"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/07/2025

Jurisprudência 2024 (200)


Prova; poderes do tribunal;
nulidade da sentença


1. O sumário de RP 24/10/2024 (56/23.8T8ALB.P1) é o seguinte:

I - Na utilização oficiosa, pelo Juiz, da ferramenta informática Google Earth como um meio de prova dos factos em discussão, deve o Tribunal observar os princípios processuais que presidem à produção de prova, desde logo o princípio da audiência contraditória, consagrado no artigo 415º do Código de Processo Civil.

II - A utilização da ferramenta acima aludida, nos termos ali expostos, sem observância do disposto nos artigos 415º, 491º e 493º do Código de Processo Civil configura uma nulidade processual, decorrente da omissão de actos e formalidades legalmente prescritos, visto que tais irregularidades podem influir na decisão da causa, sempre que o facto averiguado com recurso a tais ferramentas seja de qualificar como facto essencial (artigo 195º, nº 1, do Código de Processo Civil).

III - Quando o tribunal profere uma decisão depois da omissão de um acto obrigatório, tendo essa omissão relevância para o exame ou decisão da causa verifica-se não só uma nulidade secundária (artigo 195º do Código de Processo Civil), mas também a nulidade da decisão, por excesso de pronúncia (artigo 615º, nº 1, al. d)), uma vez que, ao proferir tal decisão, o Tribunal que conhece de matéria de que, naquelas circunstâncias, não podia apreciar.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Invocaram os Apelantes a nulidade da sentença recorrida por excesso de pronúncia, alegando para o efeito que o Tribunal a quo, oficiosamente, socorreu-se da ferramenta informática Google Earth para dar como provado as áreas do prédio ...11, ou seja, que o mesmo foi «absorvido pelo prédio da Autora (…) em cerca de 560m2) e do Réu (…) em cerca de 500m2» [facto provado 16)], utilizando o referido instrumento como meio de prova.

Acrescentam que, fê-lo sem a observância dos formalismos legais, violando o princípio do contraditório.

Vejamos, então, se a sentença sob recurso é nula.

As causas de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciadas no artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, onde se estabelece que é nula a sentença:

- Quando não contenha a assinatura do juiz (al. a)).

- Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al. b)).

- Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (al. c)).

- Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. d)).

- Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (al. e)).

No caso vertente, na motivação da decisão sobre a matéria de facto o Tribunal a quo reporta-se à utilização da ferramenta informática Google Earth. Todavia, nenhuma das partes requereu a realização da referida diligência probatória, sendo, ainda, certo que também nenhuma das partes teve oportunidade de verificar como o tribunal a quo a utilizou, bem como de contraditar o resultado da diligência.

De facto, na sentença apelada, sob o título “Motivação da Decisão sobre a Matéria de facto”, o Tribunal a quo consignou, designadamente e a este propósito, o que segue:

“Os factos constantes da matéria dada como provada e não provada resultam dos articulados juntos aos autos, tendo sido retirado tudo quanto seja inútil para a decisão da causa, conclusivo, juízos de valor, considerações de direito ou repetido.

Para fundar a sua convicção, o Tribunal atendeu à prova documental junta aos autos, conjugada com a prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento, assim como os depoimentos de parte de Réus e Autora.

A deslocação ao local foi ainda essencial para verificar a configuração actual dos prédios que, segundo os depoimentos prestados e as imagens do Google Earth, se mantem idêntica nos últimos vinte anos. (…)

Por todo o exposto, conclui-se que, ainda em vida de QQ, este construiu a sua pocilga no prédio ...10 e no prédio ...11, ocupando sensivelmente e sem prejuízo de melhor levantamento topográfico, cerca de 500m2(1) do prédio ...11:

(1) Medida retirada utilizando as ferramentas disponíveis no Google Earth Pro. (…)

Pelos fundamentos já acima descritos - designadamente, pelo facto de ser consensual que foi QQ que construiu a pocilga, vendendo-a posteriormente ao Réu e que, ao construí-la ocupou parte dos prédios ...11 e ...10, sem nunca, no entanto, fazer qualquer referência ao prédio ...11 nas escrituras celebradas a 27 de Setembro de 1991 – deu-se o facto 16) como provado.

As áreas indicadas nesse artigo resultam da utilização das ferramentas do Google Earth, tendo por referência os 20 a 25 metros de largura do prédio ...12 (que fica a norte dos prédios ...11 e ...37) que, em tempos, pertenceu aos pais de QQ e foi deixado a DD. (…).”

Assim, pese embora o Tribunal a quo não tenha devidamente esclarecido as circunstâncias em que recorreu à referida ferramenta informática e as medições que em concreto realizou, do inciso citado resulta que a referida ferramenta foi usada para observar o local e proceder a medições.

Ou seja, o Tribunal a quo, oficiosamente, socorreu-se da ferramenta informática Google Earth para dar como provadas as áreas do prédio ...11, em concreto, que o mesmo foi «absorvido pelo prédio da Autora (…) em cerca de 560m2) e do Réu (…) em cerca de 500m2» [facto provado 16)].

Fê-lo, porém, sem a observância dos formalismos legais que, nestas circunstâncias, se impõem.

Ora, tendo em consideração que a cibernavegação (medição de áreas), no caso em concreto, foi realizada oficiosamente e sem qualquer notificação às partes de que iria servir como meio de prova, ficou vedada às mesmas a intervenção no acto de produção desta prova.

De resto, resulta das regras da experiência comum, que as medições realizadas na aplicação Google Earth é superficial e sem o devido rigor, sendo impossível determinar, com certeza, os limites e extremas dos terrenos e, consequentemente, a área dos mesmos, existindo para o efeito os levantamentos topográficos.

Além disso, os Apelantes não tiveram acesso aos limites utilizados pela Sr.ª Juiz a quo para advir àquelas áreas, dado que a suposta imagem (ou imagens) não foram juntas aos autos, sabendo-se, apenas, a conclusão retirada pelo Tribunal a quo, sendo, ainda, certo que está em causa a área do prédio objecto do litígio e não um qualquer facto acessório.

Ora, o recurso às referidas ferramentas, visando observar locais e efectuar medições é susceptível de ser qualificado como uma modalidade de prova por inspecção judicial, sujeita, por isso, à disciplina dos artigos 439º e segs. do Código de Processo Civil, bem como às regras gerais do direito probatório formal, previstas nos artigos 411º e segs. do referido diploma, máxime o consagrado no artigo 415.º do referido código [Cf. sobre esta matéria o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-02-2023 (Luís Pires de Sousa), processo 400/19.2T8CSC.L1-7, consultável in www.dgsi.pt].

Assim, ao actuar de tal modo, a Sra. Juiz a quo recorreu ao meio de prova inspecção na modalidade de cibernavegação, o qual não prescinde da observância dos princípios processuais que presidem à produção de prova, a começar pelo princípio da audiência contraditória, consagrado no artigo 415º do Código de Processo Civil.

De facto, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas (nº 1 do artigo 415º) e, tratando-se de prova constituenda (como é o caso), a parte é notificada para todos os actos de preparação e produção da prova, sendo também admitida a intervir nesses actos nos termos da lei (nº 2 do artigo 415º).

De resto, a observância do princípio do contraditório na produção da prova «destina-se a permitir que à produção de prova por uma das partes a outra possa responder com uma contraprova (artigo 346º do Código Civil) ou com prova do contrário (artigo 347º do Código Civil)» [Cf. Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, 2022, pág. 515.].

No caso vertente, sendo a cibernavegação resultado da actuação oficiosa da Sra. Juiz a quo (artigo 411º), deve na mesma ser garantida a intervenção de ambas as partes na produção da prova e a apreciação dos elementos recolhidos deve ser precedida do contraditório [Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, pág. 528.].

Destarte, a sentença em crise utilizou a ferramenta Google Earth em violação do disposto nos artigos 415.º, 491.º e 493.º do Código de Processo Civil.

E fazendo-o, há quem defenda que a omissão de formalidade essencial seguida da prolação de sentença configura uma nulidade processual, nos termos do disposto nos artigos 195º e segs. do Código de Processo Civil e não uma nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, al. d) do mesmo diploma [Cf. entre outros, os acórdãos do TRL de 12-03-2019, proc. 21183/16.2T8LSB.L1; TRL de 04-06-2019, proc. 214/16.1T8MFR.L1 e TRL de 08-10-2019, proc. 10371/18.7T8LSB.L1 consultáveis in www.dgsi.pt.]

Ancorava-se esse entendimento na consideração de que a génese da nulidade se situava a montante da prolação da sentença e bem assim na circunstância de o regime da nulidade da sentença não prever a possibilidade de o processo retroceder a fase anterior à da prolação da decisão final (v.g. à audiência de julgamento, à audiência prévia, ou mesmo aos articulados).

Contudo, alguma jurisprudência vem salientando que a preterição do direito ao contraditório seguida da prolação de sentença pode configurar simultaneamente uma nulidade processual, e uma nulidade da sentença, por excesso de pronúncia [Cf., entre outros os acórdãos do TRP de 15-12-2021, processo 2577/20.5T8AGD-A.P1 e do STJ de 23-06-2016, processo 1937/15.8T8BCL.S1, consultáveis in www.dgsi.pt.].

Cremos, porém, que a ponderação de tais situações como de concurso das duas nulidades, com eventual conjugação de regimes permite alcançar respostas satisfatórias àquelas interrogações, respeitando a letra e espírito dos preceitos que regulam as duas figuras [Cf., neste sentido acórdão do TRL de 30-05-2023, processo 568/20.5T8MTJ-L1-7, consultável in www.dgsi.pt.] - Cf., neste sentido acórdão do TRL de 30-05-2023, processo 568/20.5T8MTJ-L1-7, consultável in www.dgsi.pt.

Assim sendo, acreditámos ser de considerar que se poderá falar em concurso dos dois vícios nas situações em que a primeira nulidade por omissão de uma formalidade legal anterior à prolação da sentença não deva considerar-se sanada por falta de invocação atempada.

Tal sucederá em todas as situações em que tal nulidade apenas se revela com a prolação da sentença, como se verifica no caso em análise.

Nesta conformidade, conclui-se que a sentença apelada é nula, por excesso de pronúncia, devendo ser anulada e que, na impossibilidade de este Tribunal se substituir ao Tribunal a quo, nos termos previstos no artigo 665º do Código de Processo Civil, devem os autos ser remetidos ao Tribunal a quo, a fim de reabrir a audiência para a realização de cibernavegação, com observância das normas aplicáveis, nomeadamente o disposto nos artigos 415º, 491º e 493º do Código de Processo Civil.

Atento o exposto no ponto que antecede, fica prejudicada a apreciação da impugnação da decisão sobre matéria de facto, e do mérito da causa - artigo 608º, nº 2 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 663º, nº 2 do mesmo código."

[MTS]


01/07/2025

Bibliografia (1208)


-- Pinto, R., A Ação Parcial / Admissibilidade. Instância. Caso Julgado (AAFDL: Lisboa 2025)


Jurisprudência 2024 (199)


Acção de demarcação;
título executivo*


I. O sumário de RE 25/10/2024 (1880/19.1T8SLV-A.E1) é o seguinte:

1 – Na ação de demarcação donde resultou o título dado à execução, o tribunal ao definir as linhas divisórias dos prédios pertencentes a cada uma das partes (prédios confinantes) não fixou qualquer outra obrigação para a aqui apelada senão a de consentir ou contribuir para a demarcação nos termos decididos.

2 - Ocorrendo uma situação de violação da integridade do direito de propriedade da exequente, a sentença dada à execução que se formou no âmbito de uma ação de demarcação não constitui título executivo bastante para a execução da prestação de «entrega da área ocupada e reposição da situação anterior à ilegal ocupação».

3 – É através de uma ação de reivindicação que a exequente deve exigir a tutela da integridade daquele seu direito real, reclamando a restituição ou entrega daquilo que lhe pertence, sendo também nessa ação que a recorrida terá a oportunidade de se pronunciar sobre a pretensão condenatória da contra-parte.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Através da presente ação executiva pretende a exequente que a executada «entregue a área que está a ocupar do seu (dela-exequente) imóvel e reponha a situação que existia antes da ocupação ilegal». Para tal desiderato deu à execução uma sentença, transitada em julgado, proferida no âmbito de uma ação de demarcação.

No presente recurso está em causa saber se a sentença dada à execução constitui título executivo (suficiente) para a prestação de «entrega da área ocupada e reposição da situação anterior à ilegal ocupação».

Vejamos.

De acordo com o disposto no artigo 10.º, n.º 5, do Código de Processo Civil toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva.

título executivo confere ao direito exequendo o grau de segurança que o sistema considera suficiente para a admissibilidade da ação executiva, através dele se determinando o tipo de ação, o seu objeto, a legitimidade ativa e passiva para a execução, sendo também através dele que se verifica se a obrigação é certa, líquida e exigível [---]

As sentenças condenatórias, isto é, as decisões com valor de caso julgado material proferidas num processo contraditório e pelas quais um tribunal impõe um comando de cumprimento de uma obrigação ao réu, constituem títulos executivos, conforme artigo 703.º, n.º 1, alínea a), do CPC.

O conceito de “obrigação” traduz um vínculo entre pessoas, impondo a uma delas o dever de realizar uma prestação (de darefacere ou non facere) em benefício da outra [---]

A condenação corresponde ao pedido formulado na ação (condenatória) e sobre o qual a parte contrária teve oportunidade de se defender, ou seja, de exercer o direito ao contraditório.

[...] no caso em apreço a sentença dada à execução foi proferida no âmbito de uma ação de demarcação.

O direito de demarcação mostra-se regulado nos artigos 1353.º e ss. do Código Civil. De acordo com o disposto no artigo 1353.º do Código Civil o proprietário pode obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas entre o seu prédio e os deles.

É consabido que através da ação de demarcação não se visa a obtenção da declaração de qualquer direito real ou a sua amplitude, ou seja, não se discute a titularidade dos prédios confinantes, procurando-se, tão só, definir as extremas de prédios confinantes. A causa de pedir nas ações de demarcação é complexa, exigindo a alegação da titularidade por autor e réus de prédios distintos, a confinância desses prédios e uma controvérsia quanto aos limites e/ou inexistência de linha divisória sinalizada no terreno [---] [---]. Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24.01.2019, processo n.º 21895/17.3T8PRT.P1, consultável em www.dgsi.pt., «Na típica ação de demarcação a questão da propriedade é invocada apenas como legitimação para a ação – artigo 1353.º do Código Civil – já que o que se pede não é o reconhecimento do direito de propriedade, mas antes a definição da linha divisória, que se alega incerta, entre dois prédios confinantes. (…) limitada que está à declaração do direito de propriedade apenas como pressuposto do estabelecimento da demarcação nos termos decididos, não contém em si qualquer juízo de condenação para além do que se refere ao estabelecimento da demarcação nos termos decididos, podendo, nessa medida, servir de título executivo para compelir coercivamente o demandado a contribuir ou consentir na demarcação assim decidida» [---]

In casu a exequente apresentou como título executivo uma sentença proferida no âmbito da ação declarativa de condenação que correu termos sob o n.º 480-CE/1992, no Tribunal Judicial de Albufeira, 2.º Juízo. Naquela ação movida pela massa falida da (…) e Gestão Hoteleira, SA contra a (…) – Sociedade de Importação, Exportação e (…), SA, a primeira pediu a condenação da segunda a reconhecer que a demarcação dos prédios urbanos sitos no lugar de (…), na freguesia e concelho de Albufeira, descritos na Conservatória do Registo Predial de Albufeira, sob os n.ºs (…) e (…) e inscritos na matriz predial urbana sob os artigos (…) e (…), respetivamente, fosse efetuada em consonância com a linha tracejada e sombreada a amarelo no documento de fls. 76 dos autos ou, caso assim não se entendesse , que a linha divisória fosse judicialmente definida nos termos legais.

E o tribunal, por sentença transitada em julgado, declarou que as linhas divisórias dos prédios melhor identificados nos autos correspondem às extremas indicadas nos facto provado n.º 8, ou seja, que o prédio urbano sito em (…), freguesia e concelho de Albufeira, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o n.º (…), confina do nascente e do norte com o prédio urbano sito em (…), freguesia e concelho de Albufeira, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o n.º (…), sendo a extrema nascente delimitada por uma faixa de terreno que se inicia no portão que confina com a via pública (Av. das …) e situado a poente das habitações existentes no prédio urbano sito em (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), segue paralelamente ao limite nascente do caminho calcetado, ao longo de uma distância de cerca de 25 metros, faz um ângulo recto, avançando para nascente ao longo de uma distância de cerca de 3,5m, contornando a central de bombagem, seguidamente faz um outro ângulo recto, avançando para sul ao longo de uma distância de 8,5 metros, paralelamente à central de bombagem, ao depósito de água tratada e ao squash, após o que faz um novo ângulo recto, avançando para nascente, numa linha paralela ao edifício que serviu para andar modelo, situado a norte dessa linha, ao longo de uma distância de cerca de 23 metros e que corresponde à extrema norte de delimitação do prédio urbano sito em (…), freguesia e concelho de Albufeira, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…).

Naquela ação de demarcação, donde resultou o título dado à execução, o tribunal ao definir as linhas divisórias dos prédios pertencentes a cada uma das partes (prédios confinantes) não fixou qualquer outra obrigação para a aqui apelada senão a de consentir ou contribuir para a demarcação nos termos decididos. Ou seja, a única mudança jurídica operada pela sentença foi a fixação das linhas divisórias entre os dois prédios confinantes, não se podendo considerar que aquela decisão judicial impõe, implicitamente, a qualquer das partes (in casu à aqui executada) uma obrigação de se absterem da prática de atos lesivos do direito de propriedade da contra-parte e, em consequência, de uma obrigação de eliminação dos efeitos decorrentes de tal violação.

Como afirma Rui Pinto [A Ação Executiva, 2019, Reimpressão, AAFDL Editora, pág. 159.«O pedido de condenação deve ser expresso, pois que o tribunal não conhece senão o que o autor pediu, conforme o artigo 609.º, n.º 1. (…) A violação dos direitos de propriedade ou de servidão terá de ser apurada na devida ação condenatória. No entanto, é possível ao autor, tanto na divisão de coisa comum, como na demarcação, como na mudança de servidão, fazer uso do artigo 557.º, n.º 2, para se obter a adequada condenação in futurum, verificados os requisitos respetivos, naturalmente».

No seu requerimento executivo a exequente, aqui apelante, invoca a violação, pela executada, do seu direito de propriedadealegando o seguinte«a executada, no início deste ano de 2019, iniciou a construção de uma piscina, tendo a exequente, em meados de abril deste ano, verificado que aquelas construções ocuparam uma boa parte do terreno/logradouro do prédio da exequente numa extensão de aproximadamente 250 m2, construindo ainda um muro de 4 metros de altura, avançando a sua extrema a sul ocupando terreno/logradouro da (…), ora exequente. Mais ocupou a executada o caminho de acesso ao terreno/logradouro da (…), ora exequente, impedindo os veículos particulares e de emergência de entrar no terreno/logradouro do prédio da (…). Com as ditas obras, a executada exorbitou as extremas resultantes da douta sentença avançando 15 metros para o interior do terreno/logradouro contíguo, que é propriedade da (…), ora exequente, deixando uma entrada para peões com 2,20m a qual é impeditiva da livre circulação de veículos, de estacionamento e circulação de veículos dos bombeiros em caso de emergência».

Como decorre do exposto supra, ocorrendo uma situação de violação da integridade do direito de propriedade da exequente, a sentença dada à execução não constitui título executivo bastante para a execução da prestação de «entrega da área ocupada e reposição da situação anterior à ilegal ocupação». É, ao invés, através de uma ação de reivindicação que a apelante deve exigir a tutela da integridade daquele seu direito real, exigindo a restituição ou entrega daquilo que lhe pertence, sendo também nessa ação que a recorrida terá a oportunidade de se pronunciar sobre a pretensão condenatória da contraparte. E só se a ré se negar a cumprir a respetiva sentença é que se torna necessária a instauração de uma ação executiva."


*III. [Comentário] Salvo o devido respeito, não se acompanha a posição da RE.

Afirma a RE:

"Na[...] ação de demarcação, donde resultou o título dado à execução, o tribunal, ao definir as linhas divisórias dos prédios pertencentes a cada uma das partes (prédios confinantes), não fixou qualquer outra obrigação para a aqui apelada senão a de consentir ou contribuir para a demarcação nos termos decididos. Ou seja, a única mudança jurídica operada pela sentença foi a fixação das linhas divisórias entre os dois prédios confinantes, não se podendo considerar que aquela decisão judicial impõe, implicitamente, a qualquer das partes (in casu à aqui executada) uma obrigação de se absterem da prática de atos lesivos do direito de propriedade da contra-parte e, em consequência, de uma obrigação de eliminação dos efeitos decorrentes de tal violação."

Noutros termos: a RE entende que da sentença proferida na acção de demarcação resultou apenas a condenação da demandada numa obrigação de facto: em concreto, na obrigação de "consentir ou contribuir para a demarcação nos termos decididos". Ora, não é este o objecto da acção de demarcação -- que é uma acção real, não uma acção obrigacional. É por isso que também não se pode acompanhar a RE na irrelevância prática a que, na segunda parte da afirmação acima transcrita, condena a acção e a sentença de demarcação. 

É certo que o art. 1353.º CC define o conteúdo do direito de demarcação como correspondendo a uma obrigação dos "donos dos prédios confinantes concorrerem para a demarcação das estremas entre o seu prédio e o deles". No entanto, o objecto da acção de demarcação é aquele que consta do art. 1354.º CC, como resulta da circunstância de se estabelecer que um non liquet ocorrido nessa acção pode vir a ser ultrapassado, em última análise, pela distribuição do terreno em litígio por partes iguais. Disto decorre que o objecto da acção de demarcação não é nenhuma obrigação de facto do dono do prédio confinante, mas antes, a delimitação recíproca e com eficácia real das estremas de dois prédios confinantes.

MTS

30/06/2025

Jurisprudência 2024 (198)


Apoio judiciário;
requerimento; prazo de condescendência


I. O sumário de RG 24/10/2024 (612/17.3T8VLN-A.G1) é o seguinte:

1 - Quando o pedido de apoio judiciário tendente à nomeação de patrono é apresentado na pendência de uma ação judicial, o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo.

2 – Se é certo que o decurso de um prazo perentório extingue o direito de praticar o ato, o próprio artigo 139.º do CPC prevê duas situações em que os efeitos preclusivos resultantes do esgotamento de um prazo perentório podem ser evitados: a prática do ato dentro dos três dias úteis subsequentes ao termo do prazo ou a ocorrência de justo impedimento.

3 - A possibilidade da junção do documento comprovativo do requerimento de apoio judiciário poder ocorrer num dos três dias úteis subsequentes ao termo do prazo, é a única que protege a ideia de um processo justo e equitativo, corolário do princípio da igualdade das partes, que o tribunal deve assegurar nos termos do disposto no artigo 4.º do CPC.

4 – Caso contrário, correr-se-ia o risco de o interessado não poder defender de forma efetiva e eficaz os seus direitos e interesses legalmente protegidos, podendo ficar numa posição juridicamente desigual quanto à possibilidade do uso dos meios processuais a praticar dentro do prazo em relação aos demais interessados que não carecessem economicamente de socorrer-se do apoio judiciário por poderem contratar um patrono para defender as suas posições na ação.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Entendeu-se na decisão recorrida que a informação e/ou junção do requerimento de pedido de apoio judiciário apenas terão virtualidade interruptiva se ocorrer dentro do prazo normal para contestar ou deduzir oposição, não constituindo prazo, para esse efeito, os três dias em que se pode praticar o ato pagando uma penalidade, pelo que, quando foi junto aos autos o comprovativo do pedido de apoio judiciário no dia 08/02/20204, o prazo para serem deduzidos os embargos já havia terminado no dia 06/02/2024.

Não podemos concordar com este entendimento.

Como é sabido, o apoio judiciário compreende diversas modalidades, entre elas, a nomeação e pagamento da compensação de patrono (artigo 16º, nº 1, alínea b) da Lei nº 34/2004 de 29/7).

O artigo 24º, nºs 4 e 5 da mencionada Lei prescreve que, quando o pedido de apoio judiciário é apresentado na pendência de ação judicial e o requerente pretende a nomeação de patrono, o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo e inicia-se a partir da notificação ao patrono nomeado da sua designação (sendo inconstitucional a interpretação com o sentido de que o prazo interrompido se inicia com a notificação ao patrono nomeado da sua designação, quando o requerente do apoio judiciário desconheça essa nomeação, por dela ainda não ter sido notificado – Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 515/2020, publicado no DR 1.ª Série, n.º 225, de 18/11/2020).

A interrupção inutiliza todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir da cessação do facto com eficácia interruptiva - cfr. artigo 326.º do Código Civil.

Com efeito, enquanto na suspensão os prazos são contados até à data do facto suspensivo e quando voltam a correr a contagem é retomada onde parou, na interrupção os prazos são contados até à data em que ocorre o facto interruptivo e depois a contagem começa do início, inutilizando-se o prazo já decorrido.

Ora, conforme se diz na decisão recorrida e resulta do n.º 3 do artigo 139.º do CPC (quanto às modalidades do prazo), o decurso do prazo perentório extingue o direito de praticar o ato. Tendo o executado o prazo de 20 dias a contar da citação para se opor à execução (artigo 728.º, n.º 1 do CPC), não poderia ter junto o requerimento comprovativo do pedido de apoio judiciário, com a virtualidade de interrupção do prazo em curso, após o términus desse prazo.
Contudo, o próprio artigo 139.º do CPC prevê duas situações em que os efeitos preclusivos resultantes do esgotamento de um prazo perentório podem ser evitados: a prática do ato dentro dos três dias úteis subsequentes ao termo do prazo ou a ocorrência de justo impedimento – n.ºs 4 e 5 do artigo 139.º - sendo certo que se a primeira está dependente do pagamento imediato de uma multa, mesmo aqui há um mecanismo suplementar destinado a salvar o ato que tiver sido praticado sem o pagamento da multa, que é a notificação da secretaria, logo que a falta seja verificada (n.º 6).

Ou seja, o legislador, mesmo sendo perentório o prazo, quis expressamente consentir na prática do ato nos três dias úteis após o seu decurso.

Este regime tem de abranger a prática de qualquer ato que a parte tenha a faculdade de praticar. “Se a parte tem essa faculdade porque está dentro do prazo ou porque beneficia do prazo de complacência estabelecido no artigo 139.º, n.º 5, isso tem de ser indiferente” – Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa, Código Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 164, citando Teixeira de Sousa (https//blogippc.bçogspot.pt).

Como bem se refere na alegação de recurso “não fosse a necessidade de requerer o prévio apoio judiciário, o ato poderia ser praticado nos autos com inteira validade e efeitos, mesmo encontrando-se já ultrapassado o aludido prazo perentório”.

E é aqui que convocamos o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 467/2004, de 23/06/2004 (relator Benjamim Rodrigues), citado no Acórdão desta Relação de Guimarães de 23/02/2023, processo n.º 359/21.6T8GMR-A.G1 (Alcides Rodrigues), in www.dgsi.pt:

“[A] norma em causa (artigo 24.º, n.º 4 da Lei 34/2004, de 29/07) dispõe sobre os efeitos da apresentação do requerimento com que é promovido perante a competente autoridade administrativa o procedimento administrativo de concessão do apoio judiciário e da junção aos autos do documento comprovativo desse requerimento, determinando que “o prazo que estiver em curso interrompe -se” com a junção aos autos deste documento.

A ratio do preceito é evidente. Os prazos processuais são interregnos de tempo que são conferidos aos interessados para o estudo das posições a tomar no processo na defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, maxime, para virem ao processo expor os factos e as razões de direito de que estes decorrem. Uma tal decisão poderá envolver a utilização de conhecimento técnicos especializados da área do direito, sendo que a capacidade para a sua prática apenas é reconhecida às pessoas que estão legalmente habilitadas a exercer o patrocínio judiciário, em regra, os advogados. Ora, estando pendente de apreciação o pedido de concessão do apoio judiciário na modalidade de nomeação e pagamento de honorários de patrono que há de tomar aquela posição do interessado, apreciação essa levada a cabo, no domínio da Lei n.º 30-E/2000, pelas autoridades administrativas da Segurança Social (no sistema anterior essa tarefa era levada a cabo pelo próprio tribunal), se o prazo em curso não se interrompesse com a apresentação do pedido de apoio à autoridade administrativa competente e a prova dessa apresentação perante a autoridade judiciária perante quem corre a ação, correr-se-ia o risco de o interessado não poder defender de forma efetiva e eficaz os seus direitos e interesses legalmente protegidos, quer porque o prazo entretanto se poderia ter esgotado, quer porque disporia sempre de um prazo inferior ao estabelecido na lei para prática do ato ao qual o prazo está funcionalizado. A não acontecer essa interrupção, o interessado ficaria sempre em uma posição juridicamente desigual quanto à possibilidade do uso dos meios processuais a praticar dentro do prazo em relação aos demais interessados que não carecessem economicamente de socorrer-se do apoio judiciário por poderem contratar um patrono para defender as suas posições na ação. O princípio da igualdade de armas, corolário no processo do princípio fundamental da igualdade dos cidadãos, sairia irremediavelmente afetado” - cfr. no mesmo sentido, entre outros, os Acs. Tribunal Constitucional n.º 350/2016, de 7/06/2016 (relatora Fátima Mata-Mouros) e n.º 515/2020, de 13/10/2020 (relator Fernando Vaz Ventura), in www.dgsi.pt”.

Neste Acórdão da Relação de Guimarães, aliás, fica patente entendimento semelhante ao nosso quando aí se diz “Estando assente que o executado/embargante foi citado em 21-04-2022 para os termos da execução e para, querendo e em 20 dias, oferecer embargos de executado, o referido prazo findou a 11/05/022 ou, no caso de pagamento de multa a que alude o art. 139º, n.ºs 5 e 6 do CPC, em 16/05 do mesmo ano”.

Ou seja, a interrupção do prazo judicial por efeito da apresentação, na pendência de uma ação, de um pedido de apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono foi entendida como garantia do acesso à justiça: se assim não fosse, pôr-se-iam em causa os direitos processuais dos sujeitos carecidos de meios económicos, impossibilitados de contratar um patrono para defender as suas razões em litígio durante o prazo judicial em curso.

Daí que, a possibilidade da junção de tal requerimento de apoio judiciário poder ocorrer num dos três dias úteis subsequentes ao termo do prazo, previstos no artigo 139.º, n.º 5 do CPC, é a única que protege a ideia de um processo justo e equitativo, corolário do princípio da igualdade das partes, que o tribunal deve assegurar nos termos do disposto no artigo 4.º do CPC."

[MTS]

29/06/2025

Bibliografia (1207)


-- Della Torre, J., Taking the Evolution of the Standards of Proof for a Criminal Conviction Seriously, Qf 8 (2025), 155

-- Garlati, L., Prove legali e intimo convincimento. Strade parallele o inevitabile intreccio? Note a margine di Taking the Evolution of the Standards of Proof for a Criminal Conviction Seriously di Jacopo Della Torre, Qf 9 (2025), 1


27/06/2025

Jurisprudência constitucional (241)


Investigação da paternidade; 
prazo; inconstitucionalidade


TC 17/6/2025 (523/2025) decidiu

[...] Julgar inconstitucional, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 26.º e do n.º 1 do artigo 36.º da Constituição, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, a norma do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação da paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante [...]. 

 

Bibliografia (1206)


--  Fisher, J., Strengbeweis und Freiheit richterlicher Überzeugungsbildung (Mohr: Tübingen 2025) [OA]

-- Thöne, M., Grenzen verfahrensrechtlicher Gestaltung / Privatautonomie, Rechtsstaatlichkeit, Verfahrenseffizienz (Mohr: Tübingen 2025)

Jurisprudência 2024 (197)


Processo de inventário;
homologação da partilha; caso julgado*


1. O sumário de RC 8/10/2024 (436/18.0T8LSA.C1) é o seguinte:

I – A sentença homologatória da partilha não constitui caso julgado numa ação em que se pede o reconhecimento do direito de propriedade de uma verba, com fundamento no instituto da usucapião, quando no inventário não tenha sido concretamente apreciada, em incidente declarativo, a questão da titularidade desse bem.

II – Após a dissolução do vínculo conjugal por óbito de um dos cônjuges, a demonstração da posse relevante para aquisição por usucapião, pelo cônjuge sobrevivo, de bem que integrava o património comum do extinto casal, não dispensa a prova de factos de onde resulte a inversão do título, a que alude o art. 1265º do Código Civil.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"3. O efeito preclusivo do trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha do anterior processo de inventário

Na conclusão n.º 4, os recorrentes referem: “(d)iz-se que uma decisão não anula a outra, mas a presente sentença anula a sentença do processo de inventário, cujo trânsito em julgado já ocorreu em 2015”.

Pese embora o seu teor algo equívoco, em nossa opinião, esta conclusão, se complementada com o conteúdo das alegações de recurso [---], é suscetível de ser interpretada como uma pretensão de recurso sobre o segmento decisório (da sentença) que julgou improcedente a exceção de autoridade de caso julgado.

Vejamos, então.

Como decorre da factualidade enunciada, o imóvel em discussão foi integrado na relação de bens do inventário para partilha das heranças (cumuladas) de FF - avó e bisavó do primeiro e segundo autor, respetivamente - e do primeiro e pré-falecido marido desta, nele intervindo como interessados a mãe e avó dos aqui autores e os descendentes daquele primeiro casamento.

Tal imóvel, correspondente à verba n.º 55 daquela relação de bens da inventariada FF, foi, em conferência de interessados, licitado pelas rés e adjudicado às mesmas por sentença homologatória de partilha, transitada em julgado em 24 de abril de 2015, não tendo havido emenda da partilha, nem ação destinada a obter a anulação da partilha.

Pretendem as recorrentes que, perante esta factualidade, ocorre caso julgado inibidor da propositura da presente ação, entendimento que não foi acolhido na sentença recorrida.

Vejamos.

A expressão caso julgado quer retratar a realidade jurídica de uma situação já jurisdicionalmente apurada, já julgada.

A doutrina tem chamado a atenção para as diversas perspetivas - e concernente alcance - com que o instituto pode ser equacionado.

E assim, por exemplo, se vem distinguindo o caso julgado como exceção dilatória da figura da autoridade do caso julgado ou ainda do alcance ou efeito preclusivo do caso julgado.

Como exceção dilatória, o caso julgado visa obstar à repetição de uma causa e evitar que o tribunal se veja na contingência de ter de reproduzir ou contrariar a anterior decisão (art.º 580º, nº 1 e nº 2, do CPC), definindo a lei a noção de repetição da causa através dos consabidos critérios de identidade de sujeito, de pedido e de causa de pedir (art.º 581º do CPC).

Por seu turno, como autoridade, o alcance do julgado recorta-se, já não como obstáculo processual a uma causa seguinte mas, mais positivamente, pela afirmação do que já antes foi decidido como objeto e que, por isso, já se não pode discutir - de uma outra (e precedente) causa. [...]

Importa ainda fazer referência ao designado efeito preclusivo do caso julgado [Na doutrina não tem obtido resposta unânime a questão de saber se o efeito preclusivo deverá ser integrado no caso julgado ou, por outro lado, tratado com autonomia (neste sentido cf. o Ac. do STJ, de 17 de janeiro de 2017, processo n.º 3844/15.5T8PRT.S1, in www.dgsi.pt)]

Dentro do processo, a definitividade da decisão impede que nele ela seja contraditada ou repetida (o designado caso julgado formal).

“Fora do processo, produz-se um efeito preclusivo material: não só precludem todos os possíveis meios de defesa do réu vencido e todas as possíveis razões do autor que perde a ação, mas também, com maior amplitude, toda a indagação sobre a relação controvertida, delimitada pela pretensão substantivada (pedido fundado numa causa de pedir) deduzida em juízo”  [Lebre de Freitas, “Um polvo chamado autoridade de caso julgado”, in Revista da Ordem dos Advogados, III-IV, 2019, pag. 692].

Feitas estas breves considerações, que entendemos necessárias a um adequado enquadramento que a apreciação deste concreto fundamento do recurso demanda, desde já adiantamos, tal como a sentença recorrida, ser concluir que o trânsito em julgado da sentença homologatória proferida no sobredito inventário não inibe os autores da propositura desta ação onde reclamam o reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel ali partilhado e adjudicado às rés, com fundamento na aquisição originária do mesmo por usucapião.

Tal como refere a Mmª Juíza a quo, a sentença homologatória de partilhas, na expressão de Lopes Cardoso [In "Partilhas Judiciais", II, 3ª ed., pág 495, 506 e 547.], limita-se a "chancelar", "autenticar" uma dada partilha, mediante a qual se atribui aos respetivos interessados o direito de propriedade sobre certos e determinados bens; tal decisão só surtirá, contudo, eficácia de caso julgado no tocante às questões que, "ex professo", hajam sido discutidas e dirimidas no correspondente processo de inventário.

Se bem que os autores devam ser considerados os únicos herdeiros de HH, que interveio como interessada naquele inventario (sendo, por isso, inquestionável, para efeitos de apreciação deste exceção, a verificação do referido pressuposto da identidade jurídica de sujeitos), a verdade é que, no aludido inventário, não houve qualquer incidente de reclamação contra a relação de bens na parte atinente ao imóvel descrito sob a verba n.º 55, pelo que a sentença homologatória do inventário não apreciou nem se pronunciou sobre o direito de propriedade relativo ao bem imóvel em causa nestes autos, antes aceitou como bom o pressuposto de que tal bem integrava a herança aberta por óbito de FF, procedendo à respetiva partilha, de acordo com os quinhões hereditários de cada um dos herdeiros de cada um dos inventariados.

Acresce que o efeito preclusivo do julgado se relaciona essencialmente com a posição passiva na ação judicial e resulta de dois mecanismos processuais distintos. “Efectivamente, o princípio de concentração da defesa na contestação (art. 573º do CPC), incluído na defesa superveniente (como se deduz da conjugação dos artigos 588º, n.º 1, e 729º, al. g)) determina a preclusão de toda a defesa que haja oportunamente feito valer contra a concreta causa de pedir invocada pelo autor. Assim, o réu que perdeu já não pode, depois, na oposição à execução (cf. artigos 729º, al. g), a contrario, e 860º, n.º 3) invocar as exceções que não usara, como por ex. a nulidade do contrato invocado pelo autor, para se negar ao pagamento. Mas, por outro lado, tampouco o pode fazer em (i) ação autónoma ou em (ii) reconvenção, porque lhe vai ser oposta a autoridade de caso julgado decorrente da vinculação positiva externa do caso julgado assente no art.º 619º do CPC, em sede e objetos em relação de prejudicialidade” [Rui Pinto, “Exceção e Autoridade de Caso Julgado, Revista Julgar online, Novembro de 2018, pag. 42.]

Sucede que, no processo inventário, as partes interessadas não têm a qualidade de demandantes e demandados.

Como bem se refere na sentença recorrida, “o processo de inventário é um processo complexo, podendo ele configurar-se como um processo de jurisdição voluntária ou já de feição contenciosa, tudo dependendo da circunstância de, no seu decurso, surgirem questões entre os interessados que provoque ou não a actividade jurisdicional para decidir controvérsias. Se o juiz for chamado e forçado a decidir, a administrar justiça, transformando-se o processo em contencioso, deixando a jurisdição de ser voluntária e provocando a apreciação de prova produzida e do direito aplicável e subsequente decisão de mérito, aí nenhuma dúvida oferece que, em sede de julgamento de questões de índole contenciosa, a consequência será o funcionamento da excepção de caso julgado e da autoridade do caso julgado. Será o caso de questão incidental suscitada em sede de reclamação contra a relação de bens e julgada em processo de inventário se impor à subsequente demanda em acção declarativa comum, nomeadamente em acção de reivindicação, já que, à semelhança desta, o incidente de reclamação contra a relação de bens visa também ele a inclusão ou restituição de um bem em falta a um património comum e não meramente a apreciação acerca da titularidade de um direito. Ora, no inventário em causa, não houve qualquer incidente de reclamação contra a relação de bens atinente à dita verba n.º 55, sendo que só nessa sede se poderia aferir se decisão ali proferida se repetiria aqui quanto à causa de pedir e pedido ou se este tribunal ficaria colocado em posição de possível contradição com o decidido e que se impunha, visto que com o inventário sem mais tais coincidências de causa de pedir e pedido nunca se poderiam verificar”.

Quer isto dizer que não vislumbramos in casu qualquer decisão prejudicial que haja sido tomada naquele inventário que possa ser contraditada por uma (posterior) decisão judicial que, com fundamento na aquisição originária (usucapião) do imóvel ali relacionado e adjudicado às rés, reconheça aos autores do direito de propriedade sobre esse mesmo imóvel.

De facto, como nos diz o sumário do Acórdão da RG de 6.02.2020,  “(a) a sentença homologatória da partilha não constitui caso julgado numa acção de reivindicação da propriedade de uma verba quando no inventário, não tendo corrido qualquer incidente declarativo, não se apreciou nem a titularidade do bem, nem se definiu a sua área, configuração concreta e limites” [Processo n.º 26/18.tT8MDR.G1, in www.dgsi.pt. De referir, contudo, que pese embora o teor do sumário supra transcrito, a situação subjacente àquele aresto não é inteiramente coincidente com a destes autos, na medida em que ali não estava em causa uma questão que contendesse com a titularidade dos bens da herança objeto da partilha homologada por sentença transitada em julgado, mas somente (posteriores) questões atinentes a ónus ou encargos desses bens ou à configuração exata das verbas.]

Por estas razões, entendemos ser de manter a decisão recorrida na parte em que julgou improcedente a exceção de violação da autoridade de caso julgado invocada pelas rés.

*3. [Comentário] Soa estranho que as partes de um processo de inventário não fiquem vinculadas ao que dele resultou ou nele se decidiu. Independentemente desta estranheza, a RC esqueceu-se, salvo melhor opinião, de um importante argumento de ordem sistemática que contraria o decidido.

O art. 1127.º, n.º 1, CPC regula a anulação da partilha, definindo os casos em que a partilha confirmada por sentença homologatória pode ser anulada. Já se alcança o argumento que pode ser invocado: se há condições específicas para a anulação da partilha homologada é porque essa partilha é vinculativa para as partes e não pode ser questionada a não ser se for anulada.

No caso concreto, não tendo sido requerida a anulação da partilha homologada, era indiscutível que os recorrentes estavam vinculados ao que dela resultou.

MTS

26/06/2025

Anulação de decisão sobre matéria de facto e “custas da apelação pela parte vencida”


[Para aceder ao texto clicar em Salvador da Costa]



Jurisprudência 2024 (196)


Injunção de pagamento europeia;
fundamentos de oposição; preclusão


1. O sumário de RC 8/10/2024 (313/23.3T8VIS-A.C1) é o seguinte:

I – O princípio do primado do direito da União Europeia significa que as regras do direito interno (nacional) não podem estabelecer uma solução que viole ou contrarie disposições do ordenamento jurídico europeu.

II – Sendo movida uma execução com base num título formado ao abrigo do procedimento europeu de injunção de pagamento previsto no REGULAMENTO (CE) N.o 1896/2006 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 12 de Dezembro de 2006, no qual o executado não deduziu oposição, não pode o mesmo, com fundamento no direito interno, deduzir embargos nos quais são suscitadas questões não abordadas no âmbito do procedimento europeu de injunção.

III – Tendo sido penhorado um bem (imóvel) pertencente a ambos os cônjuges numa execução movida apenas contra um deles é aplicável a regra prevista no art. 740º do C.P.C. e não o regime a que alude o art. 743º, nº 1, do mesmo Código.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2.1. Factos provados.

Com interesse para a decisão do recurso, importa levar em consideração o despacho recorrido, que contém toda a tramitação relevante para apreciar as questões que o embargante/recorrente suscitou, despacho esse que apresenta o seguinte teor:

DA OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO:

a) Das Ineptidões do Requerimento de Injunção Europeu e do Requerimento Executivo:   

Nos presentes embargos o executado invoca, num primeiro momento, a ineptidão do requerimento de injunção europeu, dizendo para tanto que a exequente se limitou a preencher os campos, fazendo constar na “Nota Explicativa” “INCUMPRIMENTO DE PAGAMENTO DE UM EMPRÉSTIMO”, nada expondo no campo referente a informações adicionais/relevantes, aí tendo junto, para sustentar a sua pretensão, os dois contratos que identificou em 32º, afirmando de seguida a ausência de alegação de quaisquer factos essenciais da causa de pedir complexa, que não se considera suficientemente exposta, vícios que igualmente ocorrem quanto ao valor peticionado, data de vencimento ou data do contrato.

Para fundamentar a ineptidão do requerimento executivo diz que a exequente se limitou a juntar o requerimento de injunção europeia com fórmula executória, nada mais tendo alegado ou invocado, para além de peticionar juros de mora à data de 01/07/2022 e sem qualquer fundamentação.

Após concluir pela nulidade do título executivo dado à presente execução, por inexistência de fundamentação dos factos que lhe servem de base, com a consequente ineptidão, sustenta que a exequente, não só não expôs tais factos no requerimento executivo, não sanando os vícios de que padece o título, como aliás invoca que a quantia de € 17.914,20 se reporta ao saldo negativo de conta corrente a descoberto em nome do executado, assim contrariando o neste particular alegado na injunção, onde fez constar que tal quantia corresponde ao incumprimento do contrato de empréstimo, o que configura distintas realidades.

A exequente contestou, pugnando pela improcedência da exceção invocada, o que fez nos termos vertidos no seu articulado, que por brevidade de exposição aqui se considera reproduzido.

Apreciando:

A injunção a que se reporta a presente execução rege-se pelo Regulamento (CE) n.º1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12/12/2006, que criou um procedimento europeu de injunção de pagamento.         

O Regulamento é um ato jurídico da União, com caráter geral, é obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados-Membros (art.º 288.º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia).

É, pois, diretamente aplicável na ordem interna portuguesa (art. 8º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa).

Conforme consta no considerando n.º 9 do Regulamento, este tem por objetivo simplificar, acelerar e reduzir os custos dos processos judiciais em casos transfronteiriços de créditos pecuniários não contestados, através da criação de um procedimento europeu de injunção de pagamento, e permitir a livre circulação das injunções de pagamento europeias em todos os Estados-Membros, através do estabelecimento de normas mínimas cuja observância torne desnecessário qualquer procedimento intermédio no Estado-Membro de execução anterior ao reconhecimento e à execução.

O procedimento tem por base, tanto quanto possível, a utilização de formulários normalizados para todas as comunicações entre o tribunal e as partes, a fim de facilitar a sua administração e permitir o recurso ao tratamento automático de dados (considerando n.º 11 e arts. 7º, 9º, 10º, 11º, 12º, 16º e 18º do Regulamento).

No requerimento de injunção de pagamento europeia o requerente deverá fornecer informações suficientes para identificar e fundamentar claramente o pedido de modo a permitir ao requerido optar, com conhecimento de causa, entre deduzir oposição ou não contestar o crédito (considerando 13 e art. 7º).

O Tribunal analisará o requerimento, bem como a questão da competência e a descrição das provas, com base nas informações constantes do formulário de requerimento, o que deverá permitir-lhe apreciar prima facie o mérito do pedido e, nomeadamente, excluir pedidos manifestamente infundados ou requerimentos inadmissíveis (considerando 16 e art. 11º).

A injunção de pagamento europeia deverá informar o requerido das opções ao seu dispor, ou seja, pagar ao requerente o montante fixado ou apresentar uma declaração de oposição no prazo de 30 dias, caso pretenda contestar o crédito. Para além das informações completas sobre o crédito fornecidas pelo requerente, o requerido deverá ser informado do alcance jurídico da injunção de pagamento europeia e, em especial, dos efeitos da não contestação do crédito (considerando 18 e art. 12º).

O requerido poderá apresentar a sua declaração de oposição utilizando o formulário normalizado que consta do regulamento. No entanto, os tribunais deverão ter em conta qualquer outra forma escrita de oposição, caso esteja formulada claramente (considerando 23 e art. 16º).

Uma declaração de oposição apresentada no prazo fixado deverá pôr termo ao procedimento europeu de injunção de pagamento e implicar a passagem automática da ação para uma forma de processo civil comum (nos tribunais competentes do Estado de origem), a não ser que o requerente tenha solicitado expressamente o termo do processo nessa eventualidade (considerando 24 e art. 17º).

Após o termo do prazo para apresentar a declaração de oposição, o requerido terá, em certos casos excecionais, o direito de pedir a reapreciação da injunção de pagamento europeia (perante o Estado-Membro de origem). A reapreciação em casos excecionais não deverá significar a concessão ao requerido de uma segunda oportunidade para deduzir oposição. Durante o procedimento de reapreciação, o mérito do pedido não deverá ser apreciado para além dos fundamentos decorrentes das circunstâncias excecionais invocadas pelo requerido. As outras circunstâncias excecionais poderão incluir os casos em que a injunção de pagamento europeia tenha por base informações falsas fornecidas no formulário de requerimento (considerando 25 e art. 20º).

Se no prazo de 30 dias suprarreferido não for apresentada ao tribunal de origem uma declaração de oposição, este declara imediatamente executória a injunção de pagamento europeia, para tal utilizando o formulário normalizado G, constante do Anexo VII, devendo para o efeito o tribunal verificar a data da citação ou notificação (art. 18º n.º 1).

Nessa sequência o tribunal enviará ao requerente a injunção de pagamento europeia executória (art. 18º n.º 3).

Uma injunção de pagamento europeia emitida num Estado-Membro e que tenha adquirido força executiva deverá ser considerada, para efeitos de execução, como se tivesse sido emitida no Estado-Membro no qual se requer a execução.

A confiança mútua na administração da justiça nos Estados-Membros justifica que o tribunal de um Estado-Membro considere preenchidos todos os requisitos de emissão de uma injunção de pagamento europeia, a fim de permitir a execução da injunção em todos os outros Estados-Membros sem revisão jurisdicional da correta aplicação das normas processuais mínimas no Estado-Membro onde a decisão deve ser executada (considerando 27 e art. 21º).

Nos termos do art. 19º do Regulamento, a injunção de pagamento europeia que tenha adquirido força executiva no Estado-Membro de origem é reconhecida e executada nos outros Estados-Membros sem que seja necessária uma declaração de executoriedade e sem que seja possível contestar o seu reconhecimento.

Acresce que o mérito da injunção não pode ser reapreciado no Estado-Membro da execução (art. 22º n.º 3).

O Regulamento prevê duas situações em que o tribunal do Estado-Membro da execução poderá, a pedido do requerido, recusar a execução:

1) se a injunção for incompatível com uma decisão anteriormente proferida em qualquer Estado-Membro ou país terceiro, desde que a decisão anterior diga respeito à mesma causa de pedir e às mesmas partes, a decisão anterior reúna as condições necessárias ao seu reconhecimento no Estado-Membro de execução e não tenha sido possível alegar a incompatibilidade durante a ação judicial no Estado-Membro de origem (art. 22º n.º 1); e

2) se e na medida em que o requerido tiver pago ao requerente o montante reconhecido na injunção de pagamento europeia (art. 22º n.º 2).

O Regulamento também admite que o Tribunal da execução limite o processo de execução a providências cautelares, ou subordine a execução à constituição de uma garantia, ou suspenda a execução, caso o requerido tenha pedido a reapreciação da injunção no Estado-Membro de origem, nos termos do art. 20º do Regulamento (CE) n.º 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12/12/2006.

Revertendo agora à situação ajuizada somos a concluir que a questão ora suscitada e relativa à ausência de causa de pedir do requerimento de injunção europeia o deveria ter sido junto do Tribunal competente do Estado-Membro de origem, nos termos do art. 20º n.º 2 do Regulamento, que prevê após o termo do prazo fixado no n.o 2 do artigo 16.o , o requerido tem também o direito de pedir a reapreciação da injunção de pagamento europeia ao tribunal competente do Estado-Membro de origem nos casos em que esta tenha sido emitida de forma claramente indevida, tendo em conta os requisitos estabelecidos no presente regulamento ou outras circunstâncias excepcionais.

Com efeito, nos termos do art. 7º n.º 2 al. d) do identificado Regulamento o requerimento de injunção de pagamento europeia deve incluir “d) A causa de pedir, incluindo uma descrição das circunstâncias invocadas como fundamento do crédito e, se necessário, dos juros reclamados;”, mais resultando do seu art. 8º que “o tribunal ao qual é apresentado um requerimento de injunção de pagamento europeia analisa, no prazo mais curto possível, com base no formulário de requerimento, se estão preenchidos os requisitos estabelecidos nos artigos 2.o , 3.o , 4.o , 6.o e 7.o e se o pedido parece fundamentado. Esta análise pode assumir a forma de um procedimento automatizado.”, podendo o requerimento ser rectificado ou complementado nos termos do art. 9º.

Por outro lado, deriva do art. 11º al. a) do Regulamento em causa que o requerimento de injunção europeia é objeto de recusa se, entre outras situações, não estiverem preenchidos os requisitos previstos no seu art. 7º.      

Aqui chegados não restam quaisquer dúvidas de que o pressuposto referente à alegação da causa de pedir configura um dos requisitos especialmente previstos nos normativos transcritos, pelo que, a verificar-se a arguida exceção, concluir-se-ia pela indevida emissão do título de injunção de pagamento europeia - por preterição do requisito previsto no art. 7º n.º 1 al. d) do Regulamento.

Pelo exposto, entendemos que a questão em estudo deveria ter sido oportunamente suscitada perante o Tribunal de origem, mediante a formulação de um pedido de reapreciação da injunção, tal como expressamente prevê o art. 20º n.º 2 referido, o que obsta à sua obrigação por este Tribunal. [...]

2.2. Enquadramento jurídico.

A decisão recorrida, amplamente fundamentada, é esclarecedora quanto à improcedência das excepções que o apelante arguiu em sede de embargos e, simultaneamente, no que diz respeito ao não acolhimento da tese defendida a propósito do levantamento da penhora, aderindo esta Relação aos fundamentos que o Tribunal a quo exarou na sentença impugnada.

Importa, apenas, acrescentar o seguinte.

No que concerne ao procedimento europeu de injunção de pagamento que está na origem do título que é executado nos autos principais, resulta à saciedade que o recorrente, no tempo e lugar próprios, não utilizou os mecanismos que se encontram previstos no REGULAMENTO (CE) N.o 1896/2006 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 12 de Dezembro de 2006, designadamente a oposição (art. 16º desse Regulamento) ou a reapreciação (art. 20º do mesmo Regulamento).  

Significa isto que, de acordo com um conjunto de regras vigentes na União Europeia, logo, aplicáveis em Portugal, não se opôs a que se formasse um título com as características do que vem referido no presente litígio, deixando precludir, consequentemente, os meios de defesa que poderia opor à injunção.

Como se salientou no Acórdão da Relação de Lisboa de 12/5/2022 (Aresto disponível em http://www.gde.mj.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/4faf4e0887daf811802588520039dd86?OpenDocument) “Os embargos a execução que tenha como título executivo uma injunção de pagamento europeia devem sujeitar-se ao regime previsto no Regulamento (CE) n.º 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.12.2006, que criou um procedimento europeu de injunção de pagamento.”.        

A entender-se de forma diferente, estaríamos a violar as regras que, por força do Tratado da União, também se aplicam ao nosso Pais, pois permitir-se-ia, ao arrepio do quadro que vigora em todos Estados membros, invocar normas do direito interno para impedir ou obstaculizar a execução de um título formado com base em disposições hierarquicamente superiores [---]".

[MTS]


25/06/2025

Bibliografia (1205)


-- Supremo Tribunal de Justiça (Ed.), I Colóquio de Direito da Família, 2.ª ed. (2024) [OA]

-- Supremo Tribunal de Justiça (Ed.), Comércio, Sociedades e Insolvências, 3.ª ed. (2023) [OA]

-- Supremo Tribunal de Justiça (Ed.), Compra e Venda de Bens de Consumo / Contradição de Julgados como Via de Acesso ao Supremo / Adequação Formal (2023) [OA]

-- Supremo Tribunal de Justiça (Ed.), Processo Penal - Recursos (2022) [OA]

-- Supremo Tribunal de Justiça (Ed.), Tribunais e Inteligência Artificial / Uma Odisseia no Espaço (2023) [OA]

Jurisprudência 2024 (195)


Processo de inventário;
questões prejudiciais; remessa para os meios comuns


I. O sumário de RL 24/10/2024 (464/20.6T8CSC-A.L1-2) é o seguinte:

1. O art.º 1093.º do CPC, como a própria epígrafe indica, só deve ser convocado se estão em causa questões prejudiciais que não se integrem na previsão do artigo anterior, pelo que respeitando a controvérsia à definição de direitos de interessados diretos na partilha, a situação cabe no âmbito do art.º 1092.º n.º 1 al. b) do CPC, que prevê que o juiz remetendo os interessados para os meios comuns, deve determinar a suspensão da instância, sem prejuízo do disposto no n.º 3.

2. O tribunal apenas deve remeter os interessados para os meios comuns, quando as questões prejudiciais a resolver, pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto que lhe está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, tal como expressamente previsto quer no art.º 1092.º n.º 1 al. b), quer no art.º 1093.º n.º 1 do CPC, não contemplando como razão para o efeito a eventual complexidade na resolução das questões de direito.

3. O despacho do juiz de remeter as partes para os meios comuns não é uma decisão discricionária, já que objetivamente vai levar não só um protelamento da decisão, mas também à sujeição das partes a novas despesas e incómodos com um novo processo, apenas se justificando se a decisão incidental se revela inconveniente ou desadequada, atenta a complexidade da matéria de facto subjacente, pela compressão das garantias das partes, sendo a regra a de que o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantam, como prevê o art.º 91.º n.º 1 do CPC.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A decisão recorrida estribou-se no art.º 1093.º n.º 1 do CPC para fundamentar a remessa dos interessados para os meios comuns, com vista à decisão relativa aos direitos de crédito sobre os bens comuns relacionados pelo cabeça de casal nas verbas 1 e 2 da relação de bens, cuja existência a interessada contestou.

O art.º 1092.º do CPC, referindo-se à suspensão da instância, rege nos seguintes termos:

“1-Sem prejuízo do disposto nas regras gerais sobre suspensão da instância, o juiz deve determinar a suspensão da instância:
a) Se estiver pendente uma causa em que se aprecie uma questão com relevância para a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha;
b) Se, na pendência do inventário, forem suscitadas questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas;
c) Se houver um interessado nascituro, a partir do conhecimento do facto nos autos e até ao nascimento do interessado, exceto quanto aos atos que não colidam com os interesses do nascituro.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, o juiz remete as partes para os meios comuns, logo que se mostrem relacionados os bens.
3 - O tribunal pode, a requerimento de qualquer interessado direto, autorizar o prosseguimento do inventário com vista à partilha, sujeita a posterior alteração em conformidade com o que vier a ser decidido:
a) Quando os inconvenientes no diferimento da partilha superem os que derivam da sua realização como provisória;
b) Quando se afigure reduzida a viabilidade da causa prejudicial;
c) Quando ocorra demora anormal na propositura ou julgamento da causa prejudicial.
4 - À partilha, realizada nos termos do número anterior, são aplicáveis as regras previstas no artigo 1124.º relativamente à entrega aos interessados dos bens que lhes couberem.”

Por seu turno, o art.º 1093.º do CPC, com a epígrafe “Outras questões prejudiciais”, estabelece:

“1.Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.
2 - A suspensão da instância no caso previsto no número anterior só ocorre se, a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, o juiz entender que a questão a decidir afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha.

Da conjugação destes dois artigos, verifica-se que o art.º 1092.º n.º 1 al. b) e o art.º 1093.º n.º 1 do CPC, reportando-se ambos a questões prejudiciais, têm um diferente âmbito de aplicação que é delimitado por duas vias: uma objetiva que distingue as questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo das que não respeitem a essa admissibilidade; e uma subjetiva que distingue consoante está em causa a definição de direitos de interessados diretos na partilha ou a definição de direitos que não respeitem a estes interessados.

Na situação em presença a controvérsia está nas verbas 1 e 2 identificadas na Relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, como constituindo um crédito deste sobre os bens comuns.

Se é certo que a questão controvertida não respeita à admissibilidade do processo de inventário, que não está em discussão, a verdade é que se trata da definição de direitos de um interessado direto na partilha, já que é o cabeça de casal que pretende ver reconhecido aquele seu crédito que relacionou.

O art.º 1093.º do CPC, como a própria epígrafe indica, só deve ser convocado se estão em causa questões prejudiciais que não se integrem na previsão do artigo anterior, o que manifestamente não é o caso, uma vez que se verifica a previsão do art.º 1092.º n.º 1 al. b) do CPC.

Os efeitos da decisão da remessa dos interessados para os meios comuns também são, pelo menos num primeiro momento, diferentes, já que de acordo com o art.º 1092.º n.º 1 al. b) o juiz deve suspender a instância, sem prejuízo de autorizar o seu prosseguimento, nos termos e nas situações previstas no n.º 3 deste artigo; em contrário, no âmbito do art.º 1093.º n.º 2 a suspensão da instância não decorre necessariamente da remessa dos interessados para os meios comuns, podendo, no entanto, vir a ser determinada pelo juiz, se verificados os pressupostos previstos em tal norma.

Nestes termos, já se vê que o Recorrente tem razão quando refere que foi indevidamente aplicado o art.º 1093.º n.º 1 do CPC, que visa as questões que não respeitem à definição de direitos de interessados diretos na partilha, já que respeitando a questão em litígio a estes interessados, a situação integra-se no âmbito do art.º 1092.º n.º 1 al. b) do CPC, que estabelece que o juiz deve determinar a suspensão da instância, sem prejuízo do disposto no n.º 3.

- da (in)devida remessa dos interessados para os meios comuns

O Recorrente considera que o tribunal a quo andou mal ao remeter os interessados para os meios comuns, concluindo que os elementos constantes dos autos já permitem reconhecer o seu direito ao crédito identificado na verba n.º 1 relativo ao valor de mais valias que investiu no imóvel comum do casal e quanto ao seu crédito identificado na verba n.º 2 está reconhecida a sua existência “havendo que adaptá-lo à realidade”.

O tribunal a quo afirmou de forma conclusiva que “tal matéria é controvertida e de natureza complexa” e que “a prova que as partes terão de produzir para a decisão da questão em apreço manifestamente extravasa a natureza incidental da reclamação à relação de bens”, remetendo os interessados para os meios comuns.

Vejamos em concreto a questão controvertida que se reporta aos créditos relacionados pelo cabeça de casal nas verbas n.º 1 e 2 da relação de bens, nos seguintes termos:

Verba 1

Crédito do cabeça de casal, ora requerente do montante de € 22.445,00 sobre os bens comuns do casal, montante que foi investido na construção do prédio urbano construído pelo casal, conforme docs n.ºs 1 e 2 que ora se juntam.

Verba 2

Crédito do cabeça de casal, ora requerente do montante de € 117.217,00 sobre os bens comuns do casal, porquanto o lote de terreno onde se encontra implantado o prédio urbano identificado na verba 37 da relação de bens foi comprado pelo requerente em 18 de maio de 2005 no estado de solteiro, conforme documento n.º 3 que ora se junta.

A Requerida veio reclamar da relação de bens apresentada, pugnando pela inexistência destes créditos, afirmando quanto à verba n.º 1 que o cabeça de casal não investiu dinheiro próprio na construção do imóvel comum e quanto à verba n.º 2 que o terreno foi adquirido com recurso a um crédito hipotecário, tendo após o casamento, ocorrido menos de três meses depois da aquisição, o pagamento das prestações ao banco sido suportado por ambos os membros do casal com os seus rendimentos do trabalho.

Na resposta à reclamação, o cabeça de casal veio esclarecer que o valor da verba n.º 1 se reporta às mais valias pela venda de um imóvel próprio, que investiu na construção do imóvel comum, conforme foi declarado em sede de IRS; quanto à verba n.º 2 admitiu que depois do casamento o mútuo hipotecário contraído para a aquisição do terreno foi pago com o rendimento proveniente do trabalho de ambos os cônjuges, retificando o crédito que reclamou nesta verba para a quantia de € 20.550,38 correspondente à diferença do valor de aquisição do terreno e prestações do mútuo bancário que pagou da sua responsabilidade.

Em primeiro lugar, importa sublinhar, que o Recorrente vem agora em sede de recurso suscitar questões novas relativas à verba n.º 2, que não cabe a este tribunal decidir, ainda para mais passando por cima do que foi a sua conduta processual anterior.

O cabeça de casal começou por identificar na verba nº 2 um crédito sobre os bens comuns do casal no montante de € 117.217,50, valor pelo qual adquiriu o terreno onde foi implantado o imóvel comum, no estado de solteiro; na sequência da impugnação da cabeça de casal, o mesmo veio retificar o valor daquele crédito para € 20.550,38 admitindo que o crédito hipotecário depois do casamento foi pago por ambos os cônjuges com os rendimentos do seu trabalho, chegando a este valor somando € 11.721,47 (correspondente à diferença entre o valor de aquisição e o valor do crédito contraído) e € 8.828,64 (relativo a 24 prestações de € 367,86 cada que pagou até 25 de maio de 2007); agora em sede de recurso, passando por cima de tudo isto, recusando a remessa das partes para os meios comuns, vem requerer que este tribunal determine a avaliação do lote de terreno, com vista à definição deste seu invocado crédito.

O recurso tem em vista a alteração da decisão proferida pelo tribunal recorrido e não a tomada de posição sobre questões novas que anteriormente não foram suscitadas pelas partes e objeto de apreciação pelo tribunal a quo.

Não é controvertido e decorre do art.º 627.º nº 1 do CPC que os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões anteriormente apreciadas e decididas pelo tribunal recorrido, e não a pronúncia sobre questões novas- vd. neste sentido, entre outros, e apenas a título de exemplo, o Acórdão do TRL de 14-02-2013, no Proc. 285482/11.6YIPRT.L1-2 in www.dgsi.pt

Como nos diz Brites Lameiras, in Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, pág. 16: “o recurso não visa um segundo julgamento, mas apenas um reexame, por um tribunal superior, do julgamento proferido por um tribunal inferior, e para corrigir eventual erro de que enferme a decisão por este último tomada.”

O que se impõe então avaliar é o invocado erro da decisão que remeteu os interessados para os meios comuns para discutirem as verbas n.º 1 e 2 da relação de bens, não cabendo a este tribunal pronunciar-se sobre diligências requeridas pelo cabeça de casal no recurso.

No processo de inventário, deve o cabeça de casal nomeado proceder à apresentação da relação de bem, nos termos previstos nos art.º 1097.º n.º 1 e 3 al. c) e art.º 1098.º do CPC com especificação, por meio de verbas, dos bens que integram a herança ou, no caso, o património comum dos cônjuges, indicando o seu valor.

Apresentada a relação de bens, podem os restantes interessados reclamar contra ela, nos termos do art.º 1104.º n.º 1 al. d) do CPC, no que a lei vem configurar como um verdadeiro incidente tramitado nos próprios autos, regulamentado no art.º 1105.º do CPC, com a realização das diligências probatórias necessárias com vista à sua decisão – neste sentido diz-nos Carla Câmara in O Processo de Inventário Judicial e o Processo de Inventário Notarial, pág. 70: “Apresentado articulado de oposição, impugnação ou reclamação, prossegue o conhecimento das questões objeto deste requerimento, com a natureza de incidente, podendo ocorrer tantos incidentes quantas as questões suscitadas à apreciação.”

Nos termos do mencionado art.º 1105.º n.º 1 do CPC, tendo sido apresentada reclamação à relação de bens, os interessados que tenham legitimidade para se pronunciar sobre as questões suscitadas têm o prazo de 30 dias para responder, indicando com a resposta a prova que tenham por conveniente, de acordo com o n.º 2 deste artigo, na configuração de uma tramitação processual quanto à apresentação de prova, idêntica à dos incidentes da instância, regulada nos art.º 293.º n.º 1 do CPC.

Quer o reclamante, quer o cabeça de casal, têm o ónus de indicar os elementos de prova no requerimento respetivo em que deduzem a reclamação ou respondem a ela, conforme dispõe o art.º 1105.º n.º 2 do CPC, ao prever que sendo deduzida oposição ou impugnação as provas são indicadas com os requerimentos e resposta.

O tribunal apenas deve remeter os interessados para os meios comuns, quando as questões prejudiciais a resolver, pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto que lhe está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, tal como expressamente previsto quer no art.º 1092.º n.º 1 al. b), quer no art.º 1093.º n.º 1 do CPC.

Como nos dizem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil anotado, vol. II, pág. 544, em anotação ao art.º 1092.º do CPC: “Em princípio, o inventário tem potencialidade para apreciar todas as questões de facto e de direito pertinentes, sem necessidade de recurso aos meios processuais comuns. (…) o facto de a lei aludir à complexidade no apuramento da matéria de facto significa que não se justifica a suspensão a eventual complexidade na resolução de questões de direito.”

No mesmo sentido também se pronuncia Carla Câmara, in O Processo de Inventário Judicial e o Processo de Inventário Notarial, pág. 132 quando refere: “A decisão de qualquer questão, seja ela relativa à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, ou a qualquer outra questão, cabe ao tribunal onde o processo se inventário corre seus termos. É este tribunal, onde corre o processo de inventário, que tem competência para dirimir todas as questões atinentes à definição do acervo hereditário a partilhar e dos interessados pelos quais vai ser partilhado aquele acervo. A remessa das partes para os meios comuns ocorre excecionalmente.

O despacho do juiz de remeter as partes para os meios comuns não é uma decisão discricionária, já que objetivamente vai levar não só um protelamento da decisão, mas também à sujeição das partes a novas despesas e incómodos com um novo processo, apenas se justificando se a decisão incidental se revela inconveniente ou desadequada, atenta a complexidade da matéria de facto subjacente, pela compressão das garantias das partes, sendo a regra a de que o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantam, como prevê o art.º 91.º n.º 1 do CPC.

 No âmbito do processo de inventário, as questões controversas que se coloquem seguem a tramitação dos incidentes, o que pode não se mostrar adequado para assegurar as garantias dos interessados, já que desde logo tem associada uma maior simplificação e limitação probatória do que o processo comum, podendo suscitar-se questões, que pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto subjacente não se coadunem com uma tramitação mais simplificada.

São estes os critérios que têm de estar na base da decisão da remessa dos interessados para os meios comuns, o que implica a avaliação em concreto das questões a dirimir e dos factos que têm subjacentes, salientando-se que não constitui fundamento para remeter os interessados para os meios comuns a insuficiência de meios de prova apresentados pelas partes com vista ao esclarecimento dos factos que alegam – neste sentido, pronunciou-se o Acórdão do TRL de 30-06-2011 no proc. 2083/05.8TMLSB-B.L1-1 in www.dgsi.pt quando refere: “Ora, a lei não faz depender a remessa dos interessados para os meios comuns do facto de algum dos interessados não ter carreado para os autos, quando o podia ter feito, meios de prova conducentes à demonstração dos factos, mas apenas se for de admitir que nos meios comuns tais factos poderão ser mais largamente investigados.”

Se se avaliar em concreto as questões a dirimir e os factos a ela subjacentes invocados pela interessada na oposição à relação de bens e na reposta do cabeça de casal, não pode deixar de verificar-se que não há grande complexidade na matéria de facto que se impõe apurar.

A verba n.º 1 da relação de bens indica um valor que terá sido investido pelo cabeça de casal na construção do prédio comum. Competindo-lhe a prova de tal facto, o mesmo veio invocar que tal corresponde às mais valias que teve com a venda de imóvel anterior, juntando os documentos que teve como pertinentes para o demonstrar, constatando-se que nos respetivos articulados ambos os interessados juntam documentos e só a Requerida arrolou uma testemunha.

Quanto à verba n.º 2 representa um alegado crédito do cabeça de casal pelo facto de ter adquirido o terreno onde foi implantada a construção que é imóvel comum do casal. O cabeça de casal já reconheceu que o mútuo hipotecário relativo àquele terreno, depois do casamento, teve as respetivas prestações pagas por ambos os cônjuges, fixando aquele crédito na quantia que pagou pelo mesmo que não foi abrangida pelo crédito hipotecário, acrescida das prestações que pagou da sua responsabilidade.

Avaliando a controvérsia exposta pelos interessados nos respetivos articulados, não se vê como qualificar de complexa a matéria de facto que lhes está subjacente e que importa apurar, sendo certo que também não se vislumbra que as partes vejam de alguma forma comprimidas as suas garantias, se as questões forem resolvidas incidentalmente, com recurso à prova que cada uma delas oportunamente apresentou.

Em face do que fica exposto, considera-se que não estão reunidos os pressupostos para a remessa das partes para os meios comuns, nos termos previstos no art.º 1092.º n.º 1 al. b) do CPC, para decidir estes dois direitos invocados pelo cabeça de casal, impondo-se a revogação da decisão recorrida que o determinou, devendo os autos prosseguir com a decisão incidental das mesmas no âmbito do processo de inventário."

[MTS]