Acrescentam que, fê-lo sem a observância dos formalismos legais, violando o princípio do contraditório.
Vejamos, então, se a sentença sob recurso é nula.
As causas de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciadas no artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, onde se estabelece que é nula a sentença:
- Quando não contenha a assinatura do juiz (al. a)).
- Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al. b)).
- Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (al. c)).
- Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. d)).
- Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (al. e)).
No caso vertente, na motivação da decisão sobre a matéria de facto o Tribunal a quo reporta-se à utilização da ferramenta informática Google Earth. Todavia, nenhuma das partes requereu a realização da referida diligência probatória, sendo, ainda, certo que também nenhuma das partes teve oportunidade de verificar como o tribunal a quo a utilizou, bem como de contraditar o resultado da diligência.
De facto, na sentença apelada, sob o título “Motivação da Decisão sobre a Matéria de facto”, o Tribunal a quo consignou, designadamente e a este propósito, o que segue:
“Os factos constantes da matéria dada como provada e não provada resultam dos articulados juntos aos autos, tendo sido retirado tudo quanto seja inútil para a decisão da causa, conclusivo, juízos de valor, considerações de direito ou repetido.
Para fundar a sua convicção, o Tribunal atendeu à prova documental junta aos autos, conjugada com a prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento, assim como os depoimentos de parte de Réus e Autora.
A deslocação ao local foi ainda essencial para verificar a configuração actual dos prédios que, segundo os depoimentos prestados e as imagens do Google Earth, se mantem idêntica nos últimos vinte anos. (…)
Por todo o exposto, conclui-se que, ainda em vida de QQ, este construiu a sua pocilga no prédio ...10 e no prédio ...11, ocupando sensivelmente e sem prejuízo de melhor levantamento topográfico, cerca de 500m2(1) do prédio ...11:
(1) Medida retirada utilizando as ferramentas disponíveis no Google Earth Pro. (…)
Pelos fundamentos já acima descritos - designadamente, pelo facto de ser consensual que foi QQ que construiu a pocilga, vendendo-a posteriormente ao Réu e que, ao construí-la ocupou parte dos prédios ...11 e ...10, sem nunca, no entanto, fazer qualquer referência ao prédio ...11 nas escrituras celebradas a 27 de Setembro de 1991 – deu-se o facto 16) como provado.
As áreas indicadas nesse artigo resultam da utilização das ferramentas do Google Earth, tendo por referência os 20 a 25 metros de largura do prédio ...12 (que fica a norte dos prédios ...11 e ...37) que, em tempos, pertenceu aos pais de QQ e foi deixado a DD. (…).”
Assim, pese embora o Tribunal a quo não tenha devidamente esclarecido as circunstâncias em que recorreu à referida ferramenta informática e as medições que em concreto realizou, do inciso citado resulta que a referida ferramenta foi usada para observar o local e proceder a medições.
Ou seja, o Tribunal a quo, oficiosamente, socorreu-se da ferramenta informática Google Earth para dar como provadas as áreas do prédio ...11, em concreto, que o mesmo foi «absorvido pelo prédio da Autora (…) em cerca de 560m2) e do Réu (…) em cerca de 500m2» [facto provado 16)].
Fê-lo, porém, sem a observância dos formalismos legais que, nestas circunstâncias, se impõem.
Ora, tendo em consideração que a cibernavegação (medição de áreas), no caso em concreto, foi realizada oficiosamente e sem qualquer notificação às partes de que iria servir como meio de prova, ficou vedada às mesmas a intervenção no acto de produção desta prova.
De resto, resulta das regras da experiência comum, que as medições realizadas na aplicação Google Earth é superficial e sem o devido rigor, sendo impossível determinar, com certeza, os limites e extremas dos terrenos e, consequentemente, a área dos mesmos, existindo para o efeito os levantamentos topográficos.
Além disso, os Apelantes não tiveram acesso aos limites utilizados pela Sr.ª Juiz a quo para advir àquelas áreas, dado que a suposta imagem (ou imagens) não foram juntas aos autos, sabendo-se, apenas, a conclusão retirada pelo Tribunal a quo, sendo, ainda, certo que está em causa a área do prédio objecto do litígio e não um qualquer facto acessório.
Ora, o recurso às referidas ferramentas, visando observar locais e efectuar medições é susceptível de ser qualificado como uma modalidade de prova por inspecção judicial, sujeita, por isso, à disciplina dos artigos 439º e segs. do Código de Processo Civil, bem como às regras gerais do direito probatório formal, previstas nos artigos 411º e segs. do referido diploma, máxime o consagrado no artigo 415.º do referido código [Cf. sobre esta matéria o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-02-2023 (Luís Pires de Sousa), processo 400/19.2T8CSC.L1-7, consultável in www.dgsi.pt].
Assim, ao actuar de tal modo, a Sra. Juiz a quo recorreu ao meio de prova inspecção na modalidade de cibernavegação, o qual não prescinde da observância dos princípios processuais que presidem à produção de prova, a começar pelo princípio da audiência contraditória, consagrado no artigo 415º do Código de Processo Civil.
De facto, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas (nº 1 do artigo 415º) e, tratando-se de prova constituenda (como é o caso), a parte é notificada para todos os actos de preparação e produção da prova, sendo também admitida a intervir nesses actos nos termos da lei (nº 2 do artigo 415º).
De resto, a observância do princípio do contraditório na produção da prova «destina-se a permitir que à produção de prova por uma das partes a outra possa responder com uma contraprova (artigo 346º do Código Civil) ou com prova do contrário (artigo 347º do Código Civil)» [Cf. Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, 2022, pág. 515.].
No caso vertente, sendo a cibernavegação resultado da actuação oficiosa da Sra. Juiz a quo (artigo 411º), deve na mesma ser garantida a intervenção de ambas as partes na produção da prova e a apreciação dos elementos recolhidos deve ser precedida do contraditório [Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, pág. 528.].
Destarte, a sentença em crise utilizou a ferramenta Google Earth em violação do disposto nos artigos 415.º, 491.º e 493.º do Código de Processo Civil.
E fazendo-o, há quem defenda que a omissão de formalidade essencial seguida da prolação de sentença configura uma nulidade processual, nos termos do disposto nos artigos 195º e segs. do Código de Processo Civil e não uma nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, al. d) do mesmo diploma [Cf. entre outros, os acórdãos do TRL de 12-03-2019, proc. 21183/16.2T8LSB.L1; TRL de 04-06-2019, proc. 214/16.1T8MFR.L1 e TRL de 08-10-2019, proc. 10371/18.7T8LSB.L1 consultáveis in www.dgsi.pt.]
Ancorava-se esse entendimento na consideração de que a génese da nulidade se situava a montante da prolação da sentença e bem assim na circunstância de o regime da nulidade da sentença não prever a possibilidade de o processo retroceder a fase anterior à da prolação da decisão final (v.g. à audiência de julgamento, à audiência prévia, ou mesmo aos articulados).
Contudo, alguma jurisprudência vem salientando que a preterição do direito ao contraditório seguida da prolação de sentença pode configurar simultaneamente uma nulidade processual, e uma nulidade da sentença, por excesso de pronúncia [Cf., entre outros os acórdãos do TRP de 15-12-2021, processo 2577/20.5T8AGD-A.P1 e do STJ de 23-06-2016, processo 1937/15.8T8BCL.S1, consultáveis in www.dgsi.pt.].
Cremos, porém, que a ponderação de tais situações como de concurso das duas nulidades, com eventual conjugação de regimes permite alcançar respostas satisfatórias àquelas interrogações, respeitando a letra e espírito dos preceitos que regulam as duas figuras [Cf., neste sentido acórdão do TRL de 30-05-2023, processo 568/20.5T8MTJ-L1-7, consultável in www.dgsi.pt.] - Cf., neste sentido acórdão do TRL de 30-05-2023, processo 568/20.5T8MTJ-L1-7, consultável in www.dgsi.pt.
Assim sendo, acreditámos ser de considerar que se poderá falar em concurso dos dois vícios nas situações em que a primeira nulidade por omissão de uma formalidade legal anterior à prolação da sentença não deva considerar-se sanada por falta de invocação atempada.
Tal sucederá em todas as situações em que tal nulidade apenas se revela com a prolação da sentença, como se verifica no caso em análise.
Nesta conformidade, conclui-se que a sentença apelada é nula, por excesso de pronúncia, devendo ser anulada e que, na impossibilidade de este Tribunal se substituir ao Tribunal a quo, nos termos previstos no artigo 665º do Código de Processo Civil, devem os autos ser remetidos ao Tribunal a quo, a fim de reabrir a audiência para a realização de cibernavegação, com observância das normas aplicáveis, nomeadamente o disposto nos artigos 415º, 491º e 493º do Código de Processo Civil.
[MTS]