13/11/2025

Jurisprudência 2025 (31)


Audição da parte;
"manifesta desnecessidade"; decisão-surpresa*


1. O sumário de RP 10/2/2025 (5984/24.0T8MAI.P1) é o seguinte:

I - Inexiste fundamento para julgar nula a decisão que absolveu o requerido da instância por força da exceção de caso julgado, sem que previamente o juiz tivesse advertido a requerente de que era essa a sua intenção, na circunstância de a requerente ter anteriormente proposto ação em tudo idêntica.

II - O princípio do contraditório sempre haverá de ser compaginado com a proibição da prática de atos inúteis, sendo que a advertência à requerente para os efeitos assinalados seria insuscetível de alterar o sentido da decisão.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"V - Subsunção jurídica

a - Da nulidade da decisão por violação do contraditório

A apelante argui a nulidade da decisão proferida por esta não ter sido precedida de advertência acerca do sentido da mesma.

O 3.º/3 do C.P.C. preceitua que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

A não observância do contraditório, no sentido de não se conceder às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão a conhecer, na medida em que é seja suscetível de influir no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do art.º 195.º do C.P.C..

Dúvidas não há de que o princípio do contraditório é um dos princípios estruturantes do processo civil.

O direito ao exercício do contraditório, entendido como a garantia de que discussão entre as partes se desenvolve de modo dialético, foi alargado pela disposição contida no n.º 3 do art.º 3.º no sentido de prevenir decisões surpresa. Neste segmento normativo estão em causa as questões oficiosamente suscitadas pelo tribunal. Quer se trate de questões de índole processual, quer do mérito da causa, antes de tomar posição, o juiz deve convidar as partes a pronunciarem-se, facultando-lhes a discussão da solução a adotar.

Trata-se de evitar, não propriamente que as partes possam ser apanhadas desprevenidas por uma solução antes não abordada ou perspetivada no processo, mas sim que, mediante a ponderação das razões das partes em contrário, o juiz possa repensar a solução a dar ao caso.

Cada uma das partes é chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito) (…) (Andrade, Manuel, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, 379).

No âmbito de uma conceção ampla do princípio do contraditório, entende-se que existe o direito a uma fiscalização recíproca ao longo de todo o processo, por forma a garantir a participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio (cf. Freitas, José Lebre de; Redinha, João; Pinto, Rui, Código de Processo Civil (anotado), vol. I, Coimbra Editora, p. 8).

Lê-se no ac. do Tribunal Constitucional n.º 259/2000 (DR, II série, de 7 de novembro de 2000): a norma contida no artigo 3.º n.º 3 do CPC resulta, assim, de uma imposição constitucional, conferindo às partes num processo o direito de se pronunciarem previamente sobre as questões - suscitadas pela parte contrária ou de conhecimento oficioso - que o tribunal vier a decidir.

O escopo principal do princípio do contraditório deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de influir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo (Freitas, José Lebre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 1999, p. 8).

O princípio do contraditório, ínsito no direito fundamental de acesso aos tribunais, proíbe a prolação de decisões-surpresa, mesmo que de conhecimento oficioso, e garante a participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e que, em qualquer fase do processo, apareçam como potencialmente relevantes para a decisão (in ac. do Tribunal da Relação do Porto de 30-05-2017, proc. 28354/16.0YIPRT.P1, Fernando Samões, consultável in http://www.dgsi.pt/, tal como os demais acórdãos que vierem a ser nomeados, salvo indicação diversa).

Tal entendimento amplo da regra do contraditório, afirmado pelo n.º 3, do art.º 3.º, não limita obviamente a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz - tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 664.º); trata-se apenas e tão somente, de, previamente ao exercício de tal “liberdade subsuntiva” do julgador, dever este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de exceções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar (Rego, Carlos Lopes do, Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª ed., vol. I, Almedina, p. 32).

Constituem exceção a esta regra, nos termos do citado n.º 3 do art.º 3.º, os casos de manifesta desnecessidade.

Dispensou-se a observância do contraditório nas situações de manifesta desnecessidade” isto é “quando - nomeadamente por se tratar de questões simples e incontroversas - tal audição se configure como verdadeiro ‘ato inútil’(…) só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas suscetíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela (Freitas, José Lebre de, Rendinha, João e Pinto, Rui, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, p. 33).

Lê-se no ac. da Relação de Guimarães de 19/4/2018 (proc. 75/08.4TBFAF.G1, José Alberto Dias): (…) impõe-se afinar o conceito de “manifesta desnecessidade” tendo presente que casos existem em que, não obstante se tratar de questões processuais ou de mérito, de facto ou de direito, não suscitadas pelas partes, estas tinham obrigação de prever que o tribunal podia decidir tais questões em determinado sentido, como veio a decidir, pelo que se não as suscitaram e não cuidaram em as discutir no processo, sibi imputet, não podendo razoavelmente considerar-se que, nesses casos, a decisão proferida pelo tribunal configure uma decisão-surpresa.

Tal solução legal confere ao juiz possibilidade de uma maior ponderação e contribui para uma maior eficácia e satisfação das partes ao verem, com o seu contributo, mais rapidamente resolvidos os seus interesses em litígio (in ac. Relação de Guimarães de 19-4-2018, proc. 533/04.0TMBRG-K.G1, Eugénia Cunha).

Cabe compaginar o princípio do contraditório com o princípio da proibição da prática de atos inúteis previsto no art.º 130.º do C.P.C.. Assim, só deve haver lugar ao exercício do contraditório se este for suscetível de influenciar a decisão do tribunal. De outro modo, será inútil.

Vejamos, então, a aplicação do princípio aos presentes autos, na fase processual em causa.
O juiz de 1.ª instância absolveu o requerido da instância com fundamento na verificação da exceção de caso julgado imediatamente após a entrada da ação em juízo, sem que antes tivesse advertido a requerente de que o iria fazer.

Este procedimento consubstanciará uma violação do princípio do contraditório?

Afigura-se-nos que a resposta a esta questão não poderá deixar de ser negativa.

A requerente sabia ter proposto ação com conteúdo em tudo idêntico aos dos presentes autos, pelo que tinha obrigação de prever que o tribunal poderia vir a decidir no sentido em que o fez.

Afigura-se desajustado e até desenquadrado das exigências legais atinentes ao princípio do contraditório que o juiz tivesse tido que sobrestar na prolação de decisão a fim de advertir a requerente de que, por esta ter anteriormente proposto ação em tudo idêntica à presente, era sua intenção julgar verificada a exceção de caso julgado.

Tampouco obedece a qualquer desígnio processual que houvesse agora que revogar a decisão proferida para que a requerente se pronunciasse a propósito da exceção de caso julgado.

Atente-se em que, mesmo em sede de alegações de recurso, a apelante se pronunciou a respeito da exceção de caso julgado dizendo: não se verifica a exceção do caso julgado; contém, de forma perfeitamente inteligível, os factos que consubstanciam a causa de pedir, o direito aos mesmos aplicável e em que se funda o pedido, que também é absolutamente claro e consonante com a causa de pedir (conclusão 15).

A recorrente nada disse, pois, no que concerne aos requisitos do caso julgado.

Em suma, a apelante não extraiu consequências jurídicas da sua invocação da violação do princípio do contraditório, no sentido de que, se este tivesse sido observado, a decisão teria sido outra. É, pois, forçoso concluir que a irregularidade não influiu no exame ou decisão da causa, requisito imprescindível para que a omissão pudesse produzir nulidade (art.º 195.º/1 do C.P.C.).

Pelo exposto, desatende-se a pretensão da apelante de que a decisão seja declarada nula.

*
b - Da verificação dos requisitos do caso julgado

A exceção do caso julgado pressupõe uma tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir (artigos 580.º e 581.º do C.P.C.).

Nos termos dos artigos 577.º/i) e 578.º do C.P.C. o caso julgado é uma exceção dilatória de conhecimento oficioso.

O caso julgado tem como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão, já que nos termos do art.º 621.º do C.P.C. a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga. [...]

Sumaria-se no ac. da Relação de Coimbra de 28-09-2010 (proc. 392/09.6 TBCVL.S1, Jorge Arcanjo): I - A exceção do caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova ação, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objeto e pedido. II - A autoridade do caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no art.º 498.º do Código de Processo Civil (581.º NCPC).

No caso em apreço é evidente que existe identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir. Inexistia, por isso, fundamento para a prossecução dos autos. Tal violaria, inclusivamente, o princípio da economia processual, vertido no art.º 130.º do C.P.C., segundo o qual não é lícito realizar no processo atos inúteis.

Outro não poderia, por conseguinte, ter sido o sentido da decisão proferida, estando a presente apelação votada ao insucesso.


*3. [Comentário] Não se discorda da solução adoptada no acórdão, dado que o recorrente não pode desconhecer as consequências da propositura de duas acções idênticas. No entanto, não pode deixar de se referir que, com a devida consideração, não é correcto afirmar que 

"A não observância do contraditório, no sentido de não se conceder às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão a conhecer, na medida em que é seja suscetível de influir no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do art.º 195.º do C.P.C.".

A ser assim, o que a RP teria de concluir de imediato era que, precisamente por essa razão, não tinha competência para apreciar a referida nulidade processual inominada, dado que esta devia ter sido invocada perante o tribunal recorrido (art. 196.º CPC). Chama-se a atenção para o que se escreveu aqui.

Noutros termos: não é possível cumular a nulidade processual inominada do art. 195.º CPC com a decisão-surpresa que decorre da violação do estabelecido no art. 3.º, n.º 3, CPC.

MTS