1. Algo inexplicavelmente, continua a ignorar-se na jurisprudência que a decisão-surpresa constitui um vício distinto da nulidade processual.
Foi recentemente publicado um acórdão que ilustra, de forma paradigmática, essa situação. Trata-se de um caso em que o tribunal apreciou, no saneador-sentença, a excepção peremptória de caducidade sem que, como impõe o disposto no art. 591.º, n.º 1, al. b), CPC, tenha sido convocada a audiência prévia para discussão dessa excepção. Apesar de se tratar de um "exemplo de escola" de uma decisão-surpresa, o acórdão acaba por entender que esse conhecimento indevido da excepção peremptória constitui a nulidade processual estabelecida no art. 195.º, n.º 1, CPC.
Sem repetir tudo o que já se referiu várias vezes sobre a matéria neste Blog (por exemplo, aqui), basta lembrar que a nulidade processual inominada referida no art. 195.º, n.º 1, CPC decorre da prática de um acto não previsto na tramitação ou da omissão de um acto previsto nessa tramitação. Ora, o conhecimento indevido de uma questão numa qualquer decisão nunca pode ser equiparado à prática ou à omissão de um acto.
2. a) Ao que se tem referido sobre a matéria neste Blog, pode acrescentar-se um outro argumento contra o entendimento adoptado no acórdão. O argumento vem na lógica do que já se afirmou e reafirmou neste Blog, mas talvez seja o argumento decisivo para "matar o problema".
A haver a nulidade inominada estabelecida no art. 195.º, n.º 1, CPC, então o meio adequado para a parte reagir contra essa nulidade seria a reclamação perante o tribunal na qual a nulidade foi cometida (art. 196.º CPC). No caso concreto decidido no acórdão a que acima se fez referência, a reclamação deveria ter sido apresentada no tribunal de 1.ª instância que proferiu o saneador-sentença. Assim, para ser coerente com a própria qualificação que faz do vício (nulidade processual), o tribunal de recurso deveria, no seu acórdão, ter reconhecido que não tem competência (funcional) para o apreciar.
Segundo o estabelecido no art. 196.º CPC, "das nulidades processuais reclama-se". Quer dizer: o meio de impugnação de uma nulidade processual é a reclamação para o tribunal do processo. Assim, só depois de este se ter pronunciado sobre a nulidade pode ser admissível a interposição de recurso para um tribunal superior.
Por isso, não se vê como é que o tribunal de recurso perante o qual é impugnada a decisão-surpresa consegue justificar a competência (funcional) para apreciar, em primeira instância, uma nulidade processual que deveria ter sido apreciada através de reclamação apresentada no tribunal agora recorrido. Com o devido respeito, não tem qualquer coerência qualificar o vício como nulidade processual e apreciar esse vício como se o tribunal de recurso tivesse competência para o fazer.
Assim, a orientação segundo a qual o proferimento de uma decisão-surpresa constitui uma nulidade processual conduz ao proferimento pelos tribunais de recurso de decisões que são inevitavelmente nulas por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º CPC). De acordo com a premissa de que parte essa orientação, essas decisões conhecem de uma matéria (nulidade processual) de que os tribunais de recurso só podem conhecer depois de uma decisão do tribunal recorrido ter reconhecido ou não ter reconhecido a nulidade processual.
Ao tribunal de recurso que entende que a decisão-surpresa origina uma nulidade processual só poderia restar, quiçá com fundamento em erro do meio processual (art. 193.º CPC), convolar o recurso em reclamação e mandar baixar o processo ao tribunal recorrido. O que não é coerente é qualificar o vício como nulidade processual sem, ao mesmo tempo, reconhecer que o tribunal de recurso não tem competência para o apreciar.
b) Recorde-se o caso concreto decidido no acórdão acima referenciado: num saneador-sentença, o tribunal de 1.ª instância conheceu da excepção peremptória de caducidade sem ter sido convocada a audiência prévia. Supõe-se que há uma aceitação generalizada de que o meio adequado para reagir contra esta situação é a interposição de um recurso. No entanto, este entendimento tem uma consequência legalmente inevitável e incontornável: ele é incompatível com a qualificação do vício como nulidade processual, porque então o meio adequado seria a reclamação para o tribunal que proferiu o saneador-sentença.
Dito de outro modo: se se aceita que a forma de reagir contra uma decisão que conhece de matéria que teria exigido a convocação da audiência prévia é o recurso para um tribunal superior (e não a reclamação para o próprio tribunal que não convocou aquela audiência), então o vício nunca pode ser qualificado como nulidade processual. Ou dito pela positiva e de forma mais geral: se o recurso é o meio adequado para reagir contra uma decisão que conheceu indevidamente de uma determinada questão por falta de audição prévia das partes, então o vício só pode ser qualificado como uma decisão-surpresa (e nunca pode ser entendido como uma nulidade processual).
c) Em conclusão, perante uma decisão que foi proferida sem a necessária audição prévia das partes, há efectivamente que escolher entre:
-- Entender que o vício que afecta a decisão é uma nulidade processual; disto decorre necessariamente que o tribunal de recurso não tem competência (funcional) para apreciar, em primeira instância, esse vício, porque o meio de impugnação adequado de qualquer nulidade processual é, sempre e apenas, a reclamação para o próprio tribunal do processo;
-- Entender que o recurso é o meio apropriado para impugnar a decisão; isto implica necessariamente que o vício de que padece a decisão não pode ser a nulidade processual, porque nenhuma nulidade processual é impugnável, em primeira instância, através de recurso; um tribunal superior só pode vir a ocupar-se de uma nulidade processual através do recurso que para ele venha a ser interposto da decisão do tribunal do processo que tenha apreciado a reclamação apresentada pela parte.
O que é inaceitável é, como se julga ter convincentemente demonstrado, misturar nulidade processual (vício processual) e recurso (meio de impugnação).
3. Contra o afirmado poder-se-ia objectar que o que dele decorre é que nada obsta a que o vício respeitante à falta da audição das partes antes do proferimento de uma decisão seja qualificado como nulidade processual e que a competência (funcional) para a sua apreciação caiba ao tribunal que cometeu a nulidade.
Contra esta solução milita, para além da impossibilidade de aplicar o disposto no art. 195.º, n.º 1, CPC à situação em análise, uma simples (mas ponderosa) razão de ordem prática. Nem vale a pena pensar a complicação que se introduziria no sistema processual se, como viria a acontecer na grande parte dos casos em que a parte alegasse que o tribunal proferiu uma decisão-surpresa, esta decisão tivesse de ser impugnada, em parte, no tribunal que a proferiu e, na parte restante, perante um tribunal de recurso.
MTS