30/04/2025

Jurisprudência 2024 (157)


Litigância de má fé;
condenação; recurso; efeitos


I. O sumário de RE 11/7/2024 (3003/22.0T8PTM.E1) é o seguinte:

1 – A inobservância dos deveres de transparência, lealdade, informação, protecção e confiança que revele ser de natureza dolosa ou praticados com negligência grosseira pode acarretar, entre outras consequências, sanções processuais de tipo repressivo, como aquelas que estão previstas no artigo 542.º do Código de Processo Civil.

2 – No caso de aplicação diferida de uma sanção indemnizatória, o recurso que se interponha limita os seus efeitos à decisão de condenação como litigante de má fé, não impedindo o trânsito em julgado nem a eventual exequibilidade da sentença de mérito que haja sido proferida, inviabilizando, consequentemente, que, uma vez precludida a hipótese de interposição de recurso relativamente à decisão base, a parte condenada coloque em crise os factos relacionados com a relação material controvertida em ordem a evitar o reembolso de despesas e prejuízos resultantes da má fé.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O processo é, hoje em dia, entendido como um conjunto de regras e de comandos normativos – destinados a permitir a aplicação do direito substantivo ao caso concreto e a realização da Justiça – que acompanham a vida de uma acção em Tribunal, desde que ela é instaurada até ser proferida a decisão que lhe ponha termo [---]

E a litigância de má-fé configura uma entropia processual indesejada que pode condicionar o regular exercício da actividade jurisdicional.

A decisão condenatória proferida nos autos justifica a condenação de litigância de má-fé com o recurso à seguinte argumentação: «se houvesse o Réu mostrado o contrato de arrendamento a presente ação não teria, previsivelmente, sido proposta pela Autora ou tê-lo-ia sido noutros termos.

Ora, neste particular, não se pode apenas afirmar que se tratou de uma debilidade da prova apresentada, pois o que aconteceu foi que o Réu alterou conscientemente a verdade dos factos, baralhando na sua contestação o Tribunal (v. artigos 9.º e 20.º) e afirmando em audiência uma versão (de que mostrou o contrato) que veio a ser infirmada por outra prova.

Por outro lado, e diferentemente daquilo que o Réu quis transparecer para o Tribunal, e que veio a mostrar-se não ser verdadeiro, a Autora diligenciou pela resolução extrajudicial da situação. Na verdade, a sua versão não veio também neste particular a merecer acolhimento, sendo também ela infirmada por outra prova (note-se, por exemplo que o Réu assumiu na sua contestação ter recebido uma carta por parte da Autora e depois em audiência negou que tal tivesse sucedido).

Com a sua atitude, o Réu obrigou a Autora a socorrer-se do processo e, consequentemente, obrigou ao dispêndio de meios pelo Tribunal.

Ora, o Réu não podia ignorar que alguns dos factos que alegou não correspondiam à verdade, pelo que deduziu consciente e deliberadamente oposição inverídica, em desrespeito ao Tribunal e ao seu antagonista no processo».

*
[...] Face ao postulado normativo do artigo 542.º do Código de Processo Civil, «diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».

No Código de Processo Civil de 1967, era pacífico que só quem agisse com dolo poderia ser condenado como litigante de má fé, não se sancionando a lide temerária, entendida como a litigância violadora com culpa grave ou erro grosseiro das regras de conduta conformes com a boa fé.

Todavia, atentas as alterações introduzidas ao artigo 456.º do Código de Processo Civil, operadas pelos Decreto-Lei n.ºs 329-A/95, de 12/12 e 180/96, de 25/09, deve entender-se que a punição como litigante de má fé abrange quer as condutas dolosas, quer as condutas gravemente negligentes, numa patente tentativa de maior responsabilização das partes. Esta disciplina mantém exactamente os mesmos traços no Novo Código de Processo Civil.

A inobservância desses deveres (transparência, lealdade, informação, protecção e confiança) pode acarretar, entre outras consequências, sanções processuais de tipo repressivo.

*
O Réu pretende reverter alguma da factualidade dada como provada na sentença, mas a referida decisão transitou em julgado relativamente à matéria relacionada com os pedidos ali formulados e os autos prosseguiram apenas para a avaliação da questão da indemnização, mostrando-se consolidada a matéria de facto apurada e tornando-se assim inviável reapreciar a sobredita matéria.

Efectivamente, como afiança Lopes do Rego, o recurso que se interponha limita, obviamente, os seus efeitos à decisão de condenação como litigante de má fé, não impedindo o trânsito em julgado nem a eventual exequibilidade da decisão de mérito que haja sido proferida [Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2004, em anotação ao então artigo 456.º, IV.] [Esta posição é partilhada com José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 461.]

Pelas contingências descritas na acção, a Autora desconhecia a que título o Réu utilizava o imóvel em discussão e este recusou-se a prestar qualquer esclarecimento, motivando assim a propositura do presente procedimento.

Na verdade, tal como ressalta da sentença proferida nos autos, quanto ao uso do locado pelo Réu foi dito que «não existem elementos suficientes nos factos provados que nos permitam pronunciar-nos sobre a legitimidade negocial de (…) para prestar de arrendamento ao Réu a referida fração e nem essa legitimidade foi colocada em causa pela Autora (a Autora apenas referiu desconhecer se aquela era proprietária do imóvel antes da data do registo). E, por outro lado, uma eventual ineficácia do contrato nem se colocaria em relação à Autora, que apenas adquiriu a fração a 01/07/2019.

Resta, pois, concluir que o contrato permanece válido na ordem jurídica e é eficaz relativamente à Autora».

Abrantes Geraldes opina que «a lei não pede a nenhuma das partes que se entregue, sem luta», mas, outro tanto, «o processo não pode ser visto como um simples meio de eliminar as pretensões da contraparte, onde tudo valha, desde os ataques surpresa, aos comportamentos capciosos, às manobras de contra-informação, ao desgaste psicológico, à instrumentalização de meios postos ao serviço de todos, às condutas leais, às meras tácticas destinadas a vencer pela fadiga» [Abrantes Geraldes, Temas Judiciários, vol. I, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 305.]

Também a jurisprudência mais ilustrativa advoga que «não é, por exemplo, por se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira como litigante de má-fé. A verdade revelada no processo é a verdade do convencimento do juiz, que sendo muito, não atinge, porém a certeza das verdades reveladas» [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/12/2003, in www.dgsi.pt.]

Na presente hipótese não se está perante uma simples de situação de decaimento do ónus da prova, antes todo o problema resulta de um comportamento ante-processual em que o Réu se recusou a exibir o título da utilização do imóvel.

A situação detalhada nos autos incorpora, assim, no mínimo, uma negligência grosseira, por parte do Réu quando motiva o accionamento do aparelho de justiça quando tal era evitável nos termos em que foi gizada a acção, caso existisse um comportamento de lealdade e de cooperação que era exigível em função da cláusula geral da boa fé.

Existe uma conduta se inscreve no quadro do abuso de direito. Efectivamente, a atitude processual do requerido de não apresentação do contrato de arrendamento foi instrumental à necessidade de propositura da acção, impondo, por isso, que a sociedade Autora tivesse proposto uma acção de reivindicação. Por ter a qualidade de arrendatário, ao não estar a cumprir com a obrigação de pagamento de rendas, caso se apercebesse de tal relação contratual, a parte activa teria optado por uma acção de despejo. E isso evitaria a propositura da acção real e quiçá a duplicação de procedimentos jurisdicionais.

O recorrente alega que o contrato de arrendamento foi apresentado na contestação (em 06/01/2023), dizendo que a Autora, ao invés de o ter denunciado de imediato, como se suporia, optou por não reconhecer a sua validade.

Porém, àquele momento, face à natureza e à estrutura da acção, tendo presente o pedido e a causa de pedir invocadas pela sociedade Autora, tal não se afigurava processualmente admissível. Tal como resulta da interpretação n.º 6 do artigo 265.º [---] do Código de Processo Civil, porquanto não é permitida a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir quando tal implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida, o que era o caso.

Como afiança Abrantes Geraldes a possibilidade de modificação simultânea do pedido e da causa de pedir «enfrenta agora graves dificuldades em face do novo regime, que é mais restritivo, de modo que a sua aplicação se circunscreve naturalmente aos casos em que exista acordo das partes, nos termos do artigo 264.º» [António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 333.]

A transmutação de uma reivindicação num despejo não se tornava possível, uma vez que o novo pedido não se reportava a uma relação material dependente ou sucedânea da primeira [...] [...]. Num juízo de prognose póstuma não se vislumbra que os factos constitutivos das normas invocadas quando ao pedido inicial fossem comuns ao pedido ampliado ou inovatório [---]. E esse acordo não ocorreu.

Não assiste qualquer outro argumento recursivo com a idoneidade de infirmar a decisão recorrida. Deste modo, assiste razão ao Tribunal recorrido quando condenou o Réu como litigante de má fé e na medida em que o fez, julgando-se assim improcedente o recurso interposto."

[MTS]