"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/07/2024

Jurisprudência 2023 (222)

 
Apresentação de documentos;
apresentação antes da audiência final*

1. O sumário de RG 19/12/2023 (7057/18.6T8BRG-A.G1) é o seguinte:

I – Para que a petição inicial seja considerada apta, basta que nela sejam alegados, de forma substanciada, os factos essenciais, que são aqueles que permitem fundamentar o pedido à luz do enquadramento jurídico feito pelo autor – “as razões de direito que servem de fundamento à ação”, no dizer do art. 552/1, d), do CPC – e, assim, individualizar a ação.

II – Não sendo esses factos enquadráveis na previsão das normas jurídicas em que o autor estriba o pedido, nem na de quaisquer outras suscetíveis de conduzirem ao mesmo resultado, a petição inicial será inconcludente, o que terá como consequência a improcedência da ação.

III - Para aferir da legitimidade direta não relevam elementos externos ao objeto formal do processo, mas apenas a posição das partes em relação a esse objeto, tal como ele é gizado pelo autor na petição inicial.

IV – É de admitir a junção aos autos de documentos apresentados até vinte dias antes da data em que se realize a audiência final e que não sejam impertinentes para a prova dos factos que integram os temas da prova.

V – Sem prejuízo, deve ser condenada em multa a parte que apresenta documentos que, não obstante terem sido produzidos depois do articulado em que foram alegados os factos que se destinam a provar, são do seu conhecimento e estão no seu poder há mais de três anos.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"§ 116. º 6).5. Analisando a situação dos autos à luz das precedentes considerações, importa começar por dizer que permanecem controvertidos e integram os temas da prova os factos que substanciam a execução do plano de apropriação da participação da Autora no capital social da Ré EMP01..., SA. Permanecem também controvertidos os factos que substanciam o móbil de toda a atuação dos Réus – alegadamente, a obtenção dos lucros provenientes da exploração do lítio na região de ... a que a titularidade daquela quota permitirá aceder, por via indireta, através do direito de quinhoar no lucros da sociedade beneficiária da concessão.

§ 117.º Os documentos em causa, na medida em que demonstram a celebração do contrato de exploração do lítio e, bem assim, o papel que os Réus AA, BB, por si e na qualidade de gerente da Ré EMP02..., e JJ, alguns dos alegados coautores do ato ilícito, tiveram nesse processo, são idóneos, a partir do plano abstrato em que, neste momento, nos situamos, a contribuir para a formação de um juízo probatório sobre os factos referidos  no § anterior, o que permite refutar a tese da sua impertinência e, assim, justificar a sua junção aos autos.

§ 118.º A questão que se coloca a seguir prende-se com o momento em que tais documentos foram apresentados – depois da petição inicial, articulado em que, como vimos, foram alegados os factos para os quais podem ter relevo.

§ 119.º É sabido que o CPC vigente introduziu significativas alterações em sede de apresentação de prova documental, concretizadas no respetivo art. 423, com as quais se pretendeu disciplinar a tramitação processual e, no dizer de António Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa (Código de Processo Civil cit., p. 499), “contrariar uma certa tendência, que se constituíra em verdadeira estratégia processual, traduzida em protelar a junção de documentos para o decurso da audiência final.”

§ 120.º Assim, no preceito em causa começa por se definir o regime-regra, de acordo com o qual “[o]s documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes” (n.º 1). De seguida, prevê situações de exceção: - no n.º 2, permite que “[s]e não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado”; - no n.º 3, acrescenta que “[a]pós o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.”

§ 121.º O regime assim definido funciona até ao encerramento da discussão, como decorre do art. 425 (“Apresentação em momento posterior”), onde se admite que, depois “do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.

§ 122.º No caso, não tendo ainda sido indicada data para a realização da audiência final, situamo-nos no âmbito de aplicação da exceção do n.º 2, pelo que não há obstáculo temporal à junção dos documentos.

§ 123.º Afigura-se, no entanto, que deve haver lugar a multa: é que, não obstante estarem em causa documentos ulteriores à petição inicial, o que torna evidente a impossibilidade da sua apresentação com este articulado, certo é que a Autora os tem em seu poder, pelo menos, desde 19 de junho de 2019, conforme demonstra o facto de nessa data os ter para prova dos factos alegados no articulado superveniente que veio a ser rejeitado pelo despacho de 6 de fevereiro de 2020. Devia, por isso, tê-los apresentado imediatamente, com o escopo que agora tem em vista (a prova de factos alegados na petição inicial), em lugar de esperar três longos anos para o fazer, com a consequente perturbação da tramitação da causa.

§ 124.º Não ignoramos que a Autora apresentou os documentos nos dez dias subsequentes à notificação do despacho de enunciação dos temas da prova.

§ 125.º De acordo com Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 676), não havendo ou tendo sido dispensada a audiência prévia, as partes podem alterar os respetivos requerimentos probatórios no prazo geral de dez dias contado da notificação do despacho previsto no art. 596/1 do CPC. Trata-se de uma solução, obtida por analogia com a prevista no art. 598/2, que visa garantir às partes o exercício do mesmo direito que teriam se houvesse lugar ou não tivesse sido dispensada a audiência prévia.

§ 126.º Entendemos, porém, que, como salientam os mesmos Autores (ob. cit., p. 676), o art. 598 não se aplica à prova documental, uma vez que esta está sujeita a um regime próprio de apresentação (arts. 423 a 425). No mesmo sentido, Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil cit, p. 705.

§ 127.º Em resumo, o despacho recorrido deve ser revogado no sentido do deferimento da junção dos documentos apresentados pela Autora com a condenação desta no pagamento de multa, situada entre 0,5 UC e 5 UC’s (art. 27 do RCP), sendo que, no caso, tendo em conta o número de documentos apresentados e, bem assim, o hiato temporal entre o momento em que a Recorrente devia ter feito a apresentação e aquele em que a fez, temos como adequado fixar a multa em duas unidades de conta.
 

*3. [Comentário] No acórdão reconhece-se "estarem em causa documentos ulteriores à petição inicial, o que torna evidente a impossibilidade da sua apresentação com este articulado". Sendo assim, não é possível concluir, salvo melhor opinião, que a multa pode ser fundamentada no disposto no art. 423.º, n.º 2, CPC.

A RG alega que a Autora tinha os documentos em sua posse há mais de três anos, dado que -- segundo se percebe -- apresentou esses documentos com um articulado superveniente que veio a ser indeferido. Nestes termos, o fundamento para a aplicação de uma multa não poderia ser o disposto no art., 423.º,, n.º 2, CPC, mas antes a eventual a litigância de má fé dessa Demandante (art. 542.º, n.º 1, e 2, al. d), CPC). No fundo, a censura que pode ser dirigida à Autora é a de não ter voltado a apresentar os documentos logo que o articulado superveniente foi indeferido.

MTS

Bibliografia (Índices de revistas) (237)

 
 Qf
 

Qf 7 (2024)

 

25/07/2024

Legislação (235)


Direito de retenção



Limita as situações em que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca.


CPC online (21)

 
CPC online
 
-- Notas
 
-- Divulga-se a Versão (21) do CPC online;
 
-- A versão contém a primeira anotação aos art. 423.º a 451.º e actualiza a última versão divulgada.


-- Versão (21) do CPC online

-- MTS, CPC online, NP-Ab-IG; L 41/2013 (vs. 2024.07) 

-- MTS, CPC online, Art. 1.º a 129.º (vs. 2024.07) 

-- MTS, CPC online, Art. 130.º a 361.º (vs. 2024.07) 

-- MTS, CPC online, Art. 362.º a 409.º (vs. 2024.07) 

-- MTS, CPC online, Art. 410.º a 451º (vs. 2024.07)


Jurisprudência 2023 (221)

 
Advogados;
sigilo profissional
 
 
1. O sumário de RE 18/12/2023 (688/21.9T8ABF-B.E1) é o seguinte:

I. O dever de segredo consagrado no artigo 92.º do EOA só abrange aqueles factos cuja revelação viole a relação de confiança estabelecida entre o cliente e o advogado a quem os confiou, sendo de reconhecer um interesse objectivo e fundado na sua reserva por parte daquele.

II. Deste modo, o dever de segredo consagrado na alínea c) do n.º 1 do artigo 92.º não abrangerá todos os factos “referentes a assuntos profissionais comunicados por colega ao qual esteja associado ou preste colaboração”, mas apenas os sigilosos, com o sentido apontado.

III. Identicamente, nem tudo o que se discute no âmbito de negociações visando uma composição extrajudicial do litígio se encontra coberto pelo dever de sigilo imposto no preceito em referência, incidindo a proibição de revelação apenas sobre “aqueles [factos] que tenham vindo ao seu [do advogado] conhecimento em situação tal que, pela relação de confiança criada com o respectivo cliente, seja indesculpável deontologicamente a sua revelação.”

IV. O artigo 113.º do EOA confere uma protecção reforçada às comunicações que os advogados entre si hajam mantido, mas não estabelece uma proibição genérica de revelação ou de junção a processos de correspondência trocada entre advogados em representação dos seus mandantes, só integrando a previsão do preceito aquela em relação à qual o seu remetente tenha, de forma clara, expressado a sua intenção de a cobrir com o manto da confidencialidade (cfr. o n.º 1), sendo ainda necessário que contenha informação sigilosa, com o sentido que se deixou definido.

V. Exigindo a lei que o advogado exprima claramente a intenção de sujeitar as comunicações ao regime especialmente protegido de confidencialidade consagrado no preceito em análise, não preenche esse pressuposto a simples referência no “template” do mail ao conteúdo confidencial da comunicação”.

VI. Tendo sido junta aos autos pela contraparte a correspondência trocada entre advogados, nas quais a recorrente narra uma versão dos factos coincidente com a que verteu na contestação, dando nota de que o seu cliente declina qualquer responsabilidade pelo acidente sofrido pelo autor, ainda que a dado momento tivesse mostrado disponibilidade para eventual acordo, visando evitar o litígio judicial, nada é revelado que tivesse objectivamente interesse em manter em segredo, pelo que tal junção não consubstancia violação do dever de segredo.
 
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Nos termos do 92.º do EOA o advogado não pode revelar, deles devendo guardar segredo, todos os factos cujo conhecimento lhe advém “do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”, designadamente, e para o que aqui releva, “factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração”, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 92.º, abrangendo ainda os documentos que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo (cfr. o n.º 3 do preceito).
 
Nos termos do n.º 4 do preceito o advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional quando tal se revele absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mas carece para tal da prévia autorização do presidente do conselho regional respectivo, com recurso para o Bastonário, sendo que nos termos do n.º 5 os actos praticados pelo advogado com violação do segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
 
Nos termos do artigo 113.º do diploma em referência, esclarecedoramente epigrafado de “correspondência entre advogados e ente estes e solicitadores”, as comunicações confidenciais – nos termos do n.º 1 aquelas em relação às quais o advogado tenha exprimido, de forma clara, a intenção de lhe conferir essa natureza – não podem, em qualquer caso, constituir meio de prova, não lhe sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 92.º [---]. Por outras palavras, as comunicações que recaiam na previsão do artigo 113.º ficam sujeitas a um regime de proibição absoluta de levantamento do sigilo, sendo portanto um meio de prova absolutamente proibido.
 
Retornando ao caso dos autos, importa começar por esclarecer que o agora referido artigo 113.º que, como dele resulta, confere uma protecção reforçada às comunicações que os advogados entre si hajam mantido, não estabelece uma proibição genérica de revelação ou de junção a processos de correspondência trocada entre advogados em representação dos seus mandantes, só integrando a previsão do preceito aquela em relação à qual o seu remetente tenha, de forma clara, expressado a sua intenção de a cobrir com o manto da confidencialidade (cfr. o n.º 1), sendo ainda necessário que contenha informação sigilosa.
 
Conforme entendimento persistentemente defendido pelos Conselhos Regionais, aqui se seguindo de perto o parecer n.º 12/PP/2022-C, que se pronunciou sobre uma troca de emails com conteúdo similar àqueles que aqui nos ocupam, e com o qual concordamos, se “quanto aos factos sigilosos de que um Advogado tenha conhecimento direta ou indiretamente, no exercício das suas funções, ou por causa delas, rege a regra da absoluta confidencialidade”, “a expressão «factos sigilosos» não é inocente, pois que haverá sempre que efectuar uma interpretação restritiva da norma do artigo 92.º, n.º 1, do EOA. É pacífico, nomeadamente na jurisprudência da Ordem dos Advogados, que só quando estiver em causa um facto que obrigue a reserva é que o advogado estará sujeito ao dever de segredo, já que nem tudo que é dado a conhecer àquele terá esse carácter de confidência. Só os factos que, pelo seu teor, a fonte, as próprias circunstâncias do conhecimento, se consideram imbuídos numa matriz de confiança, é que integram o conceito de «factos sigilosos»”.
 
Deste modo, e conforme se refere no mesmo parecer, “apenas está sujeita a sigilo profissional a correspondência trocada entre mandatários quando se verifique que do seu conteúdo, tendo em conta a relação de confiança existente entre as partes quanto à reserva dos factos transmitidos exista um interesse objectivo em que esses factos se mantivessem reservados” (é nosso o destaque em itálico).
 
Depois, exige a lei que o advogado exprima claramente a intenção de sujeitar as comunicações ao regime especialmente protegido de confidencialidade consagrado no preceito em análise, não sendo bastante para tal, como se fez notar no mencionado parecer “(…) A simples referência no “template” do mail ao conteúdo confidencial da comunicação”.
 
Revertendo ao caso dos autos, afigura-se que nas comunicações aqui em causa, cujo conteúdo se deixou, no essencial, reflectido nos factos provados, nada é revelado que a agora apelante tivesse objectivamente interesse em manter em segredo, e tanto assim que a sua versão dos factos, tal como resulta das aludidas comunicações, coincide com aquela que se encontra plasmado na contestação que apresentou (cfr. o artigo 17.º, no qual remete para os artigos 10.º a 79.º da contestação apresentada pela “…”). Acresce que das comunicações foi dado conhecimento pela própria recorrente, não só a pessoas que a apelada identificou como fazendo parte do CA da primeira, como a outras, cuja relação com a apelante se desconhece qual seja, contrariando a intenção de confidencialidade que agora pretende ter manifestado.
 
Por último, a mera aposição genérica, em letras miúdas, de uma menção de confidencialidade, fora do corpo da mensagem transmitida pelo advogado à contraparte e abaixo da assinatura do declarante, fazendo uso de um endereço electrónico que nem sequer é o oficial, atribuído pela Ordem, não satisfaz a exigência legal de que a intenção de atribuir carácter confidencial à correspondência trocada seja declarada de forma expressa e clara, conforme a formula o artigo 113.º, no seu n.º 1[8], impondo-se concluir que não estamos perante correspondência que beneficie da protecção reforçada consagrada neste preceito.
 
Remanesce, contudo, a questão de saber se ocorreu violação do dever de segredo, consagrado genericamente, conforme se referiu já, no artigo 92.º, aqui com a possibilidade de ser obtida a dispensa nos termos do n.º 4. A resposta é, também aqui, negativa, conforme se tinha já antecipado, atendendo a que a natureza sigilosa da informação revelada na correspondência é, como vimos, também requisito da aplicação do artigo 113.º. Reforcemos, no entanto, os fundamentos aduzidos em abono do entendimento expresso.
 
Resulta do conteúdo das comunicações trocadas que as partes, representadas pelas Ilustres advogadas (…) e (…), aludiram efectivamente a um eventual acordo extra judicial, sendo que o seu teor chegou ao conhecimento da Ilustre Mandatária dos AA neste processo, Dr.ª (…), através daquela colega. E se o dever de segredo consagrado na alínea c) do n.º 1 do artigo 92.º não abrangerá todos os factos “referentes a assuntos profissionais comunicados por colega ao qual esteja associado ou preste colaboração”, porque nem todos eles serão sigilosos, com o sentido antes mencionado, especial atenção merecerão naturalmente aqueles que tenham vindo ao conhecimento do colega durante negociações para acordo, ainda que malogradas (cfr. alíneas e) e f) [---]
 
Começa por esclarecer-se que, conforme esclarece o STJ no acórdão de 5 de Maio de 2022 (proferido no processo n.º 126/20.4T8OAZ-A.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt) “(…) nem tudo o que se passa num processo negocial auto-compositivo se encontra coberto pelo sigilo imposto no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados”. Desde logo, e como ali também se refere[10], nada impede a invocação em juízo da existência anterior de negociações malogradas, abrangendo o dever de sigilo os factos que o advogado tivesse conhecimento no âmbito dessas negociações. E se, como também se adverte, a “referência a “factos” nas alíneas e) e f) do artigo 2.º do Estatuto da Ordem dos Advogados é feita com um sentido amplo, não abrangendo exclusivamente os que correspondem a declarações de ciência, estando também cobertos pelo dever de sigilo as denominadas declarações de vontade emitidas naquele ambiente conciliatório”, certo é que, em nosso entender, a proibição de revelação incidirá apenas sobre “aqueles que tenham vindo ao seu [do advogado] conhecimento em situação tal que, pela relação de confiança criada com o respectivo cliente, seja indesculpável deontologicamente a sua revelação” (da decisão singular proferida 24/9/2018, no processo n.º 868/17.1T8PRT-B.P1, ainda acessível em www.dgsi.pt).
 
Neste mesmo sentido, decidiu este TRE, em acórdão de 8 de Junho de 2021 (processo n.º 1400/19.8T9EVR-A.E1, acessível em ww.dgsi.pt) que a expressão “negociações” empregue nas alíneas e) e f), do artigo 92.º do EOA (…), deve ser interpretada no sentido de haver uma “orientação para um compromisso”, em que cada uma das partes tem a possibilidade de expor à outra as suas preocupações e a sua ordem de prioridades e, correlativamente, apresenta-se disposta a abdicar de determinadas condições para viabilizar um acordo ou obter concessões.
 
Assim, estará sujeita a sigilo profissional do advogado, a correspondência trocada entre mandatários, entre o mandatário e o respetivo cliente ou a parte contrária ou o respetivo representante, quando se reportem aos termos de negociações havidas ou em que hajam sido revelados factos ao Advogado ou este deles tomou conhecimento, que pela sua natureza seja de presumir que quem os confiou ou deu a conhecer ao Advogado, tinha um interesse «objetivamente fundado», em que se mantivessem reservados e não fossem revelados”.
 
Devendo a referência a factos constante do artigo 92.º ser interpretada nos termos que se deixaram explanados, incidindo apenas – e ainda que mencionados no contexto de negociações que se malograram – sobre aqueles cuja revelação viole a relação de confiança estabelecida entre o cliente e o advogado a quem os confiou, sendo de reconhecer um interesse objectivo e fundado na sua reserva – critério operativo a adoptar –, não se vê que do conteúdo das comunicações trocadas entre as Ilustres Mandatárias e que foram juntas aos autos constem quaisquer factos sigilosos, porquanto nelas a agora apelante se limita a declarar e reafirmar, pela mão da sua advogada, que não aceita qualquer responsabilidade pelos danos sofridos pelo autora (…), refutando a versão dos factos que por este foi fornecida. E ainda que a dada altura tenha manifestado abertura para negociações, a fim de evitar um litígio custoso para ambas as partes, pedindo ao autor para apresentar uma proposta (cfr. email referido no ponto 9), em parte alguma se mostrou disponível para aceitar a mesma ou contrariou a versão antes apresentada a qual, de resto, trouxe aos autos na sua contestação.
 
Em conclusão, não estando em causa informação sigilosa, a junção como meio de prova da correspondência electrónica trocada não constitui infracção ao disposto no n.º 5 do artigo 92.º, impondo-se confirmar, ainda que com fundamentação não inteiramente coincidente, a decisão recorrida."

[MTS]
 

24/07/2024

Jurisprudência 2023 (220)

 
Direito à prova;
prova ilícita


1. O sumário de RG 19/12/2023 (3628/22.4T8VCT-A.G1) é o seguinte:

I - O direito à prova não é absoluto nem ilimitado, antes contém limitações de natureza intrínseca e extrínseca.

II - Numa ação em que está em causa a ilisão da presunção estabelecida no art. 1724º do Cód. Civil, não é de admitir a junção aos autos, pelo réu, de duas missivas endereçadas à autora pelo seu pai, sem o consentimento do remetente e da destinatária, se tais missivas, além de revestirem um conteúdo circunscrito ao âmbito familiar, filial e privado – abrangido, portanto, pelo direito à reserva da intimidade da vida privada e do sigilo da correspondência (arts. 26º, n.º 1 e 34º da CRP) – não se revelarem o único meio tendente a provar a facticidade controvertida, nem se afigurarem de valor probatório fundamental para a prova dos factos controvertidos.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A autora, ora recorrida, na ação declarativa que instaurou pretende ver reconhecida: i) a titularidade a seu favor das participações sociais de duas sociedades comerciais que identifica; ii) que a casa de morada de família foi adquirida na proporção de um terço, com dinheiro próprio da autora, devendo por isso ser ilidida a presunção de meação da titularidade e ser declarado que a autora é proprietária de dois terços do imóvel, descrito na Conservatória do Registo Predial ... ...43/...; iii) que o imóvel correspondente ao prédio rústico, composto por bouça de mato e pinheiros, sito no lugar ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...36/..., é bem próprio da autora, procedendo-se ao registo respetivo; iv) que os veículos automóveis foram adquiridos na constância do casamento, que por isso são bens comuns.

Através da referida ação da qual emerge o presente recurso pretende a autora demonstrar que as descritas verbas descritas [sic] – com exceção da verba n.º 1 e 2 da reclamação (veículos), que é comum –, são bens próprios da autora, propondo-se para tanto ilidir a presunção estabelecida no art. 1724º do Cód. Civil.

Entre outros meios de prova indicados, a autora juntou aos autos, com a sua petição inicial, uma declaração, datada de 30 de junho de 2020, subscrita pelos pais, na qual estes declaram os bens que doaram às suas filhas durante a vigência dos seus casamentos (cfr. documento de fls. 35 e 36 do recurso).

O réu, no sentido de contrariar a veracidade do ter [sic] da aludida declaração emitida pelos pais da autora, juntou com a contestação, entre o mais, duas missivas endereçadas à autora pelo pai desta (intitulados documentos nºs. ... e ...0), sendo uma delas datada de .../... de 2007 e uma outra, incompleta, da qual não se evidencia a data (cujas cópias constam de fls. 73 e 74 do recurso).

Opôs-se a autora à junção das duas missivas, alegando tratar-se de correspondência pessoal da demandante e que a conduta do réu é violadora dos princípios de privacidade de correspondência e dos direitos da autora.

Esta posição veio a ser acolhida na decisão recorrida, tendo a Mm.ª Juíza “a quo” considerado «estar em causa correspondência dirigida a uma das partes e que foi junta aos autos pela contraparte, estando em causa a reserva da correspondência e da intimidade da vida privada», pelo que determinou o desentranhamento dos documentos em causa e a sua devolução ao réu apresentante.

Do assim decidido discorda o Réu e daí a dedução do presente recurso.

Urge desde logo questionar: estaremos perante uma situação de “prova ilícita em si mesma”, ou seja, aquela cuja utilização, independentemente do modo de obtenção, suscita problemas de ilicitude?

Como já vimos, no caso sub judice estão em causa duas missivas (cartas) endereçadas à autora pelo seu pai.

Desconhece-se como tais missivas entraram na posse do réu, alegando este que a correspondência em causa foi do seu conhecimento directo e pessoal, ao passo que a autora indica que o réu se apropriou dessa correspondência pessoal recebida dos seus pais, sem o seu consentimento.

Tais missivas não foram endereçadas com a expressa menção de confidencialidade – tendo em consideração o que delas resulta.

Contudo, como já vimos, a natureza confidencial da carta não tem necessariamente de resultar de forma expressa, podendo essa declaração ser tácita, nos termos do disposto no art. 217º, n.º 1, do CC.

A favor da natureza confidencial das missivas sobreleva desde logo o tom intimista, pessoal e privado que às mesmas subjaz, sendo o doc. ... encabeçado como se de um “desabafo” do remetente se tratasse pelo qual pede desculpa, em que o pai da autora, dirigindo-se à autora, tece variadas considerações sobre o modo de vida do casal, revelando angústias e inquietações e não deixando de apelar aos afectos/coração. Trata-se de uma missiva que tem subjacente o relacionamento afetivo entre o progenitor e a descendente, em que aquele, no fundo, em jeito de desabafo, enuncia preocupações que lhe vão na alma.

A segunda missiva (doc. ...0) tem também um caráter intimista e pessoal, aludindo a características e/ou atributos que o remetente atribui à autora – “sempre soube escolher os amigos (…)”; “é amiga fiel do seu marido (…)” –, à família que a autora e o então marido constituíram – desse amor “nasceram dois filhos que são para eles e para os avós a grande esperança (…)” –, bem como ao facto do casal ter adquirido casa em local onde o remetente sempre sonhou para eles e de a decoração interior da casa traduzir «um conjunto harmonioso de bom gosto e tranquilidade» e que “mais parece magia”.

Diversamente do propugnado pelo recorrente, as duas missivas não têm como destinatários ambos os membros do então casal formado pela autora e réu, mas tão só a autora, filha do remetente. Isto não obstante no seu teor se faça menção ao Réu, enquanto membro do casal [“tu e o BB (…)”; “A DD é amiga fiel do seu marido (…)”; “Do Amor da DD e do BB (…)”].

Estão em causa, por conseguinte, duas cartas dirigidas pelo pai à filha cujo conteúdo se circunscreve ao âmbito familiar, filial e privado.

Tendemos, assim, a considerar estarem em causa missivas de natureza confidencial.

Além de que versam sobre a reserva da intimidade da vida privada da autora.

Por outro lado, ao redigi-las, tendo em conta o seu teor e a sua natureza, nomeadamente as angústias, os receios, as emoções e os sentimentos neles expressos, pressupondo um animus confidendi entre o remetente e a destinatária, não é crível que o seu autor tivesse em mente que as mesmas pudessem ser divulgadas ou exorbitar do âmbito pessoal da sua destinatária. Essa convicção sai reforçada se tivermos em consideração que as referidas missivas mais não correspondem do que a um “desabafo” do remetente – como numa delas é expressamente referido – e os desabafos, para mais íntimos, por regra, estão reservados a pessoas que mereçam extrema confiança.

Releva também o facto de as missivas juntas pelo réu serem da autoria de alguém estranho à ação, no caso o pai da autora (então sogro do réu), e não consta que o réu tenha cuidado de obter a anuência ou autorização do autor das mesmas para essa junção, tão pouco da destinatária de tais cartas.

Estando a destinatária (autora) vinculada ao segredo da correspondência, por maioria de razão tal sigilo estende-se a um terceiro, como seja o caso do réu.

Nesta ponderação sobreleva também o facto de as referidas missivas não se revelarem o único meio tendente a provar a facticidade controvertida.

Não está igualmente em causa a aquisição de um meio de prova sobre factos que dificilmente poderiam ser provados por outra forma.

Tão pouco os documentos cuja junção se pretende se afiguram de valor probatório fundamental para a prova dos factos controvertidos e, consequentemente, para o desfecho da acção.

Assim, tal divulgação, por desnecessária, constitui uma abusiva intromissão da vida privada e a violação do direito à correspondência de terceiros (cfr. arts. 75º do CCivil e 26º da Constituição).
Estamos, portanto, neste caso, perante uma situação de utilização injustificada da prova.

Conclui-se desta forma que, para além de se configurar no caso uma abusiva intromissão na vida privada e de violação do sigilo da correspondência, à luz da valoração da prova em causa e da ponderação de interesses não se justifica a junção aos autos dos documentos nºs. ... e ...0 apresentados com a contestação."

[MTS]

23/07/2024

Jurisprudência 2023 (219)

Servidão de passagem;
qualificação jurídica; decisão-surpresa


1. O sumário de RC 21/11/2023 (1416/22.7T8SRE.C1) é o seguinte:

I – O reconhecimento da existência de uma servidão de passagem com base em usucapião, quando tinha sido pedido o reconhecimento da mesma servidão de passagem com base na destinação de pai de família, não constitui condenação em objecto diverso do peticionado.

II – O reconhecimento da existência de uma servidão de passagem com base em usucapião, quando tinha sido pedido o reconhecimento da mesma servidão de passagem com base na destinação de pai de família, sem prévia audição das partes sobre a nova fundamentação jurídica, não anteriormente discutida no processo, não sendo expectável a sua utilização, constitui uma «decisão-surpresa», proferida em violação do art. 5º n.º 3 do CPC e nula por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º n.º1 al. d), 2ª parte, do CPC.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

7. No caso, entende-se que existe uma decisão-surpresa. Com efeito, a questão da aquisição por usucapião reconduz-se à invocação de novas regras jurídicas que, ajustadas aos factos já alegados (não há alteração de factos, pelo que o problema aqui em discussão não supera os limites da «questão de direito»), permitem o reconhecimento da existência da servidão de passagem. Essas novas regras (ou o instituto jurídico em causa) surgem pela primeira vez na sentença, sem terem sido objecto de discussão prévia a essa sentença, como deriva do teor dos articulados e das posições que foram sendo assumidas no processo pelas partes, e sem que às partes tenha sido dada a possibilidade expressa de a discutir. E surge de forma surpreendente, no sentido de não expectável, porque, a partir da posição da A. (e pese embora esta tenha alegado factos possessórios), não era antecipável ou expectável que a decisão se desviasse do fundamento jurídico invocado. A partir apenas da referência aos factos possessórios na petição inicial, e tendo em conta o estreitamento da alegação jurídica da A. (sempre direcionada em sentido diverso ao da usucapião), a relevância jurídica de tais factos não parece antecipável. Ponto onde a circunstância de a A. ter repetido esse fundamento no próprio pedido (indevidamente mas de forma que condiciona o destinatário do acto postulativo [---]) constitui dado que tende a condicionar e consolidar a perspectiva das partes (sobretudo dos RR.) sobre o assento jurídico da pretensão, e tende dessa forma a revelar o carácter inusitado e não antecipável (não previsível) da inovação jurídica empreendida.

Existe assim uma inovação jurídica tardia, lícita em si face às regras processuais (citado art. 5º n.º3 do CPC ) mas que não parece ajustar-se ao respeito pelo contraditório (ou ao menos pela audição) imposto pelo também referido art. 3º n.º3 do CPC – mesmo do ponto de vista da concepção mais restritiva da decisão-surpresa, e que se julga mais ajustada [sendo que também não ocorrem outros limites externos por vezes invocados contra o exercício do contraditório, a saber, ter a audição já sido assegurada de outra forma, ou não poder essa audição influir na decisão [---]].

8. Cabe ainda fixar o enquadramento jurídico do vício, questão sobre a qual são possíveis essencialmente três posições [---]. Uma primeira, tende a evidenciar o vício processual e a sujeitá-lo às regras da patologia do próprio procedimento: existiria a omissão de um acto legalmente devido (que podia influir na decisão da causa), que a decisão-surpresa permite revelar mas que existiria antes e com independência dela, sujeitando-se assim ao regime do art. 195º n.º1 do CPC, devendo ser o vício invocado no prazo geral (10 dias) e nos termos do art. 199º n.º1 do CPC. Uma segunda posição continua a partir da afirmação da existência de um vício processual prévio à decisão, nos termos do citado art. 195º n.º1 do CPC, mas considera existir uma conexão directa entre o vício e a decisão (é esta que desencadeia o vício) de modo que aquela nulidade fica coberta ou sancionada pela decisão (mormente pela existência de um «julgamento implícito») e assim deverá ser invocada no recurso da decisão e no prazo de interposição deste recurso. Uma terceira posição considera que o vício só surge com a decisão (ou porque esta está viciada, ou porque consome o anterior vício) e, sendo esta que está viciada (por excesso de pronúncia, conhecendo questão que, sem o contraditório prévio, não poderia conhecer), fica subordinada ao regime do art. 615º n.º1 al. d) do CPC. O desvalor existente radicaria no acto (a decisão), não na omissão (da audição) [---] [apenas a título exemplificativo, para dar conta da dissensão existente, a favor da primeira solução podem ver-se Acs. do TRP proc. 14227/19.8T8PRT.P1, do TRC proc. 3550/17.6T8CBR.C1 ou 1250/20.9T8VIS.C1ou do TRL 286/09.5T2AMD-B.L1-1; também J. L. de Freitas e I. Alexandre parecem inclinar-se neste sentido (CPC Anotado, Vol. 1º, Almedina 2021, pág. 32 [Embora no vol 2º já pareçam admitir outra solução (pág. 739).]); a favor da segunda, Ac. do STJ proc. 5384/15.3T8GMR.G1.S1, do TRG proc. 533/04.0TMBRG-K.G1 ou 1299/17.9T8CHV-A.G1 ou do TRP 1378/14.4TBMAI.P1 ou do TRL 2898/17.4T8CSC-B.L1-7, e ainda R. Pinto, Manual do Recurso Civil, vol. I, AAFDL 2020, pág. 91, no que à decisão-surpresa atinente à qualificação jurídica, como ocorre no caso, respeita; a favor da terceira, e para além dos escritos do Prof. T. de Sousa (disponíveis no blog do IPCC, incluindo no CPC anotado que ali disponibiliza), Ac. do STJ 1937/15.8T8BCL.S1, 2019/18.6T8FNC.L1.S1, 392/14.4T8CHV-A.G1.S1, 1129/09.5TBVRL-H.G1.S1 ou 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1, ou do TRL 6141/17.8T8ALM.L1.L1-6 (todos os Ac. em 3w.dgsi.pt), ou A. Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina 2022, pág. 25 e ss., e A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, CPC Anotado, Almedina 2023, pág. 792].

9. Entende-se, neste momento, que esta última solução é a que melhor corresponde ao sentido do vício diagnosticado. A ênfase estará não na omissão prévia mas na impropriedade da decisão ao conhecer do que, nas condições em que é editada, lhe estava vedado. Será um vício genético, que surge com a decisão e se esgota nela. Com efeito, na omissão típica, o acto omitido é revelado pelo acto seguinte, dado aquele acto omitido constituir acto legalmente imposto: a mera prática do acto seguinte demonstra que faltou um momento prévio na lógica legal do procedimento (enquanto sequência de actos). Em situações como a vertente, não é a decisão, como acto do processo, que revela a omissão, mas o conteúdo da decisão (ou melhor, um certo conteúdo da decisão) que revela o desrespeito pelas regras. Neste sentido, o desvalor insere-se na própria decisão dado o concreto conteúdo adoptado. Ou seja, como a audição das partes neste caso não constitui um acto típico do procedimento (ele é meramente eventual), não é tanto a sua falta como a decisão indevida que suporta o vício. Por outro lado, o vício só se torna patente pelo conteúdo da decisão, que o constitui. Nesse sentido, a decisão conforma o vício, por ser surpreendente para as partes, não por ter prescindido do contraditório. O exercício do contraditório exclui o carácter surpreendente da decisão, e assim o vício que a afecta.

A afirmação de que é a própria lei a impor o conhecimento oficioso da questão; que não é o conteúdo deste conhecimento oficioso que se questiona no recurso; e que a decisão, considerada nos seus elementos estritamente formais, é irrepreensível, corresponde a final a uma questão de perspectiva. Porque se se considerar que «o perfil de garantia» do art. 3º n.º3 do CPC vincula o juiz e integra o âmbito da decisão (delimitando a sua extensão sem contraditório), então já não se pode falar da imposição do conhecimento oficioso per se (porque esta imposição não é absoluta em si), e o conteúdo da decisão não é irrepreensível.

Admite-se que a solução não é inteiramente à prova de reparo. O desacerto entre as várias soluções propostas e a divisão da jurisprudência e da doutrina comprova-o. E bem assim a forma como L. Correia de Mendonça, excluindo todas as soluções referidas, propõe um quarto caminho que reconduz a uma nulidade extraformal da sentença por violação do contraditório enquanto direito processual fundamental – que se reputa desnecessária, dada a solução formal encontrada, sem necessidade de novas vias dogmáticas. Mas entende-se que esta é a solução que melhor se ajusta aos termos da questão.

Tal solução não acolhe o fundamento legal invocado pelo recorrente mas pode ser aqui conhecida, ao abrigo do citado art. 5º n.º3 do CPC – e nesta sede sem violação do contraditório porque, de um lado, os recorrentes colocaram a questão logo no âmbito da nulidade da sentença (e não da omissão prévia) e, de outro lado, a extensão e actualidade da controvérsia (e a sua visibilidade) tornava inevitável a discussão da questão e claramente antecipável a possibilidade de ocorrer diferente enquadramento jurídico.

10. Resta apreciar os efeitos da nulidade diagnosticada.

Pese embora o art. 665º n.º1 do CPC contenha uma regra de substituição, impondo ao tribunal de recurso avaliar o mérito da apelação em caso de verificação de nulidade da sentença, a solução não pode ser uniforme, havendo que avaliar os contornos do caso, pois o objecto da nulidade ou o seu fundamento podem impor solução diversa. Aquele regime pressupõe que o vício só afecta a decisão e que, afirmado tal vício, se retoma o procedimento corrente, com o conhecimento do mérito [---], o que nem sempre se verifica. E é o que se entende ocorrer com a nulidade derivada da decisão-surpresa, ao menos nos casos como o vertente em que o recorrente prescindiu de discutir os contornos jurídicos do caso no recurso (impugnando apenas, de forma que disse ser subsidiária, certo facto provado), pois prosseguir com o conhecimento do mérito equivaleria a manter a omissão do exercício do contraditório, mostrando-se tal incoerente com o vício encontrado: censurando-se o acto por não ser precedido de contraditório, prossegue-se na avaliação continuando a desse contraditório se prescindir. De certo modo, o vencedor continuava vencido. Ora, «não sendo de exigir à parte interessada que alegue as concretas deduções defensivas que teria utilizado se o acto omitido (de actuação do contraditório) tivesse sido praticado e que se tivessem sido devidamente levadas em conta pelo juiz teriam podido razoavelmente conduzir a uma decisão diversa daquela que foi realmente tomada», nem o tendo feito os RR. no seu recurso como se disse, tem que se lhes garantir a possibilidade de o fazer no momento processual adequado para assim eliminar o juízo negativo oposto ao procedimento adoptado.

A única forma de recuperar a regularidade processual e material consiste em manifestar a nulidade da sentença, sem substituição, impondo-se o cumprimento do regime do art. 3º n.º3 do CPC antes de nova decisão de mérito. É a própria natureza e fundamento do vício diagnosticado que impõe esta solução."

[MTS]