"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/04/2025

Bibliografia (1194)


-- Danovi, F., La prova contraria (Giuffrè: Milano, 2025)

Nota: trata-se de "una nuova edizione, esattamente tel quel era uscito nel 2004".

24/04/2025

A taxa de justiça e as custas em sentido estrito no incidente de quebra do sigilo profissional



[Para aceder ao texto clicar em Salvador da Costa]


Jurisprudência 2024 (154)


Autoridade de caso julgado;
âmbito subjectivo; âmbito objectivo*

I. O sumário de RL 11/7/2024 (2992/19.7T8ALM.L1-7) é o seguinte:

1. Verificado os pressupostos duma situação em que se imponha o respeito pela “autoridade do caso julgado”, o Tribunal não se deve abster de decidir o pedido correspondente. Pelo contrário, deve decidir e deve fazê-lo em conformidade com a decisão anterior transitada em julgado.

2. No caso dos autos, o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão transitado em julgado, proferido relativamente à mesma relação contratual aqui “sub judice”, mas em processo anterior, sustentou que em causa estaria uma “venda fiduciária em garantia” válida, à qual não se aplicaria, designadamente, a proibição legal do pacto comissório.

3. Considerando que a consequência do incumprimento definito do contrato pelo devedor, numa venda fiduciária em garantia, determina a perda definitiva do direito de propriedade a favor do credor (beneficiário da coisa vendida em garantia), num caso em que o valor económico da coisa vendida é manifestamente superior ao crédito garantido, o afastamento da proibição legal do “pacto comissório” só se torna aceitável se for corrigido, através do instituto do enriquecimento sem causa (Art. 473.º do C.C.), o efeito pernicioso e legalmente inadmissível que decorrerá de o credor fazer definitivamente sua a coisa dada em garantia.

4. Doutro modo, seria permitir o abuso de direito (cfr. Art. 334.º do C.C.), porque a finalidade social e económica da garantia assim prestada não pode servir finalidade diversa e permitir um enriquecimento ilegítimo do credor e sem causa justificativa.


II. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"I- RELATÓRIO

CR e JR intentaram a presente ação de simples apreciação, de execução específica e de condenação, em processo declarativo comum, contra C.B.G.- Imobiliária, S.A., e CG, formulando os seguintes pedidos:

a) Ser reconhecido como venda fiduciária em garantia de um mútuo o contrato celebrado entre os AA. e a R. CBG e usurários os juros cobrados pela R. nesse contrato, com a sua redução à quantia de €15.256,48, ou outra que venha a resultar da aplicação da taxa legal de 7%, a liquidar em execução de sentença; [...]

IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO [...]

2. Do mérito dos pedidos principais.

O Recorrente convocou para reapreciação na presente apelação o mérito de praticamente todos os pedidos formulados na petição inicial, pugnando pela revogação da sentença no sentido de todos eles deverem ser julgados por procedentes, nomeadamente, e desde logo, os 3 pedidos principais.

É verdade que a sentença recorrida julgou a ação parcialmente procedente, condenando a R., C.B.G.- Imobiliária, S.A., a pagar ao A., aqui Recorrente, a quantia de €67.500,00, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento. Mas tal só corresponde à apreciação feita do pedido subsidiário constante da al. f) da petição inicial, pois quanto aos demais pedidos, a decisão final constante da sentença foi no sentido da absolvição dos R.R. “do pedido”.

Sucede que que a sentença recorrida, na verdade, não apreciou nenhum dos pedidos constantes das alíneas a) e b) da petição inicial, apesar de os enunciar (cfr. fls. 239 verso), debruçando-se praticamente em exclusivo sobre o pedido de execução específica, que constava da al. c) do petitório, dele fazendo uma apreciação que é objetivamente conforme à decisão final de absolvição dos R.R. desse pedido.

A sentença não inclui uma única linha para fundamentar a improcedência do pedido formulado na alínea a) da petição inicial, limitando-se a concluir que não poderia haver execução específica de contrato-promessa cujo prazo de vigência cessou (cfr. fls. 240). Ora, o pedido da alínea a) nada tem a ver com o pedido de execução específica que se julgou improcedente.

Dito isto, temos de reconhecer, no entanto, que poderia existir uma razão para essa omissão pronúncia, decorrente do contexto do processado dos autos. Simplesmente essa hipotética razão não é atendível e só poderia resultar dum claro equívoco.

Efetivamente, no que concerne ao pedido da alínea a) da petição inicial, ele suporta-se na alegação de factos e de qualificações jurídicas que já haviam sido apreciadas em anterior ação judicial, que correu termos no extinto 2.º Juízo Central Cível de Almada, sob o n.º 1626/12.5TBMTJ, no qual figuravam, como A.A.: CR e MJ, respetivamente a co-A. nesta ação e a filha do aqui Recorrente; e como R.R.: a C.B.G. – Imobiliária, S.A. e JR, que são, respetivamente, a 1.ª R., que é um dos aqui Recorridos, e o A., que é Recorrente na presente apelação.

Nessoutra ação, relativamente à qual, patentemente, não havia coincidência absoluta entre as partes aí em litígio por reporte às da presente, também não havia coincidência de pedidos, pois ali pretendia-se apenas que fosse declarada a nulidade, por simulação, do contrato de compra e venda da herdade de … celebrado entre C.B.G. – Imobiliária, S.A. e JR, com o consequente cancelamento da inscrição do registo da propriedade a favor da sociedade R..

Não havendo coincidência absoluta das partes, nem havendo sequer uma mínima semelhança entre os pedidos formulados nas duas ações, existia, no entanto, uma coincidência parcial dos factos que serviam de causa de pedir às mesmas. Por isso, muitos dos factos dados por provados na presente ação são precisamente os mesmos que foram provados no processo n.º 1626/12.5TBMTJ, tal como se mostra refletido na factualidade da sentença aqui recorrida (v.g. factos provados 1 a 34 e facto 37, alíneas “A” a “AAA”).

Mais, a ação anterior, que correu termos sob o n.º 1626/12.5TBMTJ, veio a ser julgada improcedente por não provada, sendo os ali R.R. absolvidos do pedido de declaração de nulidade do contrato de compra e venda, por alegada simulação, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de junho de 2017, transitado em julgado em 18 de setembro de 2017 (cfr. certidão junta de fls. 41 verso a 61 verso), porque se julgou que não se verificavam os requisitos da simulação, mas também por se ter feito uma qualificação jurídica diversa do negócio efetivamente celebrado, configurando-o como um “venda fiduciária em garantia” (cfr. págs. 23 a 39 do cit. doc. n.º 12 junto com a petição inicial – v.g. fls. 53 a 61).

Precisando melhor a situação, verificamos que, em função do teor desse acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, percebe-se que o tribunal de 1.ª instância julgou a ação procedente, reconhecendo a existência de simulação e, portanto, que haveria divergência entre a vontade real e a declarada, com o propósito de enganar terceiros, fundada num acordo simulatório (cfr. Art. 240.º n.º 1 do C.C.), porque os vendedores não queriam vender, nem os compradores pretenderiam comprar a dita herdade da YY (cfr. cit. doc. pág. 17 a fls. 50). No entanto, o Tribunal da Relação alterou a matéria de facto e julgou não se verificarem os requisitos da simulação previstos no Art. 240.º n.º 1 do C.C. (cfr. cit. doc. págs. 17 e 18  a fls. 50 e verso), considerando antes que estaria em causa a figura típica da “venda fiduciária em garantia” (cfr. cit. doc. a págs. 19 e 20 a fls. 51 e verso). Só que, nessa sequência, ponderou a circunstância de, subjacente a esse negócio, estar um contrato de mútuo suscetível de ser tido por inválido, seja por usura, seja por ser abusivo ou contrário à lei, ao abrigo dos Art.s 280.º, 282.º, 294.º e 334.º do C.C. (cfr. cit. doc. a pág. 20 a fls. 51 verso), sendo que no caso haveria negócio usurário por terem sido violados os limites legais impostos à taxa de juro aplicável aos contratos de mútuo, nos termos do Art. 282.º, 1146.º n.º 1 e 559.º do C.C. (cfr. cit. doc. a pág. 20 a fls. 51 verso) e, caso o imóvel se mantivesse na esfera da R., o contrato de compra e venda seria contrário à lei, com conteúdo ilícito proibido pelo Art. 280.º do C.C. (cfr. cit. doc. pág. 21 a fls. 52). Foi por esse motivo que o Tribunal da Relação manteve a decisão recorrida, proferida pela 1.ª instância, de declarar a nulidade do negócio jurídico de compra e venda, mas com uma fundamentação jurídica completamente diversa, que na verdade nem sequer havia sido alegada pelas A.A. dessa ação, segundo se depreende.

O Supremo Tribunal de Justiça veio a revogar o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, julgando a ação improcedente, confirmando a apreciação feita pela Relação relativamente à falta de verificação dos requisitos da simulação (cfr. cit. doc. pág. 22 a fls. 51 verso) e concordando também com a qualificação jurídica feita em termos de entender que os factos apurados se deverem subsumir a uma “venda fiduciária garantida” (cfr. cit. doc. pág. 23 a fls. 53). No entanto, considerou que não colhiam os argumentos aí expedidos no sentido da nulidade do contrato de compra e venda, mesmo reconhecendo que ao mútuo da quantia de €265.000,00, pelo prazo de 10 meses, não poderia corresponder o reembolso da quantia mutuada acrescida de €110.000,00, porque tal implicaria juros muito superiores ao limite legal de 7% (4% + 3%), que decorreria da aplicação dos juros legais previstos no Art. 559.º do C.C., conjugado com a Portaria n.º 291/2003 de 8/4 e tendo em atenção o disposto no Art. 1146.º n.º 1 do C.C. (cfr. cit. doc. pág. 31 a fls. 57).

Do teor desse douto acórdão do Supremo percebe-se que a questão foi apreciada nesses termos, porque não havia sido formulado pelas A.A. o pedido de redução dos juros, ao abrigo do Art. 1146.º n.º 3 do C.C., mas apenas de nulidade da compra e venda por simulação (cfr. cit. doc. a pág. 31 a fls. 57). Também se discordou que houvesse usura do contrato de mútuo subjacente, caso a venda se mantivesse e o prédio continuasse na esfera jurídica da R., porque se os juros fossem reduzidos, nos termos do n.º 3 do Art. 1146.º do C.C., deixaria de haver usura, sendo que a circunstância de o valor do prédio ser superior ao valor do mútuo e dos juros com o limite legal, não implica só por si a nulidade da compra e venda (idem pág. 31 a fls. 57).

No final, o Supremo Tribunal de Justiça afirma explicitamente que: «Haverá, assim, que concluir que, daquela matéria de facto, não resultam elementos bastantes para apurar, com segurança, a existência duma situação que implique a nulidade ou anulação do referido contrato de compra e venda» (cfr. cit. doc. a pág. 39). Ou seja, julgou-se que não havia nulidade por simulação, porque não se provaram os factos integradores dos pressupostos desse tipo de vício do negócio jurídico, nem qualquer outra invalidade que pudesse ser conhecida “com segurança”, sustentada na existência de um contrato de mútuo usurário ou de compra e venda usurária, abusiva ou contrária à lei.

Em que é que releva esta decisão para o caso dos autos?

É que os R.R., na sua contestação, vieram alegar a exceção do caso julgado, com fundamento na existência de repetição da mesma ação, com discussão dos mesmos factos e das mesmas pretensões que estavam subjacentes aos dois processos em menção.

Sucede que, no despacho saneador, e como era por demais evidente, essa exceção foi julgada por improcedente, desde logo, por não haver identidade entre as partes, mas fundamentalmente porque os pedidos eram completamente diversos nas duas ações. No entanto, no final, reconheceu-se que haveria que ponderar a “autoridade do caso julgado”, de tal forma que não poderiam as partes discutir neste processo que a relação contratual estabelecida entre A.A. e a R. CBG seria uma “venda fiduciária garantida”.

Efetivamente, ficou aí consignado que:

«4. Relativamente à questão da autoridade do caso julgado, verificamos que os RR. declaram, na contestação, a sua discordância relativamente ao enquadramento jurídico efetuado pelo Supremo Tribunal de Justiça, no sobredito Processo nº 1626/12.5TBMTJ, quanto ao negócio celebrado pelas partes.

«Porém, tendo ambas as partes intervindo no referido Processo, mostram-se vinculadas aos fundamentos da decisão aí proferida, sendo certo que a qualificação de negócio como fiduciário em garantia constitui pressuposto lógico indispensável da improcedência dessa ação, logo, impõe-se às partes no âmbito da figura da autoridade do caso julgado.

«Não é, consequentemente, lícito aos RR. discutir essa qualificação, a qual se mostra definitivamente assente por força do trânsito em julgado daquele Acórdão.

«5. Em conclusão:

«a) Julga-se improcedente a exceção dilatória da exceção de caso julgado, invocada pelos RR.;

«b) Julga-se legalmente inadmissível a discussão, no âmbito dos presentes autos, da qualificação do negócio celebrado pelas partes como uma venda fiduciária em garantia, por força da autoridade de caso julgado produzida pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no Processo nº 1626/12.5TBMTJ» (cfr. fls. 209 verso).

Sucede que, se é com base nesta decisão que se defende que não poderia ser apreciado o mérito do pedido formulado na alínea a) da petição inicial da presente ação, tal traduz-se num erro de julgamento sustentado em raciocínio que não tem qualquer fundamento.

Efetivamente, a “autoridade do caso julgado” não tem como consequência legal que o tribunal deva abster-se de conhecer os pedidos que tenham sido formulados em coerência com o julgamento de ação anterior, onde foi proferida decisão definitiva, transitado em julgado. Muito pelo contrário, seria por força da autoridade do caso julgado que parte substancial desse primeiro pedido deveria ser julgado por procedente, e logo no despacho saneador, já que o tribunal a quo entendeu que as partes não mais poderiam discutir entre si a qualificação jurídica do negócio que as vinculava.

O que não poderia acontecer era, como aconteceu nos autos, reconhecer que se verificava uma situação de “autoridade do caso julgado”, impondo às partes a inibição de discutirem a qualificação jurídica do negócio, nomeadamente no que se refere à existência duma “venda fiduciária em garantia” e depois, perante um pedido dos A.A., pelo qual se pretendia explicitamente que fosse reconhecido como “venda fiduciária em garantia” o contrato celebrado entre A.A. e R., não julgar logo esse pedido como procedente, acabando por, laconicamente, absolver os R.R. de todos os pedidos principais dos A.A., sem fundamentar minimamente essa decisão, que até é contraditória com o que havia sido expressamente decidido no despacho saneador que, nessa parte, por não ter sido objeto de qualquer recurso, até fez caso julgado formal no processo (cfr. Art. 620.º do C.P.C.).

Como é sabido, as decisões judiciais transitam em julgado logo que não sejam suscetíveis de recurso ordinário ou reclamação (cfr. Art. 628.º do C.P.C.).

Prevê o Art. 619.º n.º 1 do C.P.C. que: «Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º».

O caso julgado traduz assim a força obrigatória da estabilidade das sentenças ou dos despachos que recaiam sobre a relação controvertida objeto da ação e tem como finalidade imediata evitar que, em novo processo, o juiz possa validamente apreciar e considerar um direito, situação ou posição jurídicas, em termos distintos dos já concretamente definidos por anterior decisão, vinculando-o desse modo a essa decisão.

Neste contexto, identifica a Doutrina a verificação de um efeito positivo e negativo do caso julgado. Do efeito positivo, também denominado por “autoridade de caso julgado”, resulta a conclusão de que a decisão assim proferida vincula ou impõe ao tribunal uma decisão na apreciação do mérito do objeto de outra decisão posterior. Já o efeito negativo, configurado como “exceção de caso julgado”, determina uma proibição ou impedimento de o tribunal voltar a decidir, do mesmo modo ou de modo distinto, uma questão já decidida (vide, a propósito: Rui Pinto, in Revista Julgar on line, novembro 2018; Ac. do TRC de 20/10/2015, Proc. n.º 231514/11.3YIPRT.C1; e Miguel Teixeira de Sousa em anotação ao Ac. do TRP de 6/6/2016 - Proc. n.º 1226/15.8T8PNF.P1, disponível em https://blogippc.blogspot.com).

Estas duas vertentes do caso julgado têm consequências jurídicas diversas e sustentam-se em pressupostos não coincidentes.

O caso julgado, enquanto exceção dilatória nominada, pressupõe a verificação necessária da repetição da mesma causa, no pressuposto de que existe identidade das partes, do pedido e da causa de pedir, tendo como consequência legal a absolvição do R. da instância, devendo o tribunal, por força dela, abster-se repetir a mesma decisão (cfr. Art.s 577.º al. i), 578.º, 580.º e 581.º do C.P.C.). Nesta vertente negativa, o caso julgado funciona como proibição de repetição da causa e como proibição de contradição (vide: João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa in “Manual de Processo Civil”, Vol. I, AAFDL, 2022, pág. 641).

O mesmo não sucede exatamente com a vertente positiva do caso julgado, decorrente da verificação duma situação de respeito pela “autoridade do caso julgado”, que impõe a decisão judicial anterior no julgamento do novo processo, condicionando o seu sentido, em situações em que não exista uma efetiva repetição da mesma causa, nomeadamente por não existir uma identidade absoluta das partes, do pedido e causa de pedir, mas pressupondo que haja uma relação de prejudicialidade, subsidiariedade legal ou de consunção entre o objeto de uma decisão anterior e o objeto da ação posterior. [...]

Nesta vertente positiva, como referem João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa (in “Manual de Processo Civil”, Vol. I, AAFDL, 2022, pág. 641 a 642): «Se se repropuser a questão como fundamento (e não como objeto do pedido), o juiz tem de decidir a questão nos termos do julgado estabelecido (…) se o caso julgado for favorável ao autor, isso implica que o tribunal da causa posterior tem de repetir a decisão anterior (…) se o caso julgado for favorável ao réu, o tribunal da segunda ação tem de o absolver de qualquer pedido incompatível  com a decisão anteriormente transitada (…)» [...]

Em suma, verificados os pressupostos duma situação em que se imponha o respeito pela “autoridade do caso julgado”, o Tribunal não se deve abster de decidir. Pelo contrário, deve decidir e deve fazê-lo em conformidade com a decisão anterior transitada em julgado.

No caso dos autos, tudo leva a crer que o tribunal não decidiu o pedido constante da alínea a) da petição inicial – é só essa a conclusão a retirar do despacho saneador que omite qualquer decisão condenatória ou declaratória do reconhecimento do direito – e, se o decidiu na sentença final, nomeadamente quando absolveu os R.R. “do pedido”, decidiu precisamente em sentido contrário da decisão transitada em julgado anterior, tendo em atenção o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no Proc. n.º 1626/12.5TBMTJ e, bem assim, o despacho saneador proferido nestes autos, que nessa parte, como vimos, também transitou em julgado.

Dito isto, no caso dos autos, poder-se-ia discutir se se poderia falar duma situação efetiva de “autoridade de caso julgado”, porque na verdade, na ação anterior, que correu termos sob o n.º 1626/12.5TBMTJ, tendo em atenção o teor do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que aí veio a ser produzido [...], a questão da existência duma “venda fiduciária em garantia” era, em princípio, completamente irrelevante para a improcedência do pedido de declaração de nulidade da compra e venda com fundamento na simulação absoluta desse negócio jurídico.

A procedência do pedido formulado naquela ação estava dependente, apenas e só, da prova da existência de divergência entre a vontade real e a declarada e dum acordo simulatório com vista a enganar terceiros (cfr. Art. 240.º n.º 1 do C.C.). No final de contas, a improcedência desse pedido sustentou-se na mera constatação de que as A.A. nessa ação não provaram nenhuma divergência entre a vontade real e a declarada, nem que tivesse existido qualquer acordo simulatório para enganar terceiros, como era seu ónus (cfr. Art. 342.º n.º 1 do C.C.).

Numa apreciação sumária da questão de fundo, poderíamos facilmente concluir que a configuração dessa relação jurídica como uma “venda fiduciária em garantia” nem sequer se poderia dizer como correspondente à prova duma factualidade nova suscetível de integrar uma “exceção perentória” que levaria à inevitável improcedência da ação. No fundo, a ação improcederia apenas, porque as A.A. não provaram os factos constitutivos do seu direito (cfr. Art. 342.º n.º 1, conjugado com o Art. 240.º n.º 1 do C.C.) e, isso, era quanto bastava.

No entanto, o Tribunal da Relação, ao apreciar o mérito da sentença recorrida no n.º 1626/12.5TBMTJ, sustentou que esse negócio jurídico seria de qualquer modo nulo, porque a ele estaria subjacente um contrato de mútuo usurário e uma venda abusiva e contrária à lei (imperativa). É nesse contexto que aparecem, pela primeira vez – ao que tudo indica sem que as partes sobre tal se tenham pronunciado antes –, as qualificações jurídicas relacionadas com a “venda fiduciária em garantia” e a relevância da existência dum “contrato de mútuo usurário”, nomeadamente no que se refere aos juros.

Na prática, a “venda fiduciária em garantia” acaba por funcionar como o “negócio jurídico real” efetivamente querido pelas partes outorgantes, afastada que ficou a alegada existência duma “venda simulada”.

Por seu turno, o “mútuo usurário” foi chamado à colação como causa nova de invalidade do negócio jurídico da venda da herdade da YY, por a esta estar subjacente.
Em qualquer caso, a matéria de facto alegada e provada permitia estes enquadramentos jurídicos, que foram aceitos e discutidos, precisamente nesses termos, quer pelo Tribunal da Relação, quer pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr. doc. n.º 12 junto com a petição inicial de fls. 41 verso a 61 verso), ainda que com consequências finais diversas quanto à apreciação do mérito da causa, que se prendia apenas com a apreciação a validade da compra e venda da herdade da YY.

No final, propiciou-se uma legitima discussão jurídica, permitida no quadro legal do Art. 5.º n.º 3 do C.P.C., que enlaçou as partes nos seus termos, sem que se tenha suscitado qualquer invalidade sobre as pronúncias assim feitas. [...]

Nos presentes autos, não se discute a validade da compra e venda. Pelo contrário, os A.A. pressupõem a validade de todos esses negócios jurídicos, em respeito pela decisão final, transitada em julgado, no Proc. n.º 1626/12.5TBMTJ. Mas pedem, em coerência com essa mesma decisão final, produzida pelo Supremo Tribunal de Justiça, para: «a) Ser reconhecido como venda fiduciária em garantia de um mútuo o contrato celebrado entre os AA. e a R. CBG e usurários os juros cobrados pela R. nesse contratocom a sua redução à quantia de €15.256,48, ou outra que venha a resultar da aplicação da taxa legal de 7%, a liquidar em execução de sentença».

Em bom rigor, se se entender que é devido o respeito pela autoridade do caso julgado, a decisão final que se impunha era reconhecer que a relação contratual formalizada entre os A.A. e a R. CBG, através da escritura de compra e venda de 4 de agosto de 2008 (cfr. doc. de fls. 31 verso a fls. 34), conjugada com o contrato promessa para recompra da mesma herdade, outorgado na mesma data (cfr. doc. de fls. 122 verso a fls. 124 verso), é uma “venda fiduciária em garantia”. Sendo certo que à mesma conclusão se chegaria, mesmo que se entendesse não se verificar no caso efetiva necessidade de respeito pela autoridade do caso julgado, porque os factos provados constantes dos pontos 6 a 8 e 13 a 23 na sentença recorrida são suficientes para se chegar a essa configuração jurídica.

No que se refere ao segmento seguinte da alínea a) do pedido formulado pelos A.A. na sua petição inicial – relativo ao reconhecimento de que os juros do contrato de mútuo, subjacente à compra e venda e promessa de recompra, são usurários – a sua procedência deve resultar do simples cálculo aritmético e da coerência da decisão com o exposto no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo n.º 1626/12.5TBMTJ.

De facto, a R. emprestou €265.000,00 aos A.A., através do pagamento do preço de compra da herdade da YY, mas os A.A. teriam de restituir o capital mutuado, acrescido de juros, através da recompra da herdade, pelo pagamento do preço de €375.000,00, tal como convencionado no contrato-promessa outorgado no mesmo dia da escritura de compra e venda (4 de agosto de 2008), devendo a escritura de “recompra” ser outorgada até 31 de maio de 2009 (cfr. cláusula terceira do cit. doc. a fls. 123). Portanto, o valor de recompra correspondia ao reembolso do capital mutuado, de €265.000,00, acrescido de €110.000,00, estes últimos devidos a título de juros.

Como foi reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do processo anterior, a taxa de juros não poderia exceder os juros legais (à taxa de 4% de acordo com a Portaria n.º 291/2003 de 8/4) em mais de 3%, sob pena de serem havidos por usurários (cfr. Art. 1146.º n.º 1 do C.C.). Pelo que, facilmente se constata que entre 4 de agosto de 2008 (data em que os A.A. receberam o preço/quantia mutuada) e 31 de maio de 2009 (data em que deveriam recomprar o imóvel, por força do contrato-promessa), os juros não poderiam exceder €15.246,58 (calculado no sítio: https://www.calculodejuros.pt/juros-taxa-variavel.aspx pela inserção dos seguintes dados: quantia: 265.000; taxa de juro: 7%; data de início de contagem: 4/8/2008; data de fim da contagem: 31/5/2009).

Consequentemente, o acordo nos termos do qual implicaria que os A.A. tivessem de pagar, no caso concreto, €110.000,00 a título de juros no dia 31 de maio de 2009, permite-nos concluir, sem margem para dúvida, que os juros cobrados pela R. eram usurários, devendo proceder, também nesse segmento, do pedido constante da alínea a) o pedido formulado.

Quanto ao segmento final desse pedido, em que se pretendia ver reconhecida a redução dos juros para a quantia de €15.256,48, tendo em atenção o disposto no Art. 1146.º n.º 3 do C.C., deve ser corrigido esse valor para 15.246,58, tendo em conta a data de vencimento da obrigação inicialmente estabelecida para o dia 31 de maio de 2009.

Resta ainda dizer que o pedido dos A.A., tal como formulado na petição inicial, reportava-se apenas ao cálculo dos juros até ao termo do contrato-promessa inicial outorgado em 4 de agosto de 2008. Ora, resulta da matéria de facto que depois houve uma renegociação posterior que levou à outorga de um segundo contrato-promessa, que tinha outra data de termo final. No entanto, como o pedido formulado referia-se ao cálculo dos juros até 31 de maio de 2009, a decisão de reconhecimento da usura dos juros e do cálculo da correspondente redução dos juros devidos deve respeitar os limites objetivos desse pedido (cfr. Art. 609.º n.º 1 do C.P.C.).

É neste termos que deverá proceder o pedido formulado na alínea a) da petição inicial.

*III. [Comentário] Segundo resulta dados referidos no acórdão,

-- As partes da acção anterior foram, como autores, CR e JR e, como demandados, C.B.G.- Imobiliária, S.A., e CG;

-- As partes da presente acção são, como autores, CR e MJ, e, como réus, C.B.G. – Imobiliária, S.A. e JR.

Nestas condições, apenas com recurso a uma aceitação (ainda que tácita) do caso julgado favorável da decisão proferida na anterior acção se pode falar de autoridade de caso julgado em relação a a MJ (segundo se percebe, filha de CR).

No entanto, é discutível que a qualificação do contrato e venda como uma "venda fiduciária em garantia" realizada na anterior acção pudesse, em qualquer hipótese, fundar a excepção ou a autoridade de caso julgado, dado que essa qualificação não pode ser considerada como um antecedente lógico necessário da decisão que não se pronuncia nem pela nulidade, nem pela nulidade do referido contrato.

MTS

23/04/2025

Bibliografia (1193)


-- Henke, A. / Randazzo, B. / Voet, S. (Coord.), L’azione di classe italiana nel quadro europeo: profili sostanziali e processuali (Giappichelli: Torino 2025)


22/04/2025

Paper (526)


-- Hatamipour, N., The Appropriate Forum for Collision Actions (SSRN 04. 2025)


Jurisprudência 2024 (153)


Prestação de alimentos;
filho maior; limites


1. O sumário de RC 18/6/2024 (324/11.1TBCTB-G.C1) é o seguinte:

I – A Lei nº 122/15 de 1 de Setembro veio introduzir um nº2 ao artº 1905 do CC, no qual se explicitou, de forma inequívoca, que se mantem para depois da maioridade a pensão fixada em benefício do filho - agora maior - durante a sua menoridade e até que perfaça os 25 anos.

II – Cabe ao progenitor, obrigado ao pagamento de alimentos ao filho menor, o ónus de intentar acção com vista à sua cessação, após a maioridade (artº 989, nº2 do C.P.C.), por apenso à acção onde foram fixados, invocando para o efeito a ocorrência de um dos requisitos constantes deste normativo: a conclusão do processo de educação ou formação profissional do filho; a interrupção desse processo por acto voluntário do filho; a irrazoabilidade da exigência de alimentos ou a sua impossibilidade para os prestar.

III – A maioridade do credor de alimentos não obsta a que se possa recorrer aos mesmos meios coercitivos para a sua cobrança, que os conferidos para protecção dos filhos menores, nomeadamente, os previstos nos artºs 41 e 48 do RGPTC.

IV – No entanto, a legitimidade para os peticionar cabe ao filho maior, credor destes alimentos, ou ao progenitor que assuma o encargo principal de pagar as despesas dos filhos maiores (artº 989, nº3 do C.P.C.) e não ao M.P. face ao estatuído nos art.º s 1º, 2º, 4º, n.º 1, al. i) e 9º, n.º 1 al. d) da Lei 68/2019, de 27/08.

V – É aplicável aos créditos por alimentos os limites de impenhorabilidade previstos no artº 738, nº 4, do C.P.C., ou seja, são impenhoráveis quantias equivalentes à totalidade da pensão social do regime não contributivo.

VI – Apesar deste limite, o tribunal pode sempre ajustar os descontos à real situação e necessidades dos progenitores e dos menores, salvaguardando limite superior ao mínimo legal, quando o julgue indispensável a assegurar a sobrevivência condigna do progenitor.

VII – Para tanto, não basta ao progenitor, devedor destes alimentos, invocar que se encontra a receber subsídio de doença e que sobrevive com dificuldades, atendendo ao facto de este estado e subsídio ter natureza temporária e variável, o progenitor nunca ter pago qualquer quantia a título de alimentos aos seus filhos (durante mais de 4 anos) e a necessidade de ser assegurada uma subsistência condigna ao filho menor.

VIII – A intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos a Menores para que, em substituição do progenitor faltoso, assegure o pagamento da obrigação de alimentos nos termos definidos pela Lei nº 75/98 (na redacção introduzida pela Lei nº 24/2017), deve ser requerida pelo Ministério Público ou por aqueles a quem a prestação de alimentos deveria ser entregue (artº 3, nº1), em caso de impossibilidade de cobrança destes alimentos e limita-se apenas às prestações que se vencerem após decisão que fixe o montante a pagar pelo FGADM.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Estipulada a regulação do poder paternal de menores é esta vinculativa para ambos os progenitores, impondo o seu cumprimento escrupuloso.

Com a alteração legislativa verificada com a introdução da Lei 141/2015, este incidente regulado anteriormente no artº 181 da OTM e agora nos artºs 41 e segs. do RGPTC, prevê a imediata tomada de medidas destinadas a obter o pagamento forçado das prestações em dívida, que abrangerá as prestações vincendas, através da dedução das quantias necessárias nos rendimentos regulares que o devedor tiver a receber de terceiro.

Nestes termos, do disposto no artº 41 nº 1 do RGPTC, decorre que “Se, (…) um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos.”, designando conferência de pais, ou excepcionalmente, notificar o requerido para, no prazo de cinco dias, alegar o que tiver por conveniente.(nº3.)

Os presentes autos foram instaurados ao abrigo do art.º 48.º do RGPTC, o qual estabelece diversos meios de cobrança expedita e coerciva dos alimentos devidos, quando não for voluntariamente satisfeita a prestação nos 10 dias seguintes ao vencimentoadoptando-se as seguintes providências:

“a) Se for trabalhador em funções públicas, são-lhe deduzidas as respetivas quantias no vencimento, sob requisição do tribunal dirigida à entidade empregadora pública;

b) Se for empregado ou assalariado, são-lhe deduzidas no ordenado ou salário, sendo para o efeito notificada a respetiva entidade patronal, que fica na situação de fiel depositário;

c) Se for pessoa que receba rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes, a dedução é feita nessas prestações quando tiverem de ser pagas ou creditadas, fazendo-se para tal as requisições ou notificações necessárias e ficando os notificados na situação de fiéis depositários.

2 - As quantias deduzidas abrangem também os alimentos que se forem vencendo e são diretamente entregues a quem deva recebê-las.

É aplicável aos créditos por alimentos os limites de impenhorabilidade previstos no artº 738, nº4, do C.P.C., ou seja, são impenhoráveis quantias equivalentes à totalidade da pensão social do regime não contributivo.

Ora, como a pensão social no regime não contributivo foi actualizada para o ano de 2024, pelo artº 18 da Portaria n.º 424/2023 de 11 de Dezembro, para o montante de € 245,79, constituindo este montante o valor intocável pelas deduções ordenadas, o despacho recorrido viola esta disposição, tendo em conta que ao recorrente é pago subsídio de doença no montante de € 379,80.

No entanto, atendendo à revogação deste despacho no que se reporta aos alimentos devidos à filha maior, o valor final enquadra-se neste preceito (52,00+€40,00-€379,80 = € 287,80).

Alega, no entanto, o recorrente, que o valor que resta não assegura a sua subsistência condigna, sobrevivendo da ajuda de familiares.

Efectivamente o artº 1 e 2 da Constituição consagram o direito fundamental a uma existência condigna, fundado no respeito pela dignidade humana, que cabe ao Estado assegurar pelo estabelecimento de regimes de solidariedade social, designadamente mediante a atribuição de prestações de natureza social, como os rendimentos de reinserção social, os subsídios de desemprego e de doença, etc. Este direito encontra ainda consagração no artº 63, nº1 e 3 da Constituição que, conforme afirmado no Ac. do Tribunal Constitucional nº 509/2002 “garante a todos o direito à segurança social e comete ao sistema de segurança social a proteção dos cidadãos em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho, implica o reconhecimento do direito ou da garantia a um mínimo de subsistência condigna”.

Ao legislador ordinário é reconhecida, no entanto, ampla margem de conformação deste sistema de protecção, desde que seja assegurado, o mínimo indispensável a uma subsistência condigna.

Este princípio que determinou a limitação constante do referido nº 4 do artº 738 do C.P.C., resulta ainda de anterior entendimento expresso em Acórdão do Tribunal Constitucional nº 62/2002 (publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Março de 2001), a respeito dos artºs 821, nº 1 e 824, nº 1 al. b) e nº 2 do anterior regime processual civil, no qual se decidiu “julgar inconstitucionais, por violação do princípio da Dignidade Humana contido no princípio do Estado de Direito, tal como resulta das disposições conjugadas dos artigos 1.º e 63.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República, os artigos 821.º, n.º 1 e 824.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual são penhoráveis as quantias percebidas a título de rendimento mínimo garantido” tendo em conta que “a prestação de segurança social em causa não exceder o mínimo adequado e necessário a uma sobrevivência condigna.”

Não estando em causa nestes autos um verdadeiro acto de penhora, a natureza do acto para efeitos de impenhorabilidade e de controlo do cumprimento constitucional dos direitos ínsitos nos artºs 1 e 2 da nossa Constituição, é irrelevante, uma vez que, conforme se refere em Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 306/2005 “O que conta é tratar-se de uma providência judicial de apreensão e afectação de certa parcela de rendimentos periódicos daquela natureza (pensões sociais ou retribuição do trabalho por conta de outrem) à satisfação coerciva de dívidas do seu titular, com a consequente possibilidade de a diminuição do respectivo rendimento disponível lhe não permitir a satisfação das necessidades básicas em termos compatíveis com a dignidade da pessoa humana.”

 Ainda sobre a possibilidade de dedução de uma parcela da pensão social, no caso de invalidez, de um progenitor, para satisfação da prestação de alimentos devida a filhos menores, veio pronunciar-se o aludido Acórdão, considerando que aos pais cabe “o dever constitucionalmente autonomizado como dever fundamental e de cujo feixe de relações a prestação de alimentos é o elemento primordial. É o que directamente resulta de no n.º 5 do artigo 36.º da Constituição se dispor que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos” e que há que ter em consideração que nestes casos “entram em colisão o dever e o direito correlativo de manutenção dos filhos pelos progenitores, situação em que, de qualquer dos lados, fica em crise o princípio da dignidade da pessoa humana, vector axiológico estrutural da própria Constituição (…) até que as necessidades básicas das crianças sejam satisfeitas, os pais não devem reter mais rendimento do que o requerido para providenciar às suas necessidades de auto-sobrevivência.

É este essencialmente o princípio a considerar. Aos progenitores cabe o dever de manutenção dos seus filhos, assegurando-lhes níveis de subsistência condigna. Há que referir que ao filho menor deveriam ser prestados alimentos no valor de € 52, valor muito inferior (pressupondo que o outro progenitor estará obrigado a prestação de igual montante) àquele que é o RSI. Na realidade como afirma este Acórdão que vimos referindo, é este o valor que “ no subsistema de solidariedade social se assume como o mínimo dos mínimos compatível com a dignidade da pessoa humana.

Por essa razão, arguida a inconstitucionalidade deste preceito, veio o Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº 54/2022, não julgar “ inconstitucional a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 48° do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (R.G.P.T.C.) em conjugação com o n.º 4 do artigo 738.º do Código do Processo Civil, quando interpretada no sentido de não estabelecer nenhuma diferenciação, fundada na natureza ou no montante dos rendimentos da pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos, e de não estabelecer como limite mínimo de aplicabilidade a preservação de montante equivalente ao valor do IAS.”

É certo que estes juízos explanados nos Acórdãos acima citados se referem à compatibilidade destas normas com a Constituição, não proibindo o tribunal de, no caso concreto, ajustar os descontos à real situação e necessidades dos progenitores e dos menores.

Mas, no caso em apreço, não basta que o progenitor venha invocar que se encontra a receber um subsídio de doença e que sobrevive com dificuldades, tendo em conta que este subsídio sofreu variações, sendo o valor agora fixado a partir de Dezembro, tem natureza temporária e não foi seguramente a causa do não pagamento das prestações vencidas antes do acidente de viação sofrido pelo progenitor e que os filhos, em especial o seu filho menor, igualmente carecem de sustento e que lhes seja assegurada uma vida condigna.

Não tendo sido alterado o montante da prestação devida e não existindo nenhuns elementos para considerar totalmente impenhorável quantia para além da assegurada pelo artº 738, nº 4 do C.P.C., improcede este argumento."

[MTS]

21/04/2025

Jurisprudência 2024 (152)


Venda executiva;
anulação; direito de preferência*


1. O sumário de RL 11/7/2024 (2507/07.0TBAMD-G.L1-2) é o seguinte:

I – A anulação da venda executiva prevista no artigo 838º, CPC ocorre em caso de erro acerca do seu objeto ou de desconformidade material relativamente às caraterísticas anunciadas do bem vendido.

II – Tal regime, que constitui um meio de tutela do comprador, dispensa os requisitos exigidos pelo artigo 247º, CC, para a anulação da declaração negocial designadamente, a essencialidade do elemento sobre o qual incidiu o erro e o seu conhecimento ou cognoscibilidade pelo declaratário.

III – A omissão da notificação do arrendatário habitacional para exercer o seu direito de preferência na venda executiva da fração arrendada não determina a nulidade ou anulação de tal ato, gerando apenas a faculdade de interpor ação de preferência.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Na decisão do presente recurso, serão ponderados os factos que a decisão de primeira instância considerou provados, bem como os que resultam da consulta dos autos e que se aditam, nos seguintes termos:

“Nos presentes autos de execução foi penhorada, em 13.11.2009, a fração “… que respeita ao ...º andar A, com 2 arrecadações (cf. certidão de teor predial: “NONO ANDAR - A, com 2 arrecadações na sub-cave”), do prédio sito na R…, n.ºs… . C, descrito na 2.ª CRP da Amadora com o n.º … (AP. … de 2009/10/…), cuja aquisição, por compra, se mostrava registada, à data da penhora, a favor de “C Casado/a com B (AP. … de 2009/10/…), fração da qual faz parte integrante a arrecadação correspondente à sub- cave B, relativamente à qual veio a Interveniente Acidental invocar contrato de arrendamento.

A referida fração “…” que foi colocada em venda, mediante abertura de propostas em carta fechada no dia 05/04/2011, pelas 9:30.

Notificado da modalidade da venda pretendida, o executado proprietário da supra indicada fração, B, na pessoa da sua mandatária, Sra. Dra. H, nada disse quanto a uma eventual ocupação desta e/ou das arrecadações que da mesma fazem parte.

Por vicissitudes ocorridas nos autos, substituiu-se o Sr. Agente de Execução.

Em 21/01/2021, a Sra. Agente de Execução entretanto designada decidiu, de novo, sobre a modalidade de venda e valor base, atualizando-o, em face do tempo, entretanto, decorrido: “serão aceites propostas iguais ou superiores a 85% do valor base de €103.940,00” – cf. decisão da Sra. Agente de Execução de 21/01/2021 que, notificada ao executado B, mais uma vez, nada disse.

Em 19/01/2023 (hiato de tempo justificado pelo regime jurídico vigente aquando da pandemia de Covid-19), a Sra. Agente de Execução procedeu às notificações sobre o início do leilão on-line para compra da identificada fração, cujo encerramento foi agendado para 01/03/2023, pelas 10:30.

Em tais notificações não foi efetuada qualquer alusão à existência de um contrato de arrendamento relativo à sub cave B;

A ora requerente não foi notificada no processo de publicitação da venda, na qualidade de arrendatária, para exercer direito de preferência em tal venda executiva.

Em 13/03/2023 foi indicada a melhor proposta obtida: D, pelo valor de €133.320,00, o qual, mediante carta de 18/04/2023, foi notificado para efetuar o pagamento do preço.

Em 20/04/2023 a Sra. Agente de Execução procedeu à alteração do adquirente para a sociedade E, Lda., empresa da qual o referido proponente é sócio-gerente.
Em 06/06/2023 foi, então, emitido o título de transmissão, do qual consta que “o bem é transmitido ao adquirente livre de quaisquer ónus ou encargos, conforme determina o n.º 2 do artigo 827.º do Código de Processo Civil.”

Logo em seguida, notificada a (alegada) ocupante da fração “CG” (F) para entregá-la, esta recusou-se a fazê-lo – cf. notificação da Sra. Agente de Execução de 07/06/2023 e requerimento da adquirente de 26/09/2023.

Pelo que, foi autorizado o uso da força policial – cf. despacho de 15/10/2023.

A 14/12/2023 o Sr. Agente de Execução encarregue da diligência mudou a fechadura da porta de entrada do 9.º andar A.

Tendo sido agendada a tomada de posse efetiva das sub-caves A e B para o dia 25/01/2024, pelas 9:30 – cf. notificação da Sra. Agente de Execução de 04/01/2024, remetida designadamente a F, alegada filha da Interveniente.

Ao longo de todo processo, nomeadamente nas fases da penhora e venda do imóvel em causa, nunca foi dado conhecimento aos autos de qualquer contrato de arrendamento que onerasse a “… ANDAR - A, com 2 arrecadações na sub-cave”.

Da nulidade da venda executiva

A controvérsia no âmbito dos presentes autos radica na venda da fração “…” respeitante ao …º andar, do prédio sito na Rua …, nº … a …, descrito na Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o nº …. Tal prédio integra duas arrecadações, uma das quais correspondente à subcave …, relativamente à qual a recorrente invoca ser arrendatária. Na sua perspetiva, dado que a venda foi publicitada sem qualquer menção a tal contrato de arrendamento, e que não lhe foi conferida preferência em tal negócio, o mesmo mostra-se ferido de nulidade.

Constituindo função da ação executiva a realização de uma determinada prestação que se mostre certa, líquida e exigível constante de um título executivo, desenvolve-se por diversas fases até à sua extinção. Uma dessas fases é constituída pela “venda executiva” em que se procede à venda dos bens penhorados, afetando o produto da venda ao pagamento da obrigação exequenda (e das obrigações que forem julgadas verificadas e graduadas no apenso da verificação de créditos).

O arrendatário de prédio urbano ou de fração autónoma, nos termos do artigo 1091º nº 1, alínea a) CC tem direito de preferência: “na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos (…)”.  Já do nº 8 daquela norma resulta que: “No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fração autónoma, a exercer nas seguintes condições:

a) O direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão;

b) A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º deve indicar os valores referidos na alínea anterior;

c) A aquisição pelo preferente é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado.”

Daí que se venha entendendo que o direito de preferência conferido ao arrendatário está confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento – neste sentido se pronunciou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-10-2022 [---].

 Com vista ao exercício de tal direito: “Os titulares do direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, na alienação dos bens são notificados do dia, da hora e do local aprazados para a abertura das propostas, a fim de poderem exercer o seu direito no próprio ato, se alguma proposta for aceite” - cfr. artigo 819º, nº 1, CPC. Tal notificação, à qual se aplica as regras da citação, nos termos do artigo 819º, nº 3, CPC, será efetuada, em regra, na sequência de indicação do exequente, nada obstando, também que resulte de iniciativa do executado, do agente de execução ou mesmo de qualquer credor reclamante – neste sentido Fernando Amâncio Ferreira [Curso de Processo de execução, pág. 341]

No caso em apreço, não foi efetuada esta notificação, o que, na perspetiva da recorrente constitui fundamento para a anulação da venda executiva.

A venda executiva é anulável nas situações previstas nos artigos 838º e 839º, CPC.

A tal propósito, sob a epígrafe “Anulação da venda e indemnização do comprador”, dispõe o artigo 838º, nº 1, CPC:

1 - Se, depois da venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, o comprador pode pedir, na execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito, sem prejuízo do disposto no artigo 906.º do Código Civil”.

Nesta norma encontra-se prevista a anulação da venda executiva em situações de erro acerca do seu objeto (possuindo este ónus ou limitações não tomados em consideração) ou por existência de desconformidade material relativamente às caraterísticas anunciadas.

O regime consagrado no artigo 838º CPC dispensa os requisitos exigidos pelo artigo 247º CC para a anulação da declaração negocial, designadamente a essencialidade para o declarante do elemento sobre o qual incidiu o erro e o seu conhecimento ou cognoscibilidade pelo declaratário. Consequentemente, para a anulação da venda é apenas necessária a demonstração de que o ónus ou limitação não foi considerado ou que a identidade ou as qualidades do bem vendido não coincidem com as que foram anunciadas - José Lebre de Freitas [A ação executiva depois da reforma da reforma, 5ª edição, Coimbra Editora, p. 342 e 343], e Mota Pinto [Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª ed., pág. 507.], M. Teixeira de Sousa [Ação executiva Singular”, pág. 396.].

E como se refere no sumário do acórdão da Relação de Coimbra de 28-02-2023 [---]:

1. – No âmbito da invalidade da venda executiva, a que alude o disposto no art.º 838.º, n.º 1, do NCPCiv., relativamente a direitos transmitidos com sujeição a ónus ou limitações que excedam os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, integram-se os denominados vícios do direito, por oposição aos vícios da coisa (os que afetam a coisa em si mesma).

2. – É suscetível de constituir (…) «vícios do direito», entre outros, a existência de direitos pessoais sobre a coisa, desde que eficazes em relação ao comprador, como é o caso da locação, a que é equiparável, para este efeito, a existência de um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial a funcionar no imóvel objeto da venda executiva.”
 
Assim, a venda executiva na qual não foi feita qualquer menção (designadamente na fase da sua publicidade) a contrato de arrendamento que onere a fração transmitida, é suscetível de se reconduzir à previsão do preceito ora em análise, podendo fundamentar a anulação do negócio.

Porém, analisando a concreta questão em debate nos autos, desde logo importa clarificar que se mostra controvertida a existência e validade do contrato de arrendamento que a recorrente invoca como fundamento da preferência (efetivamente, ao longo de toda a tramitação dos autos até à fase final da venda, não foi feita qualquer alusão à existência de tal vínculo, que foi impugnado pela exequente). Assim, não pode concluir-se, no atual estado dos autos, de forma segura e inequívoca, pela vigência de qualquer contrato de arrendamento, e assim pela existência de um ónus ou limitação à fração em causa.

Afigurando-se que não é a sede executiva o local próprio para dirimir tal controvérsia sobre a efetiva existência na esfera jurídica da recorrente do direito de preferência que invoca (a sede adequada será a da ação – declarativa - de preferência), mais decisiva é a questão de a legitimidade para a arguição da nulidade da venda executiva por erro no bem transmitido, decorrente da existência de desconformidade relativamente ao que foi anunciado, estar reservada ao comprador.

A este propósito, refere Lebre de Freitas [A ação executiva, 7.ª edição, 2017, págs. 397-398] que os dois primeiros fundamentos de anulação da venda executiva, constantes do artigo 838º, nº 1, CPC, visam a tutela do comprador e, consequentemente, encontram-se na sua exclusiva disponibilidade. Consequentemente, não se encontra a recorrente legitimada a, com base naquele preceito, arguir a nulidade da venda. Neste sentido, se pronunciaram os acórdãos da Relação de Lisboa de 21-02-2019 [---], da Relação de Guimarães de 23-04-2020 [---] e de 13-07-2022 [---]

Com interesse para o caso presente, reitera-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-07-2021 [---] que a anulação da venda nos termos do artigo 838º, CPC, constitui um meio de tutela do comprador e que: “ Nesse sentido, essa tutela é extensível ao remidor ou ao preferente que exerçam o respetivo direito e exclusivamente nesse pressuposto, conclusão que se afigura evidente, por força da operação de substituição a que já se aludiu.” Ou seja, tendo o exercício do direito de preferência como efeito a substituição do adquirente, apenas operada tal substituição (ou seja, apenas depois de exercido o direito de preferência) é reconhecido ao preferente o direito de anular a venda, ponderando já não a sua veste de preferente, mas sim a de adquirente.

Certo é que não tendo ainda a recorrente exercido o direito de preferência que invoca, não possui legitimidade para, com base no regime consagrado no artigo 838º, CPC, arguir a anulabilidade da venda executiva.

Acresce que, com interesse para o presente caso, resulta do disposto no artigo 839º, nº 1, alínea c), CPC, que a venda executiva poderá ficar sem efeito se for anulado o respetivo ato. Ou seja, para além do caso especial de anulação previsto no artigo 838º, nº 1, CPC, poderá ser aplicável o regime geral de anulação, como resulta da conjugação das referidas normas (artigo 839º, nº 1, alínea c) e 195º, nºs 1 e 2, CPC). Nesta hipótese, por invalidade processual, poderá ser anulado o próprio ato da venda, ou pode tal nulidade decorrer da anulação dos atos anteriores - Lebre de Freitas [Ob. Cit. pág. 402].

Porém, para que opere tal fundamento de nulidade é necessário que a lei expressamente comine com nulidade a irregularidade cometida, ou que a mesma possa influir no exame ou na decisão da causa – cfr. artigo 195º, nº 1, CPC.

Ora, em caso de falta de notificação do preferente, expressamente prevista no artigo 819º, CPC, como ainda com atualidade refere Alberto dos Reis [Processo de Execução, Vol. II, 2ª reimpressão, pág. 344], citado na decisão recorrida: “O preferente fica com o direito de propor contra o comprador (…) a chamada ação de preferência”. Assim, tal omissão não determina a nulidade do ato, gerando na esfera jurídica do preferente a faculdade de intentar no prazo e condições legais a competente ação de preferência – neste sentido acórdão da Relação de Évora de 13-12-2011 [---].

Conclui-se, pois que a falta de notificação do arrendatário para exercer o seu direito de preferência não gera a nulidade da venda executiva.

Por fim, dado o seu acerto, reitera-se o afirmado na decisão recorrida no que se reporta à falta de menção nos editais e anúncios que publicitaram a venda à existência do arrendamento: “No que concerne à consequência da omissão da referência à existência de arrendamento no anúncio e edital que publicitou a venda entendemos que a mesma, por maioria de razão, não consubstancia nulidade. Acresce que tal omissão não influi no exame ou na decisão da causaUma vez que os direitos do preferente ficam sempre salvaguardados através da instauração da ação de preferência (…) Revertendo ao caso em apreço, ainda que se admita a existência de contrato de arrendamento – o que é impugnado pelo exequente (não sendo, esta, a sede para discutir a sua existência) –, como o alegado arrendamento não foi comunicado atempadamente aos autos nem à Sra. Agente de Execução, a mesma não procedeu à notificação da alegada preferente, nem fez menção do mesmo no anúncio e edital, o que não lhe é censurável.

Contudo, como deixamos dito, tais omissões não consubstanciam qualquer nulidade processual que conduza a que o ato da venda fique sem efeito”.

*
3. [Comentário] Se não faz sentido que o terceiro preferente que não foi notificado possa recorrer à invocação da nulidade processual, nada impede que esta nulidade seja invocada pelo executado, dado que esta parte "tem interesse na eventual licitação entre os proponentes e os preferentes e entre vários preferentes" (Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil II (Lisboa 2022), 935 s.). 

MTS


18/04/2025

Bibliografia (1192)


-- Weißberg, R., Der unfreiwillig abgeschlossene Prozessvergleich / Zum Schutz vor gerichtsseitigem »unangemessenem Vergleichsdruck« im Zivilprozess (Duncker & Humblot: Berlin 2025)


Jurisprudência 2024 (151)


Processo de insolvência;
reclamação de créditos; legitimidade para recorrer

1. O sumário de RL de 11/7/2024 (23994/16.0T8LSB-B.L1-1) é o seguinte: 

I–Tendo o recorrente usado o direito à impugnação da lista de credores reconhecidos, a que alude o normativo inserto no art.º 130.º do CIRE, o que foi depois objeto de apreciação em sede de sentença de verificação e graduação de créditos, com a improcedência da impugnação apresentada pelo recorrente, não há como não reconhecer ao mesmo a legitimidade ad recursum resultante do art.º 631.º n.º 1 do CPC para interpor o presente recurso.

II–Acresce que, o reconhecimento desses créditos comuns, que o recorrente considera indevidamente reconhecidos, sempre lhe causaria um prejuízo direto e efetivo, na medida em que, sendo ele também titular de um crédito comum, verá, necessariamente, reduzida a sua quota-parte no produto da liquidação do património da insolvente, que se mostra insuficiente para a satisfação integral de ambos os créditos reconhecidos, pelo que, também por aqui, assegurada estaria a legitimidade ad recursum resultante do art.º 631.º n.º 2 do CPC para interpor o presente recurso.

III–Sendo o Estado Português titular de um direito de crédito sobre o BPP, tendo visto no âmbito do processo de liquidação do mesmo verificado e reconhecido o seu crédito, nada impede que, à luz dos arts.º 491.º e 501.º do CSC., em face da existência de relação de domínio entre a aqui insolvente e o BPP, e demais pressupostos ali previstos, o mesmo Estado reclame e veja reconhecido o mesmo crédito no âmbito do processo de insolvência da sociedade dominante.

IV–Por outro lado, também a Comissão liquidatária do BPP, em face daquela relação de domínio, poderá exigir e reclamar, à luz do art.º 502.º do CSC, a compensação das suas perdas no âmbito do processo de insolvência da sociedade dominante.

V–As normas previstas nos arts.º 501º e 502º do CSC, ao abrigo das quais o Estado Português e a Comissão liquidatária do BPP, respetivamente, reclamaram créditos sobre a aqui insolvente, enquanto sociedade dominante, não são normas alternativas cuja aplicação cumulativa implique, in casu, o reconhecimento duplicado ou redundante de um mesmo crédito, já que as perdas anuais de um determinado exercício económico, enquanto prejuízo anual, não contemplam necessariamente o passivo da sociedade subordinada, sendo diferentes as causas de pedir de um e outro crédito, não evidenciando os autos o “erro manifesto” que a lei exige para retificação da lista apresentada e homologada pela sentença recorrida.

VI–Ainda que se possa entender que o art.º 82.º n.º 3 do CSC estabelece uma inibição temporária (enquanto durar o processo de insolvência), tal inibição é para propor ações diretamente, ações judiciais que correm por apenso ao processo de insolvência, tal como resulta do n.º 6 do aludido preceito, e não para reclamar créditos à luz do art.º 128.º do mesmo código.

VII–A legitimidade exclusiva do administrador da insolvência para propor aquelas ações contra os responsáveis legais pelo pagamento, tendo em vista o aumento da massa insolvente, não impede nem retira a legitimidade ao credor de exercer o direito que o art.º 501º, n.º 1 do CSC lhe confere, apresentando a sua reclamação de créditos (de que é titular perante a sociedade dominada, que não cumpre as suas obrigações) no âmbito do processo de insolvência da sociedade dominante.

VIII– E é precisamente por os credores poderem sempre reclamar os seus créditos no processo de insolvência, nos termos do art.º 36.º, n.º 1, alínea j) do CIRE, enquanto credores da insolvência (art.º 47.º do CIRE), que o citado preceito não é inconstitucional, permitindo o mesmo tratamento e igualdade material a todos os credores que estejam nessa situação.

IX–A existência de um crédito litigioso, em discussão em juízo, que não se confunde com um crédito condicional a que apela o art.º 50.º do CIRE, não dispensa o credor de reclamar o aludido crédito nos autos de insolvência, se nele quiser obter pagamento, em face do que decorre dos arts.º 90.º e 128.º do CIRE.

X–Após a declaração de insolvência do devedor e aberta a fase processual de reclamação de créditos, com vista à sua ulterior verificação e graduação no âmbito do respetivo processo de insolvência, deixa de ter qualquer interesse e utilidade o prosseguimento de quaisquer ações declarativas, pois que os alegados créditos têm que ser objeto de reclamação no processo de insolvência e discutido no âmbito desse mesmo processo, mediante o seu reconhecimento ou não, por parte do AI, na lista de créditos apresentada nos autos, e possibilidade de impugnação com posterior decisão.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"IV-/ Do objeto do recurso:

Questão prévia:

(i)- Da legitimidade do recorrente

Principia o recorrente por afirmar a sua plena legitimidade e interesse para recorrer da sentença de verificação e graduação de créditos, pois que, alega, o reconhecimento (indevido) de créditos comuns do Estado Português causa, sempre e em qualquer caso, um prejuízo direto e efetivo ao recorrente, também ele titular de um crédito comum, na medida em que reduz a sua quota-parte no produto da liquidação do património da insolvente.

Em contra-alegações, defende o MP, em representação do Estado Português, que a sentença recorrida não tem incidência direta nos interesses e na esfera jurídica do recorrente, relevando, somente, de forma reflexa e indireta, uma vez que o seu crédito já foi reconhecido nos termos reclamados, estando em igualdade para com o recorrido em face de os créditos de ambos serem considerados comuns.

Vejamos então.

Nos termos do art.º 631.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi art.º 17.º, n.º 1, do CIRE, os recursos podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido, bem como pelas pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.

Como se vê, este normativo, nos seus n.ºs 1 e 2, convoca um critério formal e subjetivo e um critério material e objetivo, respetivamente, que pressupõe, na primeira parte, a condição de parte principal nos autos e neles vencida, e, na segunda parte, um prejuízo real ou um interesse direto do recorrente na procedência do recurso.

Sobre esta matéria, Abrantes Geraldes (na obra “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2ª edição, pág. 71/72), diz-nos, que «A exigência de um prejuízo direto tem subjacente a ideia de que a decisão visa diretamente o recorrente, afastando os casos em que o prejuízo, ainda que efetivo, é indireto, reflexo ou mediato, ou atinge unicamente a pessoa representada (…)».

Se nas situações normais a legitimidade para recorrer se afere através de um critério formal, verificando se o recorrente é parte no processo e conferindo o resultado da lide, nos casos em que o recurso advenha de terceiro diretamente prejudicado pode revelar-se necessária a demonstração dos factos onde assenta o alegado interesse, o que, sem embargo dos poderes de averiguação do tribunal, deve ser feito pelo recorrente no requerimento de interposição de recurso (arts. 637º, n.º 2, e 641º, n.º 2, al. a)).».

No caso em apreço, teremos ainda de nos ater ao facto de o processo de Insolvência constituir um procedimento universal e concursal, cujo objetivo é a obtenção da liquidação do património do devedor, por todos os seus credores, destinando-se a massa insolvente à satisfação dos credores, de acordo com o que é decidido na sentença de verificação e graduação de créditos.

O incidente da verificação de créditos, que corre por apenso ao processo de insolvência (art.º 132.º do CIRE), deve assim englobar todos os créditos da insolvência, visando o pagamento pelo produto da massa insolvente (art.º 128.º, n.º 5, do CIRE), segundo as regras estabelecidas nos CIRE (arts.º 172.º e ss).

Por ser assim, os credores da insolvência que pretendam fazer valer os seus direitos de crédito no âmbito do respetivo processo, têm que apresentar a competente reclamação de créditos, dispondo para o efeito do prazo fixado na sentença de declaração de insolvência. A reclamação é feita mediante requerimento dirigido ao administrador da insolvência, acompanhado de todos os documentos probatórios disponíveis (art.º 128.º).

As reclamações apresentadas são depois apreciadas pelo administrador da insolvência, o qual deve apresentar nos autos a lista de todos os credores por si reconhecidos e a dos não reconhecidos, lista que pode ser sujeita a impugnação, nos termos do disposto no art.º 130.º n.º 1 do CIRE, que dispõe que “Nos 10 dias seguintes ao termo fixado no n.º 1 do artigo anterior, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorreção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.”

A essa impugnação pode haver “Resposta”, nos termos consignados no o art.º 131.º que estipula que «1- Pode responder a qualquer das impugnações o administrador da insolvência e qualquer interessado que assuma posição contrária, incluindo o devedor. 2- Se, porém, a impugnação se fundar na indevida inclusão de certo crédito na lista de credores reconhecidos, na omissão da indicação das condições a que se encontre sujeito ou no facto de lhe ter sido atribuído um montante excessivo ou uma qualificação de grau superior à correta, só o próprio titular pode responder. 3- A resposta deve ser apresentada dentro dos 10 dias subsequentes ao termo do prazo referido no artigo anterior ou à notificação ao titular do crédito objeto da impugnação, consoante o caso, sob pena de a impugnação ser julgada procedente».

A ser assim, tendo o recorrente usado, no caso dos autos, do direito à impugnação da lista de credores reconhecidos, a que alude o normativo inserto no citado art.º 130.º do CIRE, o que foi depois objeto de apreciação em sede de sentença de verificação e graduação de créditos, com a improcedência da impugnação apresentada pelo recorrente (ainda que por extemporaneidade) não há como não reconhecer ao mesmo a legitimidade ad recursum resultante do art.º 631.º n.º 1, do CPC. As especificidades processuais do procedimento de verificação e graduação de créditos por apenso a processo de insolvência, faz com que - neste particular confronto, entre reclamante/impugnante, em que este peticionava a exclusão dos créditos daquele, incluídos na lista apresentada pelo AI nos autos, pretensão em que decaiu, com a improcedência daquela impugnação, - o recurso interposto tenha que ser analisado então, desse ponto de vista, por quem, sendo parte nos autos, ficou vencido, atento o conflito existente entre impugnante e titular do crédito reconhecido.

Acresce que, seja como for, o reconhecimento de créditos comuns do Estado Português, que o recorrente considera indevidamente reconhecidos, causará ao recorrente, como este bem argumenta, sempre e em qualquer caso, um prejuízo direto e efetivo, pois que, sendo também ele titular de um crédito comum, verá, necessariamente, reduzida a sua quota-parte no produto da liquidação do património da insolvente. Tendo sido reconhecidos ao recorrente e ao recorrido créditos sobre a insolvência, igualmente graduados como comuns, que serão pagos na proporção respetiva, sempre que a massa insolvente se mostre insuficiente para a sua satisfação integral (cfr. artsº 176.º do CIRE e 604.º, n.º 1, do CC), dúvidas não restam, também por aqui, sobre a legitimidade do recorrente para interpor o presente recurso, nos termos do disposto no art.º 631.º n.º 2 do CPC, tendo em consideração os prejuízos reais e efetivos que a sentença recorrida (na parte de que se recorre) produziria na sua esfera jurídica, o que aqui se reconhece e declara.

Reconhece-se, pois, ao recorrente legitimidade para interpor o presente recurso."

[MTS]