"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/04/2025

Jurisprudência 2024 (156)


Processo penal;
alvará; arresto


1. O sumário de RE 11/7/2024 (1812/21.7T8STR-I.E1) é o seguinte:

O arresto em processo crime do alvará de estabelecimento comercial de farmácia compreendido na massa insolvente não obsta à prossecução da actividade da farmácia deliberada em assembleia de credores.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O processo de insolvência tem como finalidade a satisfação dos credores [artigo 1.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante CIRE].

Aos credores compete decidir se o pagamento se obterá por meio de liquidação integral do património do devedor, se mediante a execução de um plano de insolvência que venham a aprovar ou através da manutenção em actividade e reestruturação da empresa, na titularidade do devedor ou de terceiros, nos moldes também constantes de um plano [cfr. ponto 6 do preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18 de Março].

Compreendendo a massa insolvente uma empresa, o juiz pode determinar que a administração seja assegurada pelo devedor e igual faculdade é atribuída à assembleia de credores a qual também pode confiar a administração da massa insolvente ao devedor [cfr. artigo 224.º do CIRE].

Atribuída ao devedor a administração da massa insolvente, assiste ao juiz a faculdade de a fazer cessar verificada uma das seguintes situações: i) a requerimento do devedor; ii) se assim for deliberado pela assembleia de credores; iii) se for afectada pela qualificação da insolvência como culposa a própria pessoa singular titular da empresa; iv) se, tendo deixado de se verificar o pressuposto previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 224.º, tal lhe for solicitado por algum credor; v) se o plano de insolvência não for apresentado pelo devedor no prazo aplicável, ou não for subsequentemente admitido, aprovado ou homologado [artigo 228.º, n.º 1, do CIRE].

No caso, a administração da massa insolvente é assegurada pela Devedora, sob a fiscalização da Srª Administradora da insolvência, na sequência do despacho 07/09/2021 [al. b) supra], administração que se manteve após a não aprovação pelos credores do plano de insolvência apresentado pela Devedora [al d) supra e despacho de 13/5/2022], com assinável êxito, uma vez que já gerou receitas que permitiram pagar cerca de 31% [(706.333,95x100):2.266.648,58] dos créditos reclamados [al. j)], inexiste qualquer fundamento para a fazer cessar ao abrigo do referido artigo 228.º, n.º 1, do CIRE ou pelo menos, a decisão recorrida não se serviu de nenhum deles e os credores, com o parecer favorável da Administradora de insolvência, pretendem ver continuada a exploração do estabelecimento comercial da Insolvente [cfr. al. g) supra].

Neste enquadramento veio a ser proferido o despacho recorrido que fundado na impossibilidade de utilização do alvará da Farmácia (…) determinou o encerramento da actividade da insolvente, assim pondo termo à administração da massa insolvente pela Devedora.

O despacho recorrido é omisso quanto às razões de direito que o fundamentam, isto é, nele não se indica qualquer disposição legal ou princípio de direito que sustente a impossibilidade de utilização do alvará da Farmácia (…) e, consequentemente a impossibilidade da manutenção da actividade da insolvente, por efeito o arresto do referido alvará no processo crime [al. e) supra].

teor do ofício de 07/03 para que remete, por sua vez, também não supre esta omissão; da promoção que o instrói resulta que a apreensão do alvará no processo crime obsta à “sua utilização (…) no âmbito dos (…) autos de insolvência até ser proferida sentença no processo criminal”, mas não se indica qualquer razão de direito em abono desta afirmação.

Coloca-se, assim, a questão de saber se o arresto do alvará da Farmácia (…) à ordem do processo n.º 685/15.3TELSB-D, do Juízo Central Criminal de Santarém, obsta à manutenção da actividade do estabelecimento comercial de farmácia compreendido na massa insolvente, ao invés da pretensão dos credores da insolvência e do parecer da Srª Administradora da insolvência [cfr. als. d) e g) supra].

Inicia-se por afirmar que o arresto no processo crime não incidiu sobre o estabelecimento comercial denominado Farmácia (…), a apreensão deste mantem-se à ordem da massa insolvente, o arresto incidiu exclusivamente sobre o alvará, ou seja, constituiu objecto de apreensão no processo crime – bem ou mal não cumpre agora apreciar, por se tratar de questão excluída do objecto do recurso – o título comprovativo do acto administrativo que atribui ao beneficiário o direito de exploração do estabelecimento da Farmácia (…).

O “alvará” (em rigor, a sua emissão e averbamento) corresponde(m), pois, ao acto jurídico instrumental e executivo da autorização permissiva praticada pela autoridade pública competente. Traduz-se num título comprovativo da prática do acto administrativo de autorização, apto a formalizar (ou externalizar) a atribuição ao seu titular beneficiário (originário ou superveniente) do direito de exploração do estabelecimento (condicionado ao cumprimento de requisitos substanciais) e do dever geral de cumprimento das obrigações legais de actuação e funcionamento (objectivo e subjectivo) das farmácias de oficina (sob pena, conforme os casos, de indeferimento de emissão, caducidade, cassação), enquanto actividade de interesse e ordem pública”. [Ac. STJ de 29-10-2019 (processo n.º 2589/15.0T8STS-A.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt]

O regime jurídico das farmácias de oficina, aprovado pelo D.L. 307/2007, de 31/8, alterado pelos D.L. de 171/2012, de 1/8 e 75/2016, de 8/11, que rege sobre a atribuição (artigo 25.º), caducidade (artigo 18.º, n.º 10), suspensão [artigo 49.º, alínea c)] e cassação [artigos 40.º, n.º 1, 41.º, n.º 2 e 3 e 53.º, n.º 3], do alvará de farmácia, não estabelece qualquer constrangimento ou limitação à manutenção da actividade da farmácia decorrente do arresto (não previsto) do respectivo alvará. Prevê o encerramento do estabelecimento de farmácia por falta de alvará ou da menção dos averbamentos obrigatórios (artigo 42.º, n.º 1), mas não dispõe sobre os efeitos jurídicos do arresto do alvará.

Limitações que também não resultam da lei geral.

O arresto preventivo, previsto pela lei processual penal, é decretado a requerimento do Ministério Público, nos termos da lei do processo civil [artigo 228.º, n.º 1, do Código de Processo Penal] e segundo esta o “arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora” em tudo o que não contrariar os preceitos específicos do arresto [artigo 391.º, n.º 1, do CP]; ora, a penhora do estabelecimento comercial e, por efeito da apontada remissão, o arresto do estabelecimento comercial não obsta a que possa prosseguir o seu funcionamento normal, sob gestão do executado, nomeando o juiz, sempre que necessário, quem fiscalize, aplicando-se com as necessárias adaptações, os preceitos referentes ao depositário” [artigo 782.º, n.º 2, do CPC].

Em caso da penhora de estabelecimento de farmácia, considera Maria Olinda Garcia, “a continuação do funcionamento normal deste estabelecimento não deverá ser tratada como uma simples hipótese (alternativa à hipótese contrária), mas sim como a situação que deverá necessariamente manter-se apesar da penhora, pois trata-se de um estabelecimento que serve o interesse público e que se encontra vinculado ao dever de assegurar a dispensa permanente de medicamentos urgentes (quer em sistema de turnos, quer em regime de disponibilidade) [Aquisição e Transmissão do Estabelecimento de Farmácia, Estudos m Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. IV, pág. 708.], o que significa que ainda que o estabelecimento comercial da Insolvente houvesse sido arrestado no processo crime – e não foi o caso – deveria, como regra, manter-se em actividade.

Arrestado exclusivamente o alvará de farmácia o regime mantem-se, ou seja, o estabelecimento comercial deverá prosseguir a sua actividade.

«Se não existe estabelecimento de farmácia sem alvará, também não é concebível um alvará sem ser por referência a um estabelecimento. (…) o alvará não pode ser destacado do respectivo estabelecimento de farmácia». [Ac. STJ de 27-02-2020 (processo n.º 424/12.0TBELV-C.E1.S2), com sumário em www.stj/jurisprudência/sumários]

Assim, nem a lei geral, nem o regime jurídico das farmácias de oficina estabelecem qualquer constrangimento ou limitação ao prosseguimento da actividade do estabelecimento comercial de farmácia decorrente do arresto do respectivo alvará.

A condição imposta pelo Gabinete de Administração de Bens (GAB), no âmbito das competências da administração de bens apreendidos em processo crime que lhe resulta do artigo 10.º, n.º 1, da Lei n.º 45/2011, de 24/6, segundo a qual fez depender a continuação da atividade do estabelecimento comercial da Insolvente da salvaguarda do “valor de € 2.116.391,85 que o arresto preventivo decretado nos autos do processo n.º 685/15.3TELSB-D visa garantir” [al. f) supra] parece assentar na ideia que os seus poderes de administração do alvará se estendem ao estabelecimento comercial da Insolvente, pressuposto que claramente não se verifica, uma vez que o estabelecimento comercial mostra-se apreendido para a massa insolvente e a sua administração confiada à Devedora desde 07/09/2021 [cfr. al. b) supra]; ao GRA incumbe, pois, a administração do alvará e não a administração do estabelecimento comercial da Insolvente, pelo que apenas as receitas geradas pelo alvará, eventualmente decorrentes da alienação da empresa como um todo [artigo 162.º do CIRE], são susceptíveis de serem afectadas ao pagamento de quantias em dívida no processo crime.

O alvará de farmácia é incindível do respetivo estabelecimento, sendo insuscetível de apropriação e transmissão autónoma e individualizada.” [Ac. STJ de 28/4/2021 (1377/17.4T8OAZ-D.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt].

Em conclusão, o arresto preventivo do alvará da “Farmácia (…)”, à ordem do processo 685/15.3TELSB-D, do Juízo Central Criminal de Santarém, não obsta, a nosso ver, à manutenção da actividade da Insolvente deliberada em assembleia de credores."

[MTS]

28/04/2025

Jurisprudência 2024 (155)


Função jurisdicional;
responsabilidade civil do Estado; revogação da decisão


1. O sumário de RC 18/6/2024 (869/22.8T8CBR.C2) é o seguinte:

I - Em acção declarativa de condenação com processo comum para efectivar a responsabilidade cível extracontratual emergente de alegado erro judiciário contra o Estado Português pedindo que «seja o Estado condenado a pagar-lhe indemnização a vários títulos, exige-se que o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.

II - Não tendo o Autor feito prova da revogação – pois o acórdão junto manteve a sentença recorrida e, por outro lado, nas partes em que apreciou pretensões do ora autor, não lhe deu razão, deve julgar-se verificada a excepção de ausência de prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente e, em consequência, ser o Estado Português absolvido do pedido, como decorre do disposto no artigo 13º,2 da Lei 67/2007, conjugado com os artigos 571º e 576º, 1 e 3, excepção que é de conhecimento oficioso- artigo 579º, todos do CPC.

III - Não é inconstitucional a norma do artigo 13.º, n.º 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º67/2007, de 31 de Dezembro, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.

IV - Só deve ordenar-se o reenvio quando tal se justificar pela necessidade do recurso ao direito comunitário para a resolução da causa e pela existência de um problema de interpretação desse direito.


2. Na fundamentação afirma-se o seguinte:

"Proferiu [a 1.ª instância] douto saneador-sentença, com base nos articulados das Partes, dos documentos juntos e na resenha jus-processual também supra referida.

Nela conheceu-se da excepção da falta de revogação da decisão.

Tudo nos termos que se sintetizam:

A presente acção diz respeito à responsabilidade do Estado por erro judiciário.

Tendo em conta a factualidade que se tem por assente, os pressupostos legalmente exigidos para procedência deste tipo de responsabilidade, que no caso não estão verificados, bem como que as questões colocadas quanto à necessidade de verificação desses pressupostos são de cunho jurídico, é possível conhecer já da excepção peremptória arguida pelo Ministério Público e, pelas razões abaixo explicadas, concluir pela sua procedência, o que conduz à imediata improcedência da acção.

Vejamos então.

Sobre o regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas (doravante RRCEE) releva a Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, constando aquele regime de anexo a esta lei. Isto porque, de acordo com o artigo 1.º, n.º 1, daquele regime, «A responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial.» 
(…)

Especificamente sobre os danos decorrentes do exercício da função jurisdicional regem os artigos 12.º a 14.º do RRCEE. Pela sua relevância, segue-se a respectiva transcrição.

Artigo 12.º
Regime geral
Salvo o disposto nos artigos seguintes, é aplicável aos danos ilicitamente causados pela administração da justiça, designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável, o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa.

Artigo 13.º
Responsabilidade por erro judiciário
1 - Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.

Artigo 14.º
Responsabilidade dos magistrados
1 - Sem prejuízo da responsabilidade criminal em que possam incorrer, os magistrados judiciais e do Ministério Público não podem ser directamente responsabilizados pelos danos decorrentes dos actos que pratiquem no exercício das respectivas funções, mas, quando tenham agido com dolo ou culpa grave, o Estado goza de direito de regresso contra eles.
2 - A decisão de exercer o direito de regresso sobre os magistrados cabe ao órgão competente para o exercício do poder disciplinar, a título oficioso ou por iniciativa do Ministro da Justiça(…)

Como se disse, a responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas tem na sua base o comando constitucional ínsito no artigo 22.º, da Constituição da República Portuguesa, relevando para a responsabilidade quanto à função jurisdicional também o disposto no artigo 216.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, que determina que «Os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as excepções consignadas na lei

Não obstante o regime em causa constar de um diploma específico como é o RRCEE, os pressupostos da responsabilidade civil são os mesmos que se exigem no domínio do Direito das Obrigações (ou seja, a existência de uma acção, que seja ilícita, culposa e que cause danos – artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil), embora por referência não a actos entre particulares, mas a «actos de gestão pública, pois o exercício da função jurisdicional é sempre gestão pública estadual (mesmo que haja traços privatísticos, como acontece actualmente com certos modelos processuais, tais como, o processo executivo, o processo de mediação ou o processo arbitral)» - Guilherme da Fonseca e Miguel Bettencourt da Câmara, in A Responsabilidade Civil Por Danos decorrentes…, Revista Julgar, nº 11, 2010, disponível na net.

Tendo em conta o modo como o RRCEE disciplina a responsabilidade civil do Estado por actos praticados no âmbito da função jurisdicional, é necessário destrinçar dentro desta:

-- a responsabilidade por actos materialmente administrativos (artigo 12.º);
-- a responsabilidade por erro judiciário (artigo 13.º);
-- e a responsabilidade pessoal de juízes e magistrados do Ministério Público (artigo 14.º).

No caso em apreço, releva o segundo, ou seja, o regime da responsabilidade por erro judiciário, o qual consta, como acima referido, do artigo 13.º, do RRCEE. (…)

A lei exige que o pedido de indemnização se funde na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.

Recorrendo, de novo, à explicação de José Manuel Cardoso da Costa, colhida do Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-05-2023, p. nº 11359/20.3T8SNT.L1-2 acessível no site da dgsi.net, «sendo a função jurisdicional e as decisões em que ela se exprime o que são, então não há-de poder atribuir-se qualquer relevo a um alegado «erro» judiciário sem que ele seja reconhecido como tal pela competente instância jurisdicional de revisão. Sem tal reconhecimento, o «erro» (o puro «erro») só o será do ponto de vista ou no plano da análise crítico-doutrinária da decisão, não num plano jurídico-normativo: neste outro plano, o que subsiste é a definição do direito do caso, emitida por quem detém justamente o múnus e a legitimidade para tanto. É, pois, desde logo e fundamentalmente, uma razão dogmático-institucional, ligada à própria natureza da função judicial, que impõe a condição estabelecida pelo (…) n.º 2 do artigo 13.º - e exclui que a ocorrência e o eventual relevo do erro judiciário possam ser aferidos diretamente, e sem mais, em sede de responsabilidade e pelo tribunal competente para o apuramento desta».

Esta exigência de prévia revogação da decisão danosa não é uma solução líquida e isenta de críticas.

Com efeito, a doutrina e a jurisprudência têm reflectido sobre a conformidade constitucional deste pressuposto, desde logo porque existem casos em que não é admissível recurso pela circunstância de o valor da causa ser inferior à alçada do Tribunal – por exemplo, na jurisdição cível, o recurso da decisão do Tribunal de 1.ª instância está, em princípio e em primeiro lugar, dependente de o valor da causa ser superior à alçada desse Tribunal (artigos 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e 42.º, n.º 2, e 44.º, n.º 1, da LOSJ).

Apesar destas dúvidas, o nosso Tribunal Constitucional já tomou posição quanto à conformidade constitucional da opção do legislador e nos acórdãos n.s 363/2015 e 844/2023 decidiu não julgar «inconstitucional a norma do artigo 13.º, n.º 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente».

Em ambas as decisões é feita referência a um acórdão do próprio Tribunal Constitucional, que embora seja anterior ao RRCEE abordou o artigo 22.º, da Constituição da República Portuguesa em termos que se mantêm actuais: o acórdão n.º 45/99.

Neste acórdão n.º 45/99 explica-se que «o artigo 22° da Constituição reconhece aos cidadãos o direito à reparação dos danos que lhes forem causados por ações ou omissões praticadas por titulares de órgãos do Estado e das demais entidades públicas, ou por seus funcionários ou agentes, no exercício das respetivas funções, reparação essa que deve ser integral e assumida solidariamente pela Administração. Mas o mesmo artigo 22° não estabelece os concretos mecanismos processuais através dos quais se há-de exercitar esse direito: ponto é que o legislador, ao fazê-lo, não crie entraves ou dificuldades dificilmente superáveis, nem encurte arbitrariamente o quantum indemnizatório.» Uma vez que não são estabelecidos os concretos mecanismos processuais mediante os quais este direito à reparação deve ser exercido, ao legislador ordinário assiste liberdade de conformação quanto ao modo de efectivar aquele direito. A exigência de que a decisão danosa tenha sido previamente revogada assenta, precisamente, nesta margem de liberdade.

Quanto a este Tribunal, sopesando o reconhecimento do direito fundamental à reparação de actos danosos, a natureza da função jurisdicional e que a acção de responsabilidade civil contraactos praticados naquele domínio já é uma forma de reacção secundária, dado que a primeira é a de recorrer da decisão danosa no âmbito do processo em que a mesma foi proferida, afigura-se que a disciplina constante do artigo 13.º, do RRCEE, não é arbitrária, nem desproporcional, inserindo-se numa margem de liberdade que se deve reconhecer ao legislador ordinário quanto ao desenho dos mecanismos para exercício do direito à reparação de actos danosos.

Tem-se, assim, que quanto a este Tribunal, na senda de posição já sufragada pelo nosso Tribunal Constitucional, o artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, isto é, a exigência de prévia revogação da decisão danosa, não é inconstitucional.

De todo o modo, com a Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, aditou-se o artigo 696.º-A ao Código de Processo Civil e foi dada nova redacção aos artigos 696.º, al. h), 697.º, 701.º e 701.º-A, do mesmo diploma, passando a prever-se expressamente a possibilidade de recurso de revisão no âmbito da acção em que foi proferida a decisão danosa, ao invés de o lesado ter que intentar especificamente uma acção de responsabilidade civil por danos decorrentes da função jurisdicional.

Com isto, fica ultrapassado na jurisdição cível o argumento de que nem todas as acções admitem recurso, o que, recorde-se, como se viu, não conduzia, pelo menos quanto a este Tribunal e à posição dos nossos Tribunais, à inconstitucionalidade do disposto no artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE.

Questão diferente e também suscitada pelo Autor é se esta exigência está, ou não, em conformidade com o direito da União Europeia.

Este assunto também já foi apreciado pela nossa jurisprudência e pelo Tribunal de Justiça, sendo que aí o que se tem configurado como efectivo problema a resolver não é se a disciplina do artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE respeita o direito da União Europeia, antes se o direito interno que foi aplicado no processo em que ocorreu o erro judiciário está em conformidade com o direito da União Europeia.

No âmbito de um reenvio prejudicial, no processo C160/14 - João Filipe Ferreira da Silva e Brito contra o Estado português, o Tribunal de Justiça após análise dos princípios da autoridade do caso julgado e da segurança jurídica como argumentos a favor da solução constante do artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, decidiu que «O direito da União e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça em matéria de responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito da União cometida por um órgão jurisdicional que decide em última instância devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que exige como condição prévia a revogação da decisão danosa proferida por esse órgão jurisdicional, quando essa revogação se encontra, na prática, excluída».

Como explicam Alessandra Silveira e Sophie Perez Fernandes, a «regra do art. 13.º, n.º 2, do RRCEE não se aplica, pois, aos casos de violação do direito da União imputáveis ao Estado no exercício da função jurisdicional, por força do princípio do primado do direito da União» - Anotação aos acórdãos (TEDH) Ferreira Santos Pardal c. Portugal e (TJUE) Ferreira da Silva e Brito (ou do “grito do Ipiranga” dos lesados por violação do direito da União Europeia no exercício da função jurisdicional), página 7, disponível em https://www.oa.pt...

A partir da decisão do Tribunal de Justiça João Filipe Ferreira da Silva e Brito contra o Estado Português, passou a vigorar um duplo regime, que varia consoante no processo em que a decisão danosa é tomada esteja em causa a violação de direito interno, ou de direito da União Europeia.

Foi neste contexto que surgiu a já acima referida Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro.

Com as alterações introduzidas ao Código de Processo Civil com esta, instituiu-se um novo regime em que, pese embora se haja mantido a exigência da revogação prévia da decisão consagrada no artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, se utilizou a «revogação da decisão que ocorre no juízo rescindente do recurso de revisão para cumprir a exigência do art. 13.º, n.º 2, Anx. L 67/2007; esta solução apresenta a significativa vantagem de, como a revisão deve ser interposta no tribunal que proferiu a decisão a rever (art. 697.º, n.º 1), evitar que – como aliás já sucedeu – decisões das Relações ou do STJ sejam discutidas, como fundamento de responsabilidade civil do Estado, nos tribunais de 1.ª instância» e ainda se consagrou a admissibilidade de «dedução do pedido de indemnização contra o Estado no juízo rescisório do recurso de revisão» - Miguel Teixeira de Sousa, As recentes alterações na legislação processual civil, Julgar Online, Dezembro de 2019, página 21 […]

Aplicando ao caso em apreço.

A presente acção configura uma acção de responsabilidade civil contra o Estado por danos decorrentes da função jurisdicional, pedindo o Autor que o Estado Português seja condenado a pagar-lhe indemnização pelos danos sofridos no âmbito do processo n.º 5100/19...., que correu termos no Juízo de Comércio de Coimbra.

A acção n.º 5100/19.... foi proposta pelo aqui Autor, pedindo este que lhe fosse reconhecido o seu direito de alienação potestativa dos valores mobiliários representativos do capital da sociedade F..., S.A. e que a aí Ré fosse condenada a pagar-lhe o justo valor por esses valores mobiliários.

A 22-02-2021 foi ali proferida sentença que condenou a aí Ré no pagamento do valor de € 90 364, decisão com a qual a Ré não se conformou e, por isso, recorreu. Nessa sequência, o Autor contra-alegou e pediu a ampliação do objecto do recurso.

A 12-10-2021 foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que confirmou a decisão da 1.ª instância.

Entende o ali e aqui Autor que deixou de receber os € 121 760,83 que considerava justo receber, tendo apenas recebido € 90 364, sofrendo um dano de € 31 396,83 – artigo 14.º da petição inicial.

Como decorre do acabado de explicar, a sentença da 1.ª instância foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, não se verificando-se, portanto, o requisito exigido pelo artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, de prévia revogação da decisão danosa.

Trata-se de uma exigência que, pelas razões acima explanadas, se mostra conforme à nossa Lei Fundamental.

Além de ser uma exigência que respeita a nossa Constituição, a mesma, no caso concreto, não vai contra o entendimento sufragado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, na medida em que na acção n.º 5100/19.... o pedido foi enquadrado à luz da lei interna, inexistindo referência ao direito da União Europeia. Assim sendo, uma vez que a causa em que a acção danosa alegadamente ocorreu não se prende com a (in)observância do direito da União Europeia, é de admitir a exigência feita pelo legislador ordinário português de prévia revogação da decisão danosa. Em suma, por não estar verificada a exigência de prévia revogação da decisão alegadamente danosa, conclui-se que falta um dos requisitos exigidos para responsabilização civil por danos decorrentes da função jurisdicional, o que permite concluir imediatamente pela improcedência da presente acção, ao abrigo do disposto no artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE. (…)

A final foi julgada verificada a excepção de ausência de prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente e, em consequência, a acção improcedeu, tendo o Réu Estado sido absolvido do pedido."

[MTS]


26/04/2025

Bibliografia (1194)


-- Danovi, F., La prova contraria (Giuffrè: Milano, 2025)

Nota: trata-se de "una nuova edizione, esattamente tel quel era uscito nel 2004".

24/04/2025

A taxa de justiça e as custas em sentido estrito no incidente de quebra do sigilo profissional



[Para aceder ao texto clicar em Salvador da Costa]


Jurisprudência 2024 (154)


Autoridade de caso julgado;
âmbito subjectivo; âmbito objectivo*

I. O sumário de RL 11/7/2024 (2992/19.7T8ALM.L1-7) é o seguinte:

1. Verificado os pressupostos duma situação em que se imponha o respeito pela “autoridade do caso julgado”, o Tribunal não se deve abster de decidir o pedido correspondente. Pelo contrário, deve decidir e deve fazê-lo em conformidade com a decisão anterior transitada em julgado.

2. No caso dos autos, o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão transitado em julgado, proferido relativamente à mesma relação contratual aqui “sub judice”, mas em processo anterior, sustentou que em causa estaria uma “venda fiduciária em garantia” válida, à qual não se aplicaria, designadamente, a proibição legal do pacto comissório.

3. Considerando que a consequência do incumprimento definito do contrato pelo devedor, numa venda fiduciária em garantia, determina a perda definitiva do direito de propriedade a favor do credor (beneficiário da coisa vendida em garantia), num caso em que o valor económico da coisa vendida é manifestamente superior ao crédito garantido, o afastamento da proibição legal do “pacto comissório” só se torna aceitável se for corrigido, através do instituto do enriquecimento sem causa (Art. 473.º do C.C.), o efeito pernicioso e legalmente inadmissível que decorrerá de o credor fazer definitivamente sua a coisa dada em garantia.

4. Doutro modo, seria permitir o abuso de direito (cfr. Art. 334.º do C.C.), porque a finalidade social e económica da garantia assim prestada não pode servir finalidade diversa e permitir um enriquecimento ilegítimo do credor e sem causa justificativa.


II. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"I- RELATÓRIO

CR e JR intentaram a presente ação de simples apreciação, de execução específica e de condenação, em processo declarativo comum, contra C.B.G.- Imobiliária, S.A., e CG, formulando os seguintes pedidos:

a) Ser reconhecido como venda fiduciária em garantia de um mútuo o contrato celebrado entre os AA. e a R. CBG e usurários os juros cobrados pela R. nesse contrato, com a sua redução à quantia de €15.256,48, ou outra que venha a resultar da aplicação da taxa legal de 7%, a liquidar em execução de sentença; [...]

IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO [...]

2. Do mérito dos pedidos principais.

O Recorrente convocou para reapreciação na presente apelação o mérito de praticamente todos os pedidos formulados na petição inicial, pugnando pela revogação da sentença no sentido de todos eles deverem ser julgados por procedentes, nomeadamente, e desde logo, os 3 pedidos principais.

É verdade que a sentença recorrida julgou a ação parcialmente procedente, condenando a R., C.B.G.- Imobiliária, S.A., a pagar ao A., aqui Recorrente, a quantia de €67.500,00, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento. Mas tal só corresponde à apreciação feita do pedido subsidiário constante da al. f) da petição inicial, pois quanto aos demais pedidos, a decisão final constante da sentença foi no sentido da absolvição dos R.R. “do pedido”.

Sucede que que a sentença recorrida, na verdade, não apreciou nenhum dos pedidos constantes das alíneas a) e b) da petição inicial, apesar de os enunciar (cfr. fls. 239 verso), debruçando-se praticamente em exclusivo sobre o pedido de execução específica, que constava da al. c) do petitório, dele fazendo uma apreciação que é objetivamente conforme à decisão final de absolvição dos R.R. desse pedido.

A sentença não inclui uma única linha para fundamentar a improcedência do pedido formulado na alínea a) da petição inicial, limitando-se a concluir que não poderia haver execução específica de contrato-promessa cujo prazo de vigência cessou (cfr. fls. 240). Ora, o pedido da alínea a) nada tem a ver com o pedido de execução específica que se julgou improcedente.

Dito isto, temos de reconhecer, no entanto, que poderia existir uma razão para essa omissão pronúncia, decorrente do contexto do processado dos autos. Simplesmente essa hipotética razão não é atendível e só poderia resultar dum claro equívoco.

Efetivamente, no que concerne ao pedido da alínea a) da petição inicial, ele suporta-se na alegação de factos e de qualificações jurídicas que já haviam sido apreciadas em anterior ação judicial, que correu termos no extinto 2.º Juízo Central Cível de Almada, sob o n.º 1626/12.5TBMTJ, no qual figuravam, como A.A.: CR e MJ, respetivamente a co-A. nesta ação e a filha do aqui Recorrente; e como R.R.: a C.B.G. – Imobiliária, S.A. e JR, que são, respetivamente, a 1.ª R., que é um dos aqui Recorridos, e o A., que é Recorrente na presente apelação.

Nessoutra ação, relativamente à qual, patentemente, não havia coincidência absoluta entre as partes aí em litígio por reporte às da presente, também não havia coincidência de pedidos, pois ali pretendia-se apenas que fosse declarada a nulidade, por simulação, do contrato de compra e venda da herdade de … celebrado entre C.B.G. – Imobiliária, S.A. e JR, com o consequente cancelamento da inscrição do registo da propriedade a favor da sociedade R..

Não havendo coincidência absoluta das partes, nem havendo sequer uma mínima semelhança entre os pedidos formulados nas duas ações, existia, no entanto, uma coincidência parcial dos factos que serviam de causa de pedir às mesmas. Por isso, muitos dos factos dados por provados na presente ação são precisamente os mesmos que foram provados no processo n.º 1626/12.5TBMTJ, tal como se mostra refletido na factualidade da sentença aqui recorrida (v.g. factos provados 1 a 34 e facto 37, alíneas “A” a “AAA”).

Mais, a ação anterior, que correu termos sob o n.º 1626/12.5TBMTJ, veio a ser julgada improcedente por não provada, sendo os ali R.R. absolvidos do pedido de declaração de nulidade do contrato de compra e venda, por alegada simulação, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de junho de 2017, transitado em julgado em 18 de setembro de 2017 (cfr. certidão junta de fls. 41 verso a 61 verso), porque se julgou que não se verificavam os requisitos da simulação, mas também por se ter feito uma qualificação jurídica diversa do negócio efetivamente celebrado, configurando-o como um “venda fiduciária em garantia” (cfr. págs. 23 a 39 do cit. doc. n.º 12 junto com a petição inicial – v.g. fls. 53 a 61).

Precisando melhor a situação, verificamos que, em função do teor desse acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, percebe-se que o tribunal de 1.ª instância julgou a ação procedente, reconhecendo a existência de simulação e, portanto, que haveria divergência entre a vontade real e a declarada, com o propósito de enganar terceiros, fundada num acordo simulatório (cfr. Art. 240.º n.º 1 do C.C.), porque os vendedores não queriam vender, nem os compradores pretenderiam comprar a dita herdade da YY (cfr. cit. doc. pág. 17 a fls. 50). No entanto, o Tribunal da Relação alterou a matéria de facto e julgou não se verificarem os requisitos da simulação previstos no Art. 240.º n.º 1 do C.C. (cfr. cit. doc. págs. 17 e 18  a fls. 50 e verso), considerando antes que estaria em causa a figura típica da “venda fiduciária em garantia” (cfr. cit. doc. a págs. 19 e 20 a fls. 51 e verso). Só que, nessa sequência, ponderou a circunstância de, subjacente a esse negócio, estar um contrato de mútuo suscetível de ser tido por inválido, seja por usura, seja por ser abusivo ou contrário à lei, ao abrigo dos Art.s 280.º, 282.º, 294.º e 334.º do C.C. (cfr. cit. doc. a pág. 20 a fls. 51 verso), sendo que no caso haveria negócio usurário por terem sido violados os limites legais impostos à taxa de juro aplicável aos contratos de mútuo, nos termos do Art. 282.º, 1146.º n.º 1 e 559.º do C.C. (cfr. cit. doc. a pág. 20 a fls. 51 verso) e, caso o imóvel se mantivesse na esfera da R., o contrato de compra e venda seria contrário à lei, com conteúdo ilícito proibido pelo Art. 280.º do C.C. (cfr. cit. doc. pág. 21 a fls. 52). Foi por esse motivo que o Tribunal da Relação manteve a decisão recorrida, proferida pela 1.ª instância, de declarar a nulidade do negócio jurídico de compra e venda, mas com uma fundamentação jurídica completamente diversa, que na verdade nem sequer havia sido alegada pelas A.A. dessa ação, segundo se depreende.

O Supremo Tribunal de Justiça veio a revogar o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, julgando a ação improcedente, confirmando a apreciação feita pela Relação relativamente à falta de verificação dos requisitos da simulação (cfr. cit. doc. pág. 22 a fls. 51 verso) e concordando também com a qualificação jurídica feita em termos de entender que os factos apurados se deverem subsumir a uma “venda fiduciária garantida” (cfr. cit. doc. pág. 23 a fls. 53). No entanto, considerou que não colhiam os argumentos aí expedidos no sentido da nulidade do contrato de compra e venda, mesmo reconhecendo que ao mútuo da quantia de €265.000,00, pelo prazo de 10 meses, não poderia corresponder o reembolso da quantia mutuada acrescida de €110.000,00, porque tal implicaria juros muito superiores ao limite legal de 7% (4% + 3%), que decorreria da aplicação dos juros legais previstos no Art. 559.º do C.C., conjugado com a Portaria n.º 291/2003 de 8/4 e tendo em atenção o disposto no Art. 1146.º n.º 1 do C.C. (cfr. cit. doc. pág. 31 a fls. 57).

Do teor desse douto acórdão do Supremo percebe-se que a questão foi apreciada nesses termos, porque não havia sido formulado pelas A.A. o pedido de redução dos juros, ao abrigo do Art. 1146.º n.º 3 do C.C., mas apenas de nulidade da compra e venda por simulação (cfr. cit. doc. a pág. 31 a fls. 57). Também se discordou que houvesse usura do contrato de mútuo subjacente, caso a venda se mantivesse e o prédio continuasse na esfera jurídica da R., porque se os juros fossem reduzidos, nos termos do n.º 3 do Art. 1146.º do C.C., deixaria de haver usura, sendo que a circunstância de o valor do prédio ser superior ao valor do mútuo e dos juros com o limite legal, não implica só por si a nulidade da compra e venda (idem pág. 31 a fls. 57).

No final, o Supremo Tribunal de Justiça afirma explicitamente que: «Haverá, assim, que concluir que, daquela matéria de facto, não resultam elementos bastantes para apurar, com segurança, a existência duma situação que implique a nulidade ou anulação do referido contrato de compra e venda» (cfr. cit. doc. a pág. 39). Ou seja, julgou-se que não havia nulidade por simulação, porque não se provaram os factos integradores dos pressupostos desse tipo de vício do negócio jurídico, nem qualquer outra invalidade que pudesse ser conhecida “com segurança”, sustentada na existência de um contrato de mútuo usurário ou de compra e venda usurária, abusiva ou contrária à lei.

Em que é que releva esta decisão para o caso dos autos?

É que os R.R., na sua contestação, vieram alegar a exceção do caso julgado, com fundamento na existência de repetição da mesma ação, com discussão dos mesmos factos e das mesmas pretensões que estavam subjacentes aos dois processos em menção.

Sucede que, no despacho saneador, e como era por demais evidente, essa exceção foi julgada por improcedente, desde logo, por não haver identidade entre as partes, mas fundamentalmente porque os pedidos eram completamente diversos nas duas ações. No entanto, no final, reconheceu-se que haveria que ponderar a “autoridade do caso julgado”, de tal forma que não poderiam as partes discutir neste processo que a relação contratual estabelecida entre A.A. e a R. CBG seria uma “venda fiduciária garantida”.

Efetivamente, ficou aí consignado que:

«4. Relativamente à questão da autoridade do caso julgado, verificamos que os RR. declaram, na contestação, a sua discordância relativamente ao enquadramento jurídico efetuado pelo Supremo Tribunal de Justiça, no sobredito Processo nº 1626/12.5TBMTJ, quanto ao negócio celebrado pelas partes.

«Porém, tendo ambas as partes intervindo no referido Processo, mostram-se vinculadas aos fundamentos da decisão aí proferida, sendo certo que a qualificação de negócio como fiduciário em garantia constitui pressuposto lógico indispensável da improcedência dessa ação, logo, impõe-se às partes no âmbito da figura da autoridade do caso julgado.

«Não é, consequentemente, lícito aos RR. discutir essa qualificação, a qual se mostra definitivamente assente por força do trânsito em julgado daquele Acórdão.

«5. Em conclusão:

«a) Julga-se improcedente a exceção dilatória da exceção de caso julgado, invocada pelos RR.;

«b) Julga-se legalmente inadmissível a discussão, no âmbito dos presentes autos, da qualificação do negócio celebrado pelas partes como uma venda fiduciária em garantia, por força da autoridade de caso julgado produzida pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no Processo nº 1626/12.5TBMTJ» (cfr. fls. 209 verso).

Sucede que, se é com base nesta decisão que se defende que não poderia ser apreciado o mérito do pedido formulado na alínea a) da petição inicial da presente ação, tal traduz-se num erro de julgamento sustentado em raciocínio que não tem qualquer fundamento.

Efetivamente, a “autoridade do caso julgado” não tem como consequência legal que o tribunal deva abster-se de conhecer os pedidos que tenham sido formulados em coerência com o julgamento de ação anterior, onde foi proferida decisão definitiva, transitado em julgado. Muito pelo contrário, seria por força da autoridade do caso julgado que parte substancial desse primeiro pedido deveria ser julgado por procedente, e logo no despacho saneador, já que o tribunal a quo entendeu que as partes não mais poderiam discutir entre si a qualificação jurídica do negócio que as vinculava.

O que não poderia acontecer era, como aconteceu nos autos, reconhecer que se verificava uma situação de “autoridade do caso julgado”, impondo às partes a inibição de discutirem a qualificação jurídica do negócio, nomeadamente no que se refere à existência duma “venda fiduciária em garantia” e depois, perante um pedido dos A.A., pelo qual se pretendia explicitamente que fosse reconhecido como “venda fiduciária em garantia” o contrato celebrado entre A.A. e R., não julgar logo esse pedido como procedente, acabando por, laconicamente, absolver os R.R. de todos os pedidos principais dos A.A., sem fundamentar minimamente essa decisão, que até é contraditória com o que havia sido expressamente decidido no despacho saneador que, nessa parte, por não ter sido objeto de qualquer recurso, até fez caso julgado formal no processo (cfr. Art. 620.º do C.P.C.).

Como é sabido, as decisões judiciais transitam em julgado logo que não sejam suscetíveis de recurso ordinário ou reclamação (cfr. Art. 628.º do C.P.C.).

Prevê o Art. 619.º n.º 1 do C.P.C. que: «Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º».

O caso julgado traduz assim a força obrigatória da estabilidade das sentenças ou dos despachos que recaiam sobre a relação controvertida objeto da ação e tem como finalidade imediata evitar que, em novo processo, o juiz possa validamente apreciar e considerar um direito, situação ou posição jurídicas, em termos distintos dos já concretamente definidos por anterior decisão, vinculando-o desse modo a essa decisão.

Neste contexto, identifica a Doutrina a verificação de um efeito positivo e negativo do caso julgado. Do efeito positivo, também denominado por “autoridade de caso julgado”, resulta a conclusão de que a decisão assim proferida vincula ou impõe ao tribunal uma decisão na apreciação do mérito do objeto de outra decisão posterior. Já o efeito negativo, configurado como “exceção de caso julgado”, determina uma proibição ou impedimento de o tribunal voltar a decidir, do mesmo modo ou de modo distinto, uma questão já decidida (vide, a propósito: Rui Pinto, in Revista Julgar on line, novembro 2018; Ac. do TRC de 20/10/2015, Proc. n.º 231514/11.3YIPRT.C1; e Miguel Teixeira de Sousa em anotação ao Ac. do TRP de 6/6/2016 - Proc. n.º 1226/15.8T8PNF.P1, disponível em https://blogippc.blogspot.com).

Estas duas vertentes do caso julgado têm consequências jurídicas diversas e sustentam-se em pressupostos não coincidentes.

O caso julgado, enquanto exceção dilatória nominada, pressupõe a verificação necessária da repetição da mesma causa, no pressuposto de que existe identidade das partes, do pedido e da causa de pedir, tendo como consequência legal a absolvição do R. da instância, devendo o tribunal, por força dela, abster-se repetir a mesma decisão (cfr. Art.s 577.º al. i), 578.º, 580.º e 581.º do C.P.C.). Nesta vertente negativa, o caso julgado funciona como proibição de repetição da causa e como proibição de contradição (vide: João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa in “Manual de Processo Civil”, Vol. I, AAFDL, 2022, pág. 641).

O mesmo não sucede exatamente com a vertente positiva do caso julgado, decorrente da verificação duma situação de respeito pela “autoridade do caso julgado”, que impõe a decisão judicial anterior no julgamento do novo processo, condicionando o seu sentido, em situações em que não exista uma efetiva repetição da mesma causa, nomeadamente por não existir uma identidade absoluta das partes, do pedido e causa de pedir, mas pressupondo que haja uma relação de prejudicialidade, subsidiariedade legal ou de consunção entre o objeto de uma decisão anterior e o objeto da ação posterior. [...]

Nesta vertente positiva, como referem João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa (in “Manual de Processo Civil”, Vol. I, AAFDL, 2022, pág. 641 a 642): «Se se repropuser a questão como fundamento (e não como objeto do pedido), o juiz tem de decidir a questão nos termos do julgado estabelecido (…) se o caso julgado for favorável ao autor, isso implica que o tribunal da causa posterior tem de repetir a decisão anterior (…) se o caso julgado for favorável ao réu, o tribunal da segunda ação tem de o absolver de qualquer pedido incompatível  com a decisão anteriormente transitada (…)» [...]

Em suma, verificados os pressupostos duma situação em que se imponha o respeito pela “autoridade do caso julgado”, o Tribunal não se deve abster de decidir. Pelo contrário, deve decidir e deve fazê-lo em conformidade com a decisão anterior transitada em julgado.

No caso dos autos, tudo leva a crer que o tribunal não decidiu o pedido constante da alínea a) da petição inicial – é só essa a conclusão a retirar do despacho saneador que omite qualquer decisão condenatória ou declaratória do reconhecimento do direito – e, se o decidiu na sentença final, nomeadamente quando absolveu os R.R. “do pedido”, decidiu precisamente em sentido contrário da decisão transitada em julgado anterior, tendo em atenção o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no Proc. n.º 1626/12.5TBMTJ e, bem assim, o despacho saneador proferido nestes autos, que nessa parte, como vimos, também transitou em julgado.

Dito isto, no caso dos autos, poder-se-ia discutir se se poderia falar duma situação efetiva de “autoridade de caso julgado”, porque na verdade, na ação anterior, que correu termos sob o n.º 1626/12.5TBMTJ, tendo em atenção o teor do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que aí veio a ser produzido [...], a questão da existência duma “venda fiduciária em garantia” era, em princípio, completamente irrelevante para a improcedência do pedido de declaração de nulidade da compra e venda com fundamento na simulação absoluta desse negócio jurídico.

A procedência do pedido formulado naquela ação estava dependente, apenas e só, da prova da existência de divergência entre a vontade real e a declarada e dum acordo simulatório com vista a enganar terceiros (cfr. Art. 240.º n.º 1 do C.C.). No final de contas, a improcedência desse pedido sustentou-se na mera constatação de que as A.A. nessa ação não provaram nenhuma divergência entre a vontade real e a declarada, nem que tivesse existido qualquer acordo simulatório para enganar terceiros, como era seu ónus (cfr. Art. 342.º n.º 1 do C.C.).

Numa apreciação sumária da questão de fundo, poderíamos facilmente concluir que a configuração dessa relação jurídica como uma “venda fiduciária em garantia” nem sequer se poderia dizer como correspondente à prova duma factualidade nova suscetível de integrar uma “exceção perentória” que levaria à inevitável improcedência da ação. No fundo, a ação improcederia apenas, porque as A.A. não provaram os factos constitutivos do seu direito (cfr. Art. 342.º n.º 1, conjugado com o Art. 240.º n.º 1 do C.C.) e, isso, era quanto bastava.

No entanto, o Tribunal da Relação, ao apreciar o mérito da sentença recorrida no n.º 1626/12.5TBMTJ, sustentou que esse negócio jurídico seria de qualquer modo nulo, porque a ele estaria subjacente um contrato de mútuo usurário e uma venda abusiva e contrária à lei (imperativa). É nesse contexto que aparecem, pela primeira vez – ao que tudo indica sem que as partes sobre tal se tenham pronunciado antes –, as qualificações jurídicas relacionadas com a “venda fiduciária em garantia” e a relevância da existência dum “contrato de mútuo usurário”, nomeadamente no que se refere aos juros.

Na prática, a “venda fiduciária em garantia” acaba por funcionar como o “negócio jurídico real” efetivamente querido pelas partes outorgantes, afastada que ficou a alegada existência duma “venda simulada”.

Por seu turno, o “mútuo usurário” foi chamado à colação como causa nova de invalidade do negócio jurídico da venda da herdade da YY, por a esta estar subjacente.
Em qualquer caso, a matéria de facto alegada e provada permitia estes enquadramentos jurídicos, que foram aceitos e discutidos, precisamente nesses termos, quer pelo Tribunal da Relação, quer pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr. doc. n.º 12 junto com a petição inicial de fls. 41 verso a 61 verso), ainda que com consequências finais diversas quanto à apreciação do mérito da causa, que se prendia apenas com a apreciação a validade da compra e venda da herdade da YY.

No final, propiciou-se uma legitima discussão jurídica, permitida no quadro legal do Art. 5.º n.º 3 do C.P.C., que enlaçou as partes nos seus termos, sem que se tenha suscitado qualquer invalidade sobre as pronúncias assim feitas. [...]

Nos presentes autos, não se discute a validade da compra e venda. Pelo contrário, os A.A. pressupõem a validade de todos esses negócios jurídicos, em respeito pela decisão final, transitada em julgado, no Proc. n.º 1626/12.5TBMTJ. Mas pedem, em coerência com essa mesma decisão final, produzida pelo Supremo Tribunal de Justiça, para: «a) Ser reconhecido como venda fiduciária em garantia de um mútuo o contrato celebrado entre os AA. e a R. CBG e usurários os juros cobrados pela R. nesse contratocom a sua redução à quantia de €15.256,48, ou outra que venha a resultar da aplicação da taxa legal de 7%, a liquidar em execução de sentença».

Em bom rigor, se se entender que é devido o respeito pela autoridade do caso julgado, a decisão final que se impunha era reconhecer que a relação contratual formalizada entre os A.A. e a R. CBG, através da escritura de compra e venda de 4 de agosto de 2008 (cfr. doc. de fls. 31 verso a fls. 34), conjugada com o contrato promessa para recompra da mesma herdade, outorgado na mesma data (cfr. doc. de fls. 122 verso a fls. 124 verso), é uma “venda fiduciária em garantia”. Sendo certo que à mesma conclusão se chegaria, mesmo que se entendesse não se verificar no caso efetiva necessidade de respeito pela autoridade do caso julgado, porque os factos provados constantes dos pontos 6 a 8 e 13 a 23 na sentença recorrida são suficientes para se chegar a essa configuração jurídica.

No que se refere ao segmento seguinte da alínea a) do pedido formulado pelos A.A. na sua petição inicial – relativo ao reconhecimento de que os juros do contrato de mútuo, subjacente à compra e venda e promessa de recompra, são usurários – a sua procedência deve resultar do simples cálculo aritmético e da coerência da decisão com o exposto no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo n.º 1626/12.5TBMTJ.

De facto, a R. emprestou €265.000,00 aos A.A., através do pagamento do preço de compra da herdade da YY, mas os A.A. teriam de restituir o capital mutuado, acrescido de juros, através da recompra da herdade, pelo pagamento do preço de €375.000,00, tal como convencionado no contrato-promessa outorgado no mesmo dia da escritura de compra e venda (4 de agosto de 2008), devendo a escritura de “recompra” ser outorgada até 31 de maio de 2009 (cfr. cláusula terceira do cit. doc. a fls. 123). Portanto, o valor de recompra correspondia ao reembolso do capital mutuado, de €265.000,00, acrescido de €110.000,00, estes últimos devidos a título de juros.

Como foi reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do processo anterior, a taxa de juros não poderia exceder os juros legais (à taxa de 4% de acordo com a Portaria n.º 291/2003 de 8/4) em mais de 3%, sob pena de serem havidos por usurários (cfr. Art. 1146.º n.º 1 do C.C.). Pelo que, facilmente se constata que entre 4 de agosto de 2008 (data em que os A.A. receberam o preço/quantia mutuada) e 31 de maio de 2009 (data em que deveriam recomprar o imóvel, por força do contrato-promessa), os juros não poderiam exceder €15.246,58 (calculado no sítio: https://www.calculodejuros.pt/juros-taxa-variavel.aspx pela inserção dos seguintes dados: quantia: 265.000; taxa de juro: 7%; data de início de contagem: 4/8/2008; data de fim da contagem: 31/5/2009).

Consequentemente, o acordo nos termos do qual implicaria que os A.A. tivessem de pagar, no caso concreto, €110.000,00 a título de juros no dia 31 de maio de 2009, permite-nos concluir, sem margem para dúvida, que os juros cobrados pela R. eram usurários, devendo proceder, também nesse segmento, do pedido constante da alínea a) o pedido formulado.

Quanto ao segmento final desse pedido, em que se pretendia ver reconhecida a redução dos juros para a quantia de €15.256,48, tendo em atenção o disposto no Art. 1146.º n.º 3 do C.C., deve ser corrigido esse valor para 15.246,58, tendo em conta a data de vencimento da obrigação inicialmente estabelecida para o dia 31 de maio de 2009.

Resta ainda dizer que o pedido dos A.A., tal como formulado na petição inicial, reportava-se apenas ao cálculo dos juros até ao termo do contrato-promessa inicial outorgado em 4 de agosto de 2008. Ora, resulta da matéria de facto que depois houve uma renegociação posterior que levou à outorga de um segundo contrato-promessa, que tinha outra data de termo final. No entanto, como o pedido formulado referia-se ao cálculo dos juros até 31 de maio de 2009, a decisão de reconhecimento da usura dos juros e do cálculo da correspondente redução dos juros devidos deve respeitar os limites objetivos desse pedido (cfr. Art. 609.º n.º 1 do C.P.C.).

É neste termos que deverá proceder o pedido formulado na alínea a) da petição inicial.

*III. [Comentário] Segundo resulta dados referidos no acórdão,

-- As partes da acção anterior foram, como autores, CR e JR e, como demandados, C.B.G.- Imobiliária, S.A., e CG;

-- As partes da presente acção são, como autores, CR e MJ, e, como réus, C.B.G. – Imobiliária, S.A. e JR.

Nestas condições, apenas com recurso a uma aceitação (ainda que tácita) do caso julgado favorável da decisão proferida na anterior acção se pode falar de autoridade de caso julgado em relação a a MJ (segundo se percebe, filha de CR).

No entanto, é discutível que a qualificação do contrato e venda como uma "venda fiduciária em garantia" realizada na anterior acção pudesse, em qualquer hipótese, fundar a excepção ou a autoridade de caso julgado, dado que essa qualificação não pode ser considerada como um antecedente lógico necessário da decisão que não se pronuncia nem pela nulidade, nem pela nulidade do referido contrato.

MTS

23/04/2025

Bibliografia (1193)


-- Henke, A. / Randazzo, B. / Voet, S. (Coord.), L’azione di classe italiana nel quadro europeo: profili sostanziali e processuali (Giappichelli: Torino 2025)


22/04/2025

Paper (526)


-- Hatamipour, N., The Appropriate Forum for Collision Actions (SSRN 04. 2025)


Jurisprudência 2024 (153)


Prestação de alimentos;
filho maior; limites


1. O sumário de RC 18/6/2024 (324/11.1TBCTB-G.C1) é o seguinte:

I – A Lei nº 122/15 de 1 de Setembro veio introduzir um nº2 ao artº 1905 do CC, no qual se explicitou, de forma inequívoca, que se mantem para depois da maioridade a pensão fixada em benefício do filho - agora maior - durante a sua menoridade e até que perfaça os 25 anos.

II – Cabe ao progenitor, obrigado ao pagamento de alimentos ao filho menor, o ónus de intentar acção com vista à sua cessação, após a maioridade (artº 989, nº2 do C.P.C.), por apenso à acção onde foram fixados, invocando para o efeito a ocorrência de um dos requisitos constantes deste normativo: a conclusão do processo de educação ou formação profissional do filho; a interrupção desse processo por acto voluntário do filho; a irrazoabilidade da exigência de alimentos ou a sua impossibilidade para os prestar.

III – A maioridade do credor de alimentos não obsta a que se possa recorrer aos mesmos meios coercitivos para a sua cobrança, que os conferidos para protecção dos filhos menores, nomeadamente, os previstos nos artºs 41 e 48 do RGPTC.

IV – No entanto, a legitimidade para os peticionar cabe ao filho maior, credor destes alimentos, ou ao progenitor que assuma o encargo principal de pagar as despesas dos filhos maiores (artº 989, nº3 do C.P.C.) e não ao M.P. face ao estatuído nos art.º s 1º, 2º, 4º, n.º 1, al. i) e 9º, n.º 1 al. d) da Lei 68/2019, de 27/08.

V – É aplicável aos créditos por alimentos os limites de impenhorabilidade previstos no artº 738, nº 4, do C.P.C., ou seja, são impenhoráveis quantias equivalentes à totalidade da pensão social do regime não contributivo.

VI – Apesar deste limite, o tribunal pode sempre ajustar os descontos à real situação e necessidades dos progenitores e dos menores, salvaguardando limite superior ao mínimo legal, quando o julgue indispensável a assegurar a sobrevivência condigna do progenitor.

VII – Para tanto, não basta ao progenitor, devedor destes alimentos, invocar que se encontra a receber subsídio de doença e que sobrevive com dificuldades, atendendo ao facto de este estado e subsídio ter natureza temporária e variável, o progenitor nunca ter pago qualquer quantia a título de alimentos aos seus filhos (durante mais de 4 anos) e a necessidade de ser assegurada uma subsistência condigna ao filho menor.

VIII – A intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos a Menores para que, em substituição do progenitor faltoso, assegure o pagamento da obrigação de alimentos nos termos definidos pela Lei nº 75/98 (na redacção introduzida pela Lei nº 24/2017), deve ser requerida pelo Ministério Público ou por aqueles a quem a prestação de alimentos deveria ser entregue (artº 3, nº1), em caso de impossibilidade de cobrança destes alimentos e limita-se apenas às prestações que se vencerem após decisão que fixe o montante a pagar pelo FGADM.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Estipulada a regulação do poder paternal de menores é esta vinculativa para ambos os progenitores, impondo o seu cumprimento escrupuloso.

Com a alteração legislativa verificada com a introdução da Lei 141/2015, este incidente regulado anteriormente no artº 181 da OTM e agora nos artºs 41 e segs. do RGPTC, prevê a imediata tomada de medidas destinadas a obter o pagamento forçado das prestações em dívida, que abrangerá as prestações vincendas, através da dedução das quantias necessárias nos rendimentos regulares que o devedor tiver a receber de terceiro.

Nestes termos, do disposto no artº 41 nº 1 do RGPTC, decorre que “Se, (…) um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos.”, designando conferência de pais, ou excepcionalmente, notificar o requerido para, no prazo de cinco dias, alegar o que tiver por conveniente.(nº3.)

Os presentes autos foram instaurados ao abrigo do art.º 48.º do RGPTC, o qual estabelece diversos meios de cobrança expedita e coerciva dos alimentos devidos, quando não for voluntariamente satisfeita a prestação nos 10 dias seguintes ao vencimentoadoptando-se as seguintes providências:

“a) Se for trabalhador em funções públicas, são-lhe deduzidas as respetivas quantias no vencimento, sob requisição do tribunal dirigida à entidade empregadora pública;

b) Se for empregado ou assalariado, são-lhe deduzidas no ordenado ou salário, sendo para o efeito notificada a respetiva entidade patronal, que fica na situação de fiel depositário;

c) Se for pessoa que receba rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes, a dedução é feita nessas prestações quando tiverem de ser pagas ou creditadas, fazendo-se para tal as requisições ou notificações necessárias e ficando os notificados na situação de fiéis depositários.

2 - As quantias deduzidas abrangem também os alimentos que se forem vencendo e são diretamente entregues a quem deva recebê-las.

É aplicável aos créditos por alimentos os limites de impenhorabilidade previstos no artº 738, nº4, do C.P.C., ou seja, são impenhoráveis quantias equivalentes à totalidade da pensão social do regime não contributivo.

Ora, como a pensão social no regime não contributivo foi actualizada para o ano de 2024, pelo artº 18 da Portaria n.º 424/2023 de 11 de Dezembro, para o montante de € 245,79, constituindo este montante o valor intocável pelas deduções ordenadas, o despacho recorrido viola esta disposição, tendo em conta que ao recorrente é pago subsídio de doença no montante de € 379,80.

No entanto, atendendo à revogação deste despacho no que se reporta aos alimentos devidos à filha maior, o valor final enquadra-se neste preceito (52,00+€40,00-€379,80 = € 287,80).

Alega, no entanto, o recorrente, que o valor que resta não assegura a sua subsistência condigna, sobrevivendo da ajuda de familiares.

Efectivamente o artº 1 e 2 da Constituição consagram o direito fundamental a uma existência condigna, fundado no respeito pela dignidade humana, que cabe ao Estado assegurar pelo estabelecimento de regimes de solidariedade social, designadamente mediante a atribuição de prestações de natureza social, como os rendimentos de reinserção social, os subsídios de desemprego e de doença, etc. Este direito encontra ainda consagração no artº 63, nº1 e 3 da Constituição que, conforme afirmado no Ac. do Tribunal Constitucional nº 509/2002 “garante a todos o direito à segurança social e comete ao sistema de segurança social a proteção dos cidadãos em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho, implica o reconhecimento do direito ou da garantia a um mínimo de subsistência condigna”.

Ao legislador ordinário é reconhecida, no entanto, ampla margem de conformação deste sistema de protecção, desde que seja assegurado, o mínimo indispensável a uma subsistência condigna.

Este princípio que determinou a limitação constante do referido nº 4 do artº 738 do C.P.C., resulta ainda de anterior entendimento expresso em Acórdão do Tribunal Constitucional nº 62/2002 (publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Março de 2001), a respeito dos artºs 821, nº 1 e 824, nº 1 al. b) e nº 2 do anterior regime processual civil, no qual se decidiu “julgar inconstitucionais, por violação do princípio da Dignidade Humana contido no princípio do Estado de Direito, tal como resulta das disposições conjugadas dos artigos 1.º e 63.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República, os artigos 821.º, n.º 1 e 824.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual são penhoráveis as quantias percebidas a título de rendimento mínimo garantido” tendo em conta que “a prestação de segurança social em causa não exceder o mínimo adequado e necessário a uma sobrevivência condigna.”

Não estando em causa nestes autos um verdadeiro acto de penhora, a natureza do acto para efeitos de impenhorabilidade e de controlo do cumprimento constitucional dos direitos ínsitos nos artºs 1 e 2 da nossa Constituição, é irrelevante, uma vez que, conforme se refere em Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 306/2005 “O que conta é tratar-se de uma providência judicial de apreensão e afectação de certa parcela de rendimentos periódicos daquela natureza (pensões sociais ou retribuição do trabalho por conta de outrem) à satisfação coerciva de dívidas do seu titular, com a consequente possibilidade de a diminuição do respectivo rendimento disponível lhe não permitir a satisfação das necessidades básicas em termos compatíveis com a dignidade da pessoa humana.”

 Ainda sobre a possibilidade de dedução de uma parcela da pensão social, no caso de invalidez, de um progenitor, para satisfação da prestação de alimentos devida a filhos menores, veio pronunciar-se o aludido Acórdão, considerando que aos pais cabe “o dever constitucionalmente autonomizado como dever fundamental e de cujo feixe de relações a prestação de alimentos é o elemento primordial. É o que directamente resulta de no n.º 5 do artigo 36.º da Constituição se dispor que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos” e que há que ter em consideração que nestes casos “entram em colisão o dever e o direito correlativo de manutenção dos filhos pelos progenitores, situação em que, de qualquer dos lados, fica em crise o princípio da dignidade da pessoa humana, vector axiológico estrutural da própria Constituição (…) até que as necessidades básicas das crianças sejam satisfeitas, os pais não devem reter mais rendimento do que o requerido para providenciar às suas necessidades de auto-sobrevivência.

É este essencialmente o princípio a considerar. Aos progenitores cabe o dever de manutenção dos seus filhos, assegurando-lhes níveis de subsistência condigna. Há que referir que ao filho menor deveriam ser prestados alimentos no valor de € 52, valor muito inferior (pressupondo que o outro progenitor estará obrigado a prestação de igual montante) àquele que é o RSI. Na realidade como afirma este Acórdão que vimos referindo, é este o valor que “ no subsistema de solidariedade social se assume como o mínimo dos mínimos compatível com a dignidade da pessoa humana.

Por essa razão, arguida a inconstitucionalidade deste preceito, veio o Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº 54/2022, não julgar “ inconstitucional a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 48° do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (R.G.P.T.C.) em conjugação com o n.º 4 do artigo 738.º do Código do Processo Civil, quando interpretada no sentido de não estabelecer nenhuma diferenciação, fundada na natureza ou no montante dos rendimentos da pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos, e de não estabelecer como limite mínimo de aplicabilidade a preservação de montante equivalente ao valor do IAS.”

É certo que estes juízos explanados nos Acórdãos acima citados se referem à compatibilidade destas normas com a Constituição, não proibindo o tribunal de, no caso concreto, ajustar os descontos à real situação e necessidades dos progenitores e dos menores.

Mas, no caso em apreço, não basta que o progenitor venha invocar que se encontra a receber um subsídio de doença e que sobrevive com dificuldades, tendo em conta que este subsídio sofreu variações, sendo o valor agora fixado a partir de Dezembro, tem natureza temporária e não foi seguramente a causa do não pagamento das prestações vencidas antes do acidente de viação sofrido pelo progenitor e que os filhos, em especial o seu filho menor, igualmente carecem de sustento e que lhes seja assegurada uma vida condigna.

Não tendo sido alterado o montante da prestação devida e não existindo nenhuns elementos para considerar totalmente impenhorável quantia para além da assegurada pelo artº 738, nº 4 do C.P.C., improcede este argumento."

[MTS]