29/04/2025

Jurisprudência 2024 (156)


Processo penal;
alvará; arresto


1. O sumário de RE 11/7/2024 (1812/21.7T8STR-I.E1) é o seguinte:

O arresto em processo crime do alvará de estabelecimento comercial de farmácia compreendido na massa insolvente não obsta à prossecução da actividade da farmácia deliberada em assembleia de credores.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O processo de insolvência tem como finalidade a satisfação dos credores [artigo 1.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante CIRE].

Aos credores compete decidir se o pagamento se obterá por meio de liquidação integral do património do devedor, se mediante a execução de um plano de insolvência que venham a aprovar ou através da manutenção em actividade e reestruturação da empresa, na titularidade do devedor ou de terceiros, nos moldes também constantes de um plano [cfr. ponto 6 do preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18 de Março].

Compreendendo a massa insolvente uma empresa, o juiz pode determinar que a administração seja assegurada pelo devedor e igual faculdade é atribuída à assembleia de credores a qual também pode confiar a administração da massa insolvente ao devedor [cfr. artigo 224.º do CIRE].

Atribuída ao devedor a administração da massa insolvente, assiste ao juiz a faculdade de a fazer cessar verificada uma das seguintes situações: i) a requerimento do devedor; ii) se assim for deliberado pela assembleia de credores; iii) se for afectada pela qualificação da insolvência como culposa a própria pessoa singular titular da empresa; iv) se, tendo deixado de se verificar o pressuposto previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 224.º, tal lhe for solicitado por algum credor; v) se o plano de insolvência não for apresentado pelo devedor no prazo aplicável, ou não for subsequentemente admitido, aprovado ou homologado [artigo 228.º, n.º 1, do CIRE].

No caso, a administração da massa insolvente é assegurada pela Devedora, sob a fiscalização da Srª Administradora da insolvência, na sequência do despacho 07/09/2021 [al. b) supra], administração que se manteve após a não aprovação pelos credores do plano de insolvência apresentado pela Devedora [al d) supra e despacho de 13/5/2022], com assinável êxito, uma vez que já gerou receitas que permitiram pagar cerca de 31% [(706.333,95x100):2.266.648,58] dos créditos reclamados [al. j)], inexiste qualquer fundamento para a fazer cessar ao abrigo do referido artigo 228.º, n.º 1, do CIRE ou pelo menos, a decisão recorrida não se serviu de nenhum deles e os credores, com o parecer favorável da Administradora de insolvência, pretendem ver continuada a exploração do estabelecimento comercial da Insolvente [cfr. al. g) supra].

Neste enquadramento veio a ser proferido o despacho recorrido que fundado na impossibilidade de utilização do alvará da Farmácia (…) determinou o encerramento da actividade da insolvente, assim pondo termo à administração da massa insolvente pela Devedora.

O despacho recorrido é omisso quanto às razões de direito que o fundamentam, isto é, nele não se indica qualquer disposição legal ou princípio de direito que sustente a impossibilidade de utilização do alvará da Farmácia (…) e, consequentemente a impossibilidade da manutenção da actividade da insolvente, por efeito o arresto do referido alvará no processo crime [al. e) supra].

teor do ofício de 07/03 para que remete, por sua vez, também não supre esta omissão; da promoção que o instrói resulta que a apreensão do alvará no processo crime obsta à “sua utilização (…) no âmbito dos (…) autos de insolvência até ser proferida sentença no processo criminal”, mas não se indica qualquer razão de direito em abono desta afirmação.

Coloca-se, assim, a questão de saber se o arresto do alvará da Farmácia (…) à ordem do processo n.º 685/15.3TELSB-D, do Juízo Central Criminal de Santarém, obsta à manutenção da actividade do estabelecimento comercial de farmácia compreendido na massa insolvente, ao invés da pretensão dos credores da insolvência e do parecer da Srª Administradora da insolvência [cfr. als. d) e g) supra].

Inicia-se por afirmar que o arresto no processo crime não incidiu sobre o estabelecimento comercial denominado Farmácia (…), a apreensão deste mantem-se à ordem da massa insolvente, o arresto incidiu exclusivamente sobre o alvará, ou seja, constituiu objecto de apreensão no processo crime – bem ou mal não cumpre agora apreciar, por se tratar de questão excluída do objecto do recurso – o título comprovativo do acto administrativo que atribui ao beneficiário o direito de exploração do estabelecimento da Farmácia (…).

O “alvará” (em rigor, a sua emissão e averbamento) corresponde(m), pois, ao acto jurídico instrumental e executivo da autorização permissiva praticada pela autoridade pública competente. Traduz-se num título comprovativo da prática do acto administrativo de autorização, apto a formalizar (ou externalizar) a atribuição ao seu titular beneficiário (originário ou superveniente) do direito de exploração do estabelecimento (condicionado ao cumprimento de requisitos substanciais) e do dever geral de cumprimento das obrigações legais de actuação e funcionamento (objectivo e subjectivo) das farmácias de oficina (sob pena, conforme os casos, de indeferimento de emissão, caducidade, cassação), enquanto actividade de interesse e ordem pública”. [Ac. STJ de 29-10-2019 (processo n.º 2589/15.0T8STS-A.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt]

O regime jurídico das farmácias de oficina, aprovado pelo D.L. 307/2007, de 31/8, alterado pelos D.L. de 171/2012, de 1/8 e 75/2016, de 8/11, que rege sobre a atribuição (artigo 25.º), caducidade (artigo 18.º, n.º 10), suspensão [artigo 49.º, alínea c)] e cassação [artigos 40.º, n.º 1, 41.º, n.º 2 e 3 e 53.º, n.º 3], do alvará de farmácia, não estabelece qualquer constrangimento ou limitação à manutenção da actividade da farmácia decorrente do arresto (não previsto) do respectivo alvará. Prevê o encerramento do estabelecimento de farmácia por falta de alvará ou da menção dos averbamentos obrigatórios (artigo 42.º, n.º 1), mas não dispõe sobre os efeitos jurídicos do arresto do alvará.

Limitações que também não resultam da lei geral.

O arresto preventivo, previsto pela lei processual penal, é decretado a requerimento do Ministério Público, nos termos da lei do processo civil [artigo 228.º, n.º 1, do Código de Processo Penal] e segundo esta o “arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora” em tudo o que não contrariar os preceitos específicos do arresto [artigo 391.º, n.º 1, do CP]; ora, a penhora do estabelecimento comercial e, por efeito da apontada remissão, o arresto do estabelecimento comercial não obsta a que possa prosseguir o seu funcionamento normal, sob gestão do executado, nomeando o juiz, sempre que necessário, quem fiscalize, aplicando-se com as necessárias adaptações, os preceitos referentes ao depositário” [artigo 782.º, n.º 2, do CPC].

Em caso da penhora de estabelecimento de farmácia, considera Maria Olinda Garcia, “a continuação do funcionamento normal deste estabelecimento não deverá ser tratada como uma simples hipótese (alternativa à hipótese contrária), mas sim como a situação que deverá necessariamente manter-se apesar da penhora, pois trata-se de um estabelecimento que serve o interesse público e que se encontra vinculado ao dever de assegurar a dispensa permanente de medicamentos urgentes (quer em sistema de turnos, quer em regime de disponibilidade) [Aquisição e Transmissão do Estabelecimento de Farmácia, Estudos m Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. IV, pág. 708.], o que significa que ainda que o estabelecimento comercial da Insolvente houvesse sido arrestado no processo crime – e não foi o caso – deveria, como regra, manter-se em actividade.

Arrestado exclusivamente o alvará de farmácia o regime mantem-se, ou seja, o estabelecimento comercial deverá prosseguir a sua actividade.

«Se não existe estabelecimento de farmácia sem alvará, também não é concebível um alvará sem ser por referência a um estabelecimento. (…) o alvará não pode ser destacado do respectivo estabelecimento de farmácia». [Ac. STJ de 27-02-2020 (processo n.º 424/12.0TBELV-C.E1.S2), com sumário em www.stj/jurisprudência/sumários]

Assim, nem a lei geral, nem o regime jurídico das farmácias de oficina estabelecem qualquer constrangimento ou limitação ao prosseguimento da actividade do estabelecimento comercial de farmácia decorrente do arresto do respectivo alvará.

A condição imposta pelo Gabinete de Administração de Bens (GAB), no âmbito das competências da administração de bens apreendidos em processo crime que lhe resulta do artigo 10.º, n.º 1, da Lei n.º 45/2011, de 24/6, segundo a qual fez depender a continuação da atividade do estabelecimento comercial da Insolvente da salvaguarda do “valor de € 2.116.391,85 que o arresto preventivo decretado nos autos do processo n.º 685/15.3TELSB-D visa garantir” [al. f) supra] parece assentar na ideia que os seus poderes de administração do alvará se estendem ao estabelecimento comercial da Insolvente, pressuposto que claramente não se verifica, uma vez que o estabelecimento comercial mostra-se apreendido para a massa insolvente e a sua administração confiada à Devedora desde 07/09/2021 [cfr. al. b) supra]; ao GRA incumbe, pois, a administração do alvará e não a administração do estabelecimento comercial da Insolvente, pelo que apenas as receitas geradas pelo alvará, eventualmente decorrentes da alienação da empresa como um todo [artigo 162.º do CIRE], são susceptíveis de serem afectadas ao pagamento de quantias em dívida no processo crime.

O alvará de farmácia é incindível do respetivo estabelecimento, sendo insuscetível de apropriação e transmissão autónoma e individualizada.” [Ac. STJ de 28/4/2021 (1377/17.4T8OAZ-D.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt].

Em conclusão, o arresto preventivo do alvará da “Farmácia (…)”, à ordem do processo 685/15.3TELSB-D, do Juízo Central Criminal de Santarém, não obsta, a nosso ver, à manutenção da actividade da Insolvente deliberada em assembleia de credores."

[MTS]