a situação, verificamos que, em função do teor desse acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, percebe-se que o tribunal de 1.ª instância julgou a ação procedente, reconhecendo a existência de simulação e, portanto, que haveria divergência entre a vontade real e a declarada, com o propósito de enganar terceiros, fundada num acordo simulatório (cfr. Art. 240.º n.º 1 do C.C.), porque os vendedores não queriam vender, nem os compradores pretenderiam comprar a dita herdade da YY (cfr. cit. doc. pág. 17 a fls. 50). No entanto, o Tribunal da Relação alterou a matéria de facto e julgou não se verificarem os requisitos da simulação previstos no Art. 240.º n.º 1 do C.C. (cfr. cit. doc. págs. 17 e 18  a fls. 50 e verso), considerando antes que estaria em causa a figura típica da “venda fiduciária em garantia” (cfr. cit. doc. a págs. 19 e 20 a fls. 51 e verso). Só que, nessa sequência, ponderou a circunstância de, subjacente a esse negócio, estar um contrato de mútuo suscetível de ser tido por inválido, seja por usura, seja por ser abusivo ou contrário à lei, ao abrigo dos Art.s 280.º, 282.º, 294.º e 334.º do C.C. (cfr. cit. doc. a pág. 20 a fls. 51 verso), sendo que no caso haveria negócio usurário por terem sido violados os limites legais impostos à taxa de juro aplicável aos contratos de mútuo, nos termos do Art. 282.º, 1146.º n.º 1 e 559.º do C.C. (cfr. cit. doc. a pág. 20 a fls. 51 verso) e, caso o imóvel se mantivesse na esfera da R., o contrato de compra e venda seria contrário à lei, com conteúdo ilícito proibido pelo Art. 280.º do C.C. (cfr. cit. doc. pág. 21 a fls. 52). Foi por esse motivo que o Tribunal da Relação manteve a decisão recorrida, proferida pela 1.ª instância, de declarar a nulidade do negócio jurídico de compra e venda, mas com uma fundamentação jurídica completamente diversa, que na verdade nem sequer havia sido alegada pelas A.A. dessa ação, segundo se depreende.

O Supremo Tribunal de Justiça veio a revogar o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, julgando a ação improcedente, confirmando a apreciação feita pela Relação relativamente à falta de verificação dos requisitos da simulação (cfr. cit. doc. pág. 22 a fls. 51 verso) e concordando também com a qualificação jurídica feita em termos de entender que os factos apurados se deverem subsumir a uma “venda fiduciária garantida” (cfr. cit. doc. pág. 23 a fls. 53). No entanto, considerou que não colhiam os argumentos aí expedidos no sentido da nulidade do contrato de compra e venda, mesmo reconhecendo que ao mútuo da quantia de €265.000,00, pelo prazo de 10 meses, não poderia corresponder o reembolso da quantia mutuada acrescida de €110.000,00, porque tal implicaria juros muito superiores ao limite legal de 7% (4% + 3%), que decorreria da aplicação dos juros legais previstos no Art. 559.º do C.C., conjugado com a Portaria n.º 291/2003 de 8/4 e tendo em atenção o disposto no Art. 1146.º n.º 1 do C.C. (cfr. cit. doc. pág. 31 a fls. 57).

Do teor desse douto acórdão do Supremo percebe-se que a questão foi apreciada nesses termos, porque não havia sido formulado pelas A.A. o pedido de redução dos juros, ao abrigo do Art. 1146.º n.º 3 do C.C., mas apenas de nulidade da compra e venda por simulação (cfr. cit. doc. a pág. 31 a fls. 57). Também se discordou que houvesse usura do contrato de mútuo subjacente, caso a venda se mantivesse e o prédio continuasse na esfera jurídica da R., porque se os juros fossem reduzidos, nos termos do n.º 3 do Art. 1146.º do C.C., deixaria de haver usura, sendo que a circunstância de o valor do prédio ser superior ao valor do mútuo e dos juros com o limite legal, não implica só por si a nulidade da compra e venda (idem pág. 31 a fls. 57).

No final, o Supremo Tribunal de Justiça afirma explicitamente que: «Haverá, assim, que concluir que, daquela matéria de facto, não resultam elementos bastantes para apurar, com segurança, a existência duma situação que implique a nulidade ou anulação do referido contrato de compra e venda» (cfr. cit. doc. a pág. 39). Ou seja, julgou-se que não havia nulidade por simulação, porque não se provaram os factos integradores dos pressupostos desse tipo de vício do negócio jurídico, nem qualquer outra invalidade que pudesse ser conhecida “com segurança”, sustentada na existência de um contrato de mútuo usurário ou de compra e venda usurária, abusiva ou contrária à lei.

Em que é que releva esta decisão para o caso dos autos?

É que os R.R., na sua contestação, vieram alegar a exceção do caso julgado, com fundamento na existência de repetição da mesma ação, com discussão dos mesmos factos e das mesmas pretensões que estavam subjacentes aos dois processos em menção.

Sucede que, no despacho saneador, e como era por demais evidente, essa exceção foi julgada por improcedente, desde logo, por não haver identidade entre as partes, mas fundamentalmente porque os pedidos eram completamente diversos nas duas ações. No entanto, no final, reconheceu-se que haveria que ponderar a “autoridade do caso julgado”, de tal forma que não poderiam as partes discutir neste processo que a relação contratual estabelecida entre A.A. e a R. CBG seria uma “venda fiduciária garantida”.

Efetivamente, ficou aí consignado que:

«4. Relativamente à questão da autoridade do caso julgado, verificamos que os RR. declaram, na contestação, a sua discordância relativamente ao enquadramento jurídico efetuado pelo Supremo Tribunal de Justiça, no sobredito Processo nº 1626/12.5TBMTJ, quanto ao negócio celebrado pelas partes.

«Porém, tendo ambas as partes intervindo no referido Processo, mostram-se vinculadas aos fundamentos da decisão aí proferida, sendo certo que a qualificação de negócio como fiduciário em garantia constitui pressuposto lógico indispensável da improcedência dessa ação, logo, impõe-se às partes no âmbito da figura da autoridade do caso julgado.

«Não é, consequentemente, lícito aos RR. discutir essa qualificação, a qual se mostra definitivamente assente por força do trânsito em julgado daquele Acórdão.

«5. Em conclusão:

«a) Julga-se improcedente a exceção dilatória da exceção de caso julgado, invocada pelos RR.;

«b) Julga-se legalmente inadmissível a discussão, no âmbito dos presentes autos, da qualificação do negócio celebrado pelas partes como uma venda fiduciária em garantia, por força da autoridade de caso julgado produzida pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no Processo nº 1626/12.5TBMTJ» (cfr. fls. 209 verso).

Sucede que, se é com base nesta decisão que se defende que não poderia ser apreciado o mérito do pedido formulado na alínea a) da petição inicial da presente ação, tal traduz-se num erro de julgamento sustentado em raciocínio que não tem qualquer fundamento.

Efetivamente, a “autoridade do caso julgado” não tem como consequência legal que o tribunal deva abster-se de conhecer os pedidos que tenham sido formulados em coerência com o julgamento de ação anterior, onde foi proferida decisão definitiva, transitado em julgado. Muito pelo contrário, seria por força da autoridade do caso julgado que parte substancial desse primeiro pedido deveria ser julgado por procedente, e logo no despacho saneador, já que o tribunal a quo entendeu que as partes não mais poderiam discutir entre si a qualificação jurídica do negócio que as vinculava.

O que não poderia acontecer era, como aconteceu nos autos, reconhecer que se verificava uma situação de “autoridade do caso julgado”, impondo às partes a inibição de discutirem a qualificação jurídica do negócio, nomeadamente no que se refere à existência duma “venda fiduciária em garantia” e depois, perante um pedido dos A.A., pelo qual se pretendia explicitamente que fosse reconhecido como “venda fiduciária em garantia” o contrato celebrado entre A.A. e R., não julgar logo esse pedido como procedente, acabando por, laconicamente, absolver os R.R. de todos os pedidos principais dos A.A., sem fundamentar minimamente essa decisão, que até é contraditória com o que havia sido expressamente decidido no despacho saneador que, nessa parte, por não ter sido objeto de qualquer recurso, até fez caso julgado formal no processo (cfr. Art. 620.º do C.P.C.).

Como é sabido, as decisões judiciais transitam em julgado logo que não sejam suscetíveis de recurso ordinário ou reclamação (cfr. Art. 628.º do C.P.C.).

Prevê o Art. 619.º n.º 1 do C.P.C. que: «Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º».

O caso julgado traduz assim a força obrigatória da estabilidade das sentenças ou dos despachos que recaiam sobre a relação controvertida objeto da ação e tem como finalidade imediata evitar que, em novo processo, o juiz possa validamente apreciar e considerar um direito, situação ou posição jurídicas, em termos distintos dos já concretamente definidos por anterior decisão, vinculando-o desse modo a essa decisão.

Neste contexto, identifica a Doutrina a verificação de um efeito positivo e negativo do caso julgado. Do efeito positivo, também denominado por “autoridade de caso julgado”, resulta a conclusão de que a decisão assim proferida vincula ou impõe ao tribunal uma decisão na apreciação do mérito do objeto de outra decisão posterior. Já o efeito negativo, configurado como “exceção de caso julgado”, determina uma proibição ou impedimento de o tribunal voltar a decidir, do mesmo modo ou de modo distinto, uma questão já decidida (vide, a propósito: Rui Pinto, in Revista Julgar on line, novembro 2018; Ac. do TRC de 20/10/2015, Proc. n.º 231514/11.3YIPRT.C1; e Miguel Teixeira de Sousa em anotação ao Ac. do TRP de 6/6/2016 - Proc. n.º 1226/15.8T8PNF.P1, disponível em https://blogippc.blogspot.com).

Estas duas vertentes do caso julgado têm consequências jurídicas diversas e sustentam-se em pressupostos não coincidentes.

O caso julgado, enquanto exceção dilatória nominada, pressupõe a verificação necessária da repetição da mesma causa, no pressuposto de que existe identidade das partes, do pedido e da causa de pedir, tendo como consequência legal a absolvição do R. da instância, devendo o tribunal, por força dela, abster-se repetir a mesma decisão (cfr. Art.s 577.º al. i), 578.º, 580.º e 581.º do C.P.C.). Nesta vertente negativa, o caso julgado funciona como proibição de repetição da causa e como proibição de contradição (vide: João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa in “Manual de Processo Civil”, Vol. I, AAFDL, 2022, pág. 641).

O mesmo não sucede exatamente com a vertente positiva do caso julgado, decorrente da verificação duma situação de respeito pela “autoridade do caso julgado”, que impõe a decisão judicial anterior no julgamento do novo processo, condicionando o seu sentido, em situações em que não exista uma efetiva repetição da mesma causa, nomeadamente por não existir uma identidade absoluta das partes, do pedido e causa de pedir, mas pressupondo que haja uma relação de prejudicialidade, subsidiariedade legal ou de consunção entre o objeto de uma decisão anterior e o objeto da ação posterior. [...]

Nesta vertente positiva, como referem João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa (in “Manual de Processo Civil”, Vol. I, AAFDL, 2022, pág. 641 a 642): «Se se repropuser a questão como fundamento (e não como objeto do pedido), o juiz tem de decidir a questão nos termos do julgado estabelecido (…) se o caso julgado for favorável ao autor, isso implica que o tribunal da causa posterior tem de repetir a decisão anterior (…) se o caso julgado for favorável ao réu, o tribunal da segunda ação tem de o absolver de qualquer pedido incompatível  com a decisão anteriormente transitada (…)» [...]

Em suma, verificados os pressupostos duma situação em que se imponha o respeito pela “autoridade do caso julgado”, o Tribunal não se deve abster de decidir. Pelo contrário, deve decidir e deve fazê-lo em conformidade com a decisão anterior transitada em julgado.

No caso dos autos, tudo leva a crer que o tribunal não decidiu o pedido constante da alínea a) da petição inicial – é só essa a conclusão a retirar do despacho saneador que omite qualquer decisão condenatória ou declaratória do reconhecimento do direito – e, se o decidiu na sentença final, nomeadamente quando absolveu os R.R. “do pedido”, decidiu precisamente em sentido contrário da decisão transitada em julgado anterior, tendo em atenção o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no Proc. n.º 1626/12.5TBMTJ e, bem assim, o despacho saneador proferido nestes autos, que nessa parte, como vimos, também transitou em julgado.

Dito isto, no caso dos autos, poder-se-ia discutir se se poderia falar duma situação efetiva de “autoridade de caso julgado”, porque na verdade, na ação anterior, que correu termos sob o n.º 1626/12.5TBMTJ, tendo em atenção o teor do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que aí veio a ser produzido [...], a questão da existência duma “venda fiduciária em garantia” era, em princípio, completamente irrelevante para a improcedência do pedido de declaração de nulidade da compra e venda com fundamento na simulação absoluta desse negócio jurídico.

A procedência do pedido formulado naquela ação estava dependente, apenas e só, da prova da existência de divergência entre a vontade real e a declarada e dum acordo simulatório com vista a enganar terceiros (cfr. Art. 240.º n.º 1 do C.C.). No final de contas, a improcedência desse pedido sustentou-se na mera constatação de que as A.A. nessa ação não provaram nenhuma divergência entre a vontade real e a declarada, nem que tivesse existido qualquer acordo simulatório para enganar terceiros, como era seu ónus (cfr. Art. 342.º n.º 1 do C.C.).

Numa apreciação sumária da questão de fundo, poderíamos facilmente concluir que a configuração dessa relação jurídica como uma “venda fiduciária em garantia” nem sequer se poderia dizer como correspondente à prova duma factualidade nova suscetível de integrar uma “exceção perentória” que levaria à inevitável improcedência da ação. No fundo, a ação improcederia apenas, porque as A.A. não provaram os factos constitutivos do seu direito (cfr. Art. 342.º n.º 1, conjugado com o Art. 240.º n.º 1 do C.C.) e, isso, era quanto bastava.

No entanto, o Tribunal da Relação, ao apreciar o mérito da sentença recorrida no n.º 1626/12.5TBMTJ, sustentou que esse negócio jurídico seria de qualquer modo nulo, porque a ele estaria subjacente um contrato de mútuo usurário e uma venda abusiva e contrária à lei (imperativa). É nesse contexto que aparecem, pela primeira vez – ao que tudo indica sem que as partes sobre tal se tenham pronunciado antes –, as qualificações jurídicas relacionadas com a “venda fiduciária em garantia” e a relevância da existência dum “contrato de mútuo usurário”, nomeadamente no que se refere aos juros.

Na prática, a “venda fiduciária em garantia” acaba por funcionar como o “negócio jurídico real” efetivamente querido pelas partes outorgantes, afastada que ficou a alegada existência duma “venda simulada”.

Por seu turno, o “mútuo usurário” foi chamado à colação como causa nova de invalidade do negócio jurídico da venda da herdade da YY, por a esta estar subjacente.
Em qualquer caso, a matéria de facto alegada e provada permitia estes enquadramentos jurídicos, que foram aceitos e discutidos, precisamente nesses termos, quer pelo Tribunal da Relação, quer pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr. doc. n.º 12 junto com a petição inicial de fls. 41 verso a 61 verso), ainda que com consequências finais diversas quanto à apreciação do mérito da causa, que se prendia apenas com a apreciação a validade da compra e venda da herdade da YY.

No final, propiciou-se uma legitima discussão jurídica, permitida no quadro legal do Art. 5.º n.º 3 do C.P.C., que enlaçou as partes nos seus termos, sem que se tenha suscitado qualquer invalidade sobre as pronúncias assim feitas. [...]

Nos presentes autos, não se discute a validade da compra e venda. Pelo contrário, os A.A. pressupõem a validade de todos esses negócios jurídicos, em respeito pela decisão final, transitada em julgado, no Proc. n.º 1626/12.5TBMTJ. Mas pedem, em coerência com essa mesma decisão final, produzida pelo Supremo Tribunal de Justiça, para: «a) Ser reconhecido como venda fiduciária em garantia de um mútuo o contrato celebrado entre os AA. e a R. CBG e usurários os juros cobrados pela R. nesse contratocom a sua redução à quantia de €15.256,48, ou outra que venha a resultar da aplicação da taxa legal de 7%, a liquidar em execução de sentença».

Em bom rigor, se se entender que é devido o respeito pela autoridade do caso julgado, a decisão final que se impunha era reconhecer que a relação contratual formalizada entre os A.A. e a R. CBG, através da escritura de compra e venda de 4 de agosto de 2008 (cfr. doc. de fls. 31 verso a fls. 34), conjugada com o contrato promessa para recompra da mesma herdade, outorgado na mesma data (cfr. doc. de fls. 122 verso a fls. 124 verso), é uma “venda fiduciária em garantia”. Sendo certo que à mesma conclusão se chegaria, mesmo que se entendesse não se verificar no caso efetiva necessidade de respeito pela autoridade do caso julgado, porque os factos provados constantes dos pontos 6 a 8 e 13 a 23 na sentença recorrida são suficientes para se chegar a essa configuração jurídica.

No que se refere ao segmento seguinte da alínea a) do pedido formulado pelos A.A. na sua petição inicial – relativo ao reconhecimento de que os juros do contrato de mútuo, subjacente à compra e venda e promessa de recompra, são usurários – a sua procedência deve resultar do simples cálculo aritmético e da coerência da decisão com o exposto no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo n.º 1626/12.5TBMTJ.

De facto, a R. emprestou €265.000,00 aos A.A., através do pagamento do preço de compra da herdade da YY, mas os A.A. teriam de restituir o capital mutuado, acrescido de juros, através da recompra da herdade, pelo pagamento do preço de €375.000,00, tal como convencionado no contrato-promessa outorgado no mesmo dia da escritura de compra e venda (4 de agosto de 2008), devendo a escritura de “recompra” ser outorgada até 31 de maio de 2009 (cfr. cláusula terceira do cit. doc. a fls. 123). Portanto, o valor de recompra correspondia ao reembolso do capital mutuado, de €265.000,00, acrescido de €110.000,00, estes últimos devidos a título de juros.

Como foi reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do processo anterior, a taxa de juros não poderia exceder os juros legais (à taxa de 4% de acordo com a Portaria n.º 291/2003 de 8/4) em mais de 3%, sob pena de serem havidos por usurários (cfr. Art. 1146.º n.º 1 do C.C.). Pelo que, facilmente se constata que entre 4 de agosto de 2008 (data em que os A.A. receberam o preço/quantia mutuada) e 31 de maio de 2009 (data em que deveriam recomprar o imóvel, por força do contrato-promessa), os juros não poderiam exceder €15.246,58 (calculado no sítio: https://www.calculodejuros.pt/juros-taxa-variavel.aspx pela inserção dos seguintes dados: quantia: 265.000; taxa de juro: 7%; data de início de contagem: 4/8/2008; data de fim da contagem: 31/5/2009).

Consequentemente, o acordo nos termos do qual implicaria que os A.A. tivessem de pagar, no caso concreto, €110.000,00 a título de juros no dia 31 de maio de 2009, permite-nos concluir, sem margem para dúvida, que os juros cobrados pela R. eram usurários, devendo proceder, também nesse segmento, do pedido constante da alínea a) o pedido formulado.

Quanto ao segmento final desse pedido, em que se pretendia ver reconhecida a redução dos juros para a quantia de €15.256,48, tendo em atenção o disposto no Art. 1146.º n.º 3 do C.C., deve ser corrigido esse valor para 15.246,58, tendo em conta a data de vencimento da obrigação inicialmente estabelecida para o dia 31 de maio de 2009.

Resta ainda dizer que o pedido dos A.A., tal como formulado na petição inicial, reportava-se apenas ao cálculo dos juros até ao termo do contrato-promessa inicial outorgado em 4 de agosto de 2008. Ora, resulta da matéria de facto que depois houve uma renegociação posterior que levou à outorga de um segundo contrato-promessa, que tinha outra data de termo final. No entanto, como o pedido formulado referia-se ao cálculo dos juros até 31 de maio de 2009, a decisão de reconhecimento da usura dos juros e do cálculo da correspondente redução dos juros devidos deve respeitar os limites objetivos desse pedido (cfr. Art. 609.º n.º 1 do C.P.C.).

É neste termos que deverá proceder o pedido formulado na alínea a) da petição inicial.

*III. [Comentário] Segundo resulta dados referidos no acórdão,

-- As partes da acção anterior foram, como autores, CR e JR e, como demandados, C.B.G.- Imobiliária, S.A., e CG;

-- As partes da presente acção são, como autores, CR e MJ, e, como réus, C.B.G. – Imobiliária, S.A. e JR.

Nestas condições, apenas com recurso a uma aceitação (ainda que tácita) do caso julgado favorável da decisão proferida na anterior acção se pode falar de autoridade de caso julgado em relação a a MJ (segundo se percebe, filha de CR).

No entanto, é discutível que a qualificação do contrato e venda como uma "venda fiduciária em garantia" realizada na anterior acção pudesse, em qualquer hipótese, fundar a excepção ou a autoridade de caso julgado, dado que essa qualificação não pode ser considerada como um antecedente lógico necessário da decisão que não se pronuncia nem pela nulidade, nem pela nulidade do referido contrato.

MTS