Caso julgado;
acção de estado; âmbito subjectivo*
acção de estado; âmbito subjectivo*
1. O sumário de RP 23/10/2023 (1681/23.2T8STS.P1) é o seguinte:
I - O caso julgado consiste na imodificabilidade da decisão através de recurso ordinário ou de reclamação, tendo uma função de certeza ou segurança jurídica, visando evitar decisões concretamente incompatíveis.
II - Pode ser material ou formal, conforme a decisão verse sobre a relação material controvertida ou recaia unicamente sobre a relação processual.
III- O caso julgado material, por possuir uma eficácia externa extensível a processos posteriores, realiza não só um efeito negativo (que se traduz na insusceptibilidade de qualquer tribunal se voltar a pronunciar sobre a decisão proferida – funcionando então como exceção do caso julgado), como também um efeito positivo, que resulta da vinculação do tribunal que proferiu a decisão e, eventualmente, de outros tribunais ao que nela foi definido ou estabelecido (vigorando, nesse caso, como autoridade do caso julgado).
IV- Como emerge com meridiana clareza do enunciado linguístico vertido no artigo 622º do Código de Processo Civil, o caso julgado (material) formado em ação sobre o estado das pessoas apenas será juridicamente relevante e oponível se na demanda onde foi prolatada a respetiva decisão tiverem sido observadas as condições nele impostas para esse efeito, maxime que nessa ação tenham estado presentes todos os “interessados diretos”.
V- Consequentemente, se numa ação de impugnação de paternidade, em desrespeito do litisconsórcio necessário legal, não tiverem sido demandados todos os interessados diretos, não pode operar o caso julgado, seja no seu efeito negativo, seja no seu efeito positivo (de autoridade).
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Como emerge dos autos, a ora autora havia anteriormente intentado contra o ora réu CC ação declaratória (que correu termos, sob o nº 2928/21.5T8STS, pelo Juízo de Família e Menores de Santo Tirso) que culminou com a prolação de um despacho de indeferimento liminar da petição inicial por caducidade do direito de ação, ato decisório esse que transitou em julgado.
Partindo do pressuposto [de] que, na essência, são comuns os elementos objetivos da instância na presente ação e bem assim naqueloutra ação e registando-se, ainda que parcialmente, identidade subjetiva, o tribunal a quo decidiu julgar procedente a exceção dilatória (inominada) de autoridade do caso julgado, em consequência do que absolveu os réus da instância.
É contra o entendimento assim sufragado que o apelante ora se rebela no presente recurso, por considerar não estarem reunidos os pressupostos para operância da mencionada exceção.
Portanto, na resolução da questão supra enunciada, tudo se resume em dilucidar que efeitos a decisão proferida na ação que correu termos, sob o nº 2928/21.5T8STS, pelo Juízo de Família e Menores de Santo Tirso tem na sorte da presente demanda.
É certo que, por definição, o caso julgado implica a inalterabilidade dos efeitos do ato decisório decorrente da sua irrecorribilidade extrínseca, sendo que, como deflui do art.º 628.º do Código de Processo Civil [---], o trânsito em julgado ocorre quando uma decisão é já insuscetível de impugnação por meio de reclamação ou através de recurso ordinário.
Verificada tal insusceptibilidade, forma-se caso julgado - que se traduz, portanto, na impossibilidade da decisão proferida ser substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu -, com o que se visa garantir, primordialmente, o valor da segurança jurídica, fundando-se a proteção a essa segurança jurídica, relativamente a atos jurisdicionais, no princípio do Estado de Direito, pelo que se trata de um valor constitucionalmente protegido, destinando-se a evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior.
No entanto, nem todos os atos decisórios intrinsecamente não irrecorríveis, e, consequentemente, transitáveis em julgado, geram, quando transitados em julgado, idêntico caso julgado.
Com efeito, em processo declarativo, dado que o ato decisório pode incidir, essencialmente, sobre as condições processuais de existência e de admissibilidade da ação e sobre as condições materiais de tutela jurídica do objeto da ação, existem decisões de forma - aquelas que conhecem de matéria adjetiva - e decisões de mérito - aquelas que apreciam matéria substantiva. Relativamente ao caso julgado esta dicotomia reflete-se na atribuição de caso julgado formal às decisões processuais e de caso julgado material às decisões de mérito.
Esta repartição na incidência do caso julgado formal e do caso julgado material, que o direito positivo consagra nos arts. 619º e 620º, repercute a disparidade entre os efeitos da decisão da forma – efeitos processuais respeitantes à individualização da ação – e os efeitos da decisão de mérito – efeitos materiais atinentes à fundamentação da causa. Dito de outro modo, a distinção entre o caso julgado formal e o caso julgado material é a diferença entre os efeitos adjetivos garantidos pelo caso julgado formal da decisão de forma e os efeitos substantivos assegurados pelo caso julgado material da decisão de mérito.
Resulta, pois, do exposto que o caso julgado não permanece idêntico, variando apenas na qualidade da sua relevância intraprocessual ou extraprocessual, perante o comando contido no ato decisório quando este comando possui eficácia adjetiva, originando o caso julgado formal, ou quando aquele comando tem eficácia substantiva, gerando o caso julgado material. Assim, segundo o critério da eficácia, há que distinguir entre o caso julgado formal, que só é vinculativo no processo em que foi proferida a decisão (art. 620.º, n.º 1) e o caso julgado material, que vincula no processo em que a decisão foi proferida e também fora dele, consoante estabelece o art.º 619º.
E isto é assim porque, como se sublinhou, o caso julgado formal tem tão-somente uma eficácia interna limitada ao processo originário, não beneficiando consequentemente dos efeitos processuais típicos que emergem do caso julgado material, que, por possuir uma eficácia externa extensível a processos posteriores, realiza não só um efeito negativo (que se traduz na insusceptibilidade de qualquer tribunal se voltar a pronunciar sobre a decisão proferida – funcionando então como exceção do caso julgado), como também um efeito positivo, que resulta da vinculação do tribunal que proferiu a decisão e, eventualmente, de outros tribunais ao que nela foi definido ou estabelecido (vigorando, nesse caso, como autoridade do caso julgado) [Cfr., sobre a destrinça entre tais conceitos, inter alia, MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 320; ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, 1982, págs. 384 e seguintes; MARIANA FRANÇA GOUVEIA, A causa de pedir na ação declarativa, Almedina, 2004, págs. 394 e seguintes; LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, págs. 599 e seguintes e TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pág. 576 e seguintes e, deste último autor, O objeto da sentença e o caso julgado material (o estudo sobre a funcionalidade processual), in BMJ nº 325, págs. 171 e seguintes, onde após definir o âmbito de aplicação de cada uma das referidas figuras, sintetiza a diferença que ocorre entre elas do seguinte modo: «a exceção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a exceção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira diferente (…), mas também a inviabilidade do tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira idêntica (…). Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspeto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de ação ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjetiva, à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente (…)».] [Registe-se que, desde há largo tempo, a jurisprudência (cfr., entre outros, acórdão do STJ de 26.01.94, BMJ nº 433, pág. 515 e seguintes e acórdão da Relação de Coimbra de 21.01.97, CJ, ano XXII, tomo 1º, pág. 24 e seguintes) vem acolhendo tal distinguo, acrescentando ainda que para a relevância da autoridade do caso julgado não se exige a coexistência da tríplice identidade prevista no art. 581º do Cód. Processo Civil.]
Admitindo que, na situação vertente, com o proferimento da aludida decisão na ação nº 2928/21.5T8STS (rectius, com o seu trânsito) se formou caso julgado material, importa, então, dilucidar se, tal como afirmado pelo juiz a quo, por operância do seu efeito positivo existirá um obstáculo à apreciação da pretensão de tutela jurisdicional que a autora e ora apelante aduz nestes autos, por estar vinculado ao ato decisório prolatado naquele processo.
Tendo em conta os elementos objetivos da instância, tanto a presente demanda como aqueloutra ação versam sobre questão atinente ao estado das pessoas.
Nessas circunstâncias o problema que se equaciona é o de saber se na ação declarativa nº 2928/21.5T8STS se formou efetivamente uma situação de caso julgado (material) relevante para os efeitos do art. 622º, onde se postula que «[N]as questões relativas ao estado das pessoas, o caso julgado produz efeitos mesmo em relação a terceiros quando, proposta a ação contra todos os interessados diretos, tenha havido oposição (…)».
O transcrito inciso refere-se, pois, aos efeitos do caso julgado nas questões de estado (expressão que, no ensinamento de ALBERTO DOS REIS [in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, 1984, págs. 181 e seguinte. Em análogo sentido milita ANTUNES VARELA, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 102, págs. 325 e seguinte, catalogando como ações de estado aqueles que visam constituir, modificar ou extinguir o estado de uma determinada pessoa, ou seja, “aquelas que visam definir a condição jurídica de um individuo perante uma ou mais pessoas”.], abrange todas as questões que tenham por objeto fixar o estado civil de determinada pessoa), nele se enunciando um claro desvio ao princípio da eficácia relativa (inter partes) do caso julgado [Como tem sido enfatizado na doutrina (cfr., por todos, ANTUNES VARELA et al., in Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora pág. 721), a regra da eficácia relativa do caso julgado – e do consequente princípio da oponibilidade do caso julgado a terceiros – é um corolário do princípio do contraditório.] e que encontra a sua razão de ser nos graves inconvenientes de vária ordem que a regra da eficácia relativa acarretaria consigo no domínio deste tipo de ações.
Com efeito, as ações de estado (categoria na qual se integra a presente ação de impugnação de paternidade) visam definir a condição jurídica de um individuo perante uma ou mais pessoas, acabando a decisão que nelas venha a ser proferida por fixar, como salienta ANTUNES VARELA [In Revista de Legislação e [de] Jurisprudência, ano 102, pág. 325.], “a condição jurídico-pessoal do interessado perante um núcleo social. Desta definição de base do estado pessoal, familiar ou nacional do autor ou do réu podem brotar múltiplos direitos, obrigações, inabilidades, impedimentos matrimoniais, expectativas jurídicas, quer em relação à parte adversa, quer em relação a outras pessoas”.
Daí que vigore neste domínio o princípio da indivisibilidade do estado pessoal, pois que, no que especialmente concerne à ação de impugnação da paternidade, ninguém poder ser, ao mesmo tempo, filho de “A” face a um sujeito e filho de “B” face a outro sujeito.
A indivisibilidade das situações jurídicas de natureza pessoal é, assim, uma caraterística ou qualidade indissociável das mesmas, o que leva ANTÓNIO JÚLIO CUNHA [in Limites subjetivos do caso julgado, Quid Juris, 2010, págs. 254 e seguinte.] a concluir que “não é possível configurar um estado pessoal face a um determinado sujeito ou grupo de pessoas, e já não relativamente a outros, é a natureza das coisas que o impede”.
Analisada, ainda que em termos necessariamente sumários, a razão de ser do desvio ao princípio da eficácia relativa do caso julgado nas questões de estado, é tempo de afrontar a questão que é trazida à apreciação deste tribunal ad quem.
Como emerge com meridiana clareza do enunciado linguístico vertido no citado art. 622º, o caso julgado (material) formado em ação sobre o estado das pessoas apenas será juridicamente relevante e oponível erga omnes se na demanda onde foi prolatada a respetiva decisão tiverem sido observadas as condições nele impostas para esse efeito, maxime que nessa ação tenham estado presentes todos os “interessados diretos” [Para além desse requisito a lei adjetiva exige igualmente que “tenha havido oposição”, sendo que a propósito das condições para se afirmar o preenchimento deste último pressuposto normativo têm-se registado posições dispares na doutrina pátria, não faltando quem advogue que esse requisito não faz hoje qualquer sentido – cfr., sobre a questão e por todos, ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, Do caso julgado nas questões de estado, in Themis, ano X, nº 18, 2010, págs. 103 e seguintes.].
Questão que se coloca é de saber quem são, afinal, os interessados diretos a que se reporta o mencionado normativo, os quais, tal como a própria expressão inculca, serão os portadores do principal interesse oposto ao do autor.
Neste conspecto, e no que especialmente concerne à ação de impugnação de paternidade, a lei substantiva (cfr. art. 1844º, nº 1) veio estabelecer que nessa ação deterão legitimidade passiva «a mãe, o filho e o presumido pai quando nela não figurem como autores», sendo que, de acordo com o seu nº 2, «no caso de morte da mãe, do filho ou do presumido pai, a ação deve ser intentada ou prosseguir contra as pessoas referidas no artigo 1844.º [---], devendo, na falta destas, ser nomeado um curador especial; se, porém, existirem herdeiros ou legatários cujos direitos possam ser atingidos pela procedência do pedido, a ação não produzirá efeitos contra eles se não tiverem sido também demandados».
Ora, na situação vertente, verifica-se que na ação nº 2928/21.5T8STS não foram demandados todos os interessados diretos com legitimidade (processual) passiva, sendo que, neste ponto, a lei estabelece uma clara situação de litisconsórcio necessário legal [Como assinalam LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE (in Código de Processo Civil Anotado. Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 78), “a pedra de toque do litisconsórcio necessário é a impossibilidade de, tido em conta o pedido formulado, compor definitivamente o litígio, declarando o direito ou realizando-o, ou ainda, nas ações de simples apreciação de facto, apreciando a existência deste, sem a presença de todos os interessados, por o interesse em causa não comportar uma definição ou realização parcelar”], cuja inobservância deveria ter motivado o proferimento de despacho a providenciar pelo suprimento dessa exceção dilatória.
Consequentemente a decisão que aí foi prolatada não produziu relevantemente caso julgado para os fins do citado art. 622º, sendo certo que, por mor das implicações do enunciado princípio da indivisibilidade do estado pessoal, não é admissível que a questão da filiação do réu possa ser objeto de apreciação, uma ou mais vezes, em ações posteriormente intentadas por outros interessados diretos que não tiveram intervenção na ação, posto que, de outro modo, a sua situação familiar e social não pode deixar de ressentir-se gravemente dessa incerteza.
Significa isto, pois, que, nessa situação, o caso julgado não pode produzir efeitos em ação em que não tenham sido demandados os referidos interessados diretos, porquanto sem a sua (de todos eles) presença na lide não pode ser definida, em moldes definitivos, a questão de o réu CC não ser filho de DD (seu presumido pai, por funcionamento da presunção consagrada no nº 1 do art. 1826º do Cód. Civil). Faltou, assim, à decisão proferida no mencionado processo declarativo um requisito essencial à sua eficácia erga omnes.
Isso mesmo é posto em evidência por CASTRO MENDES/TEIXEIRA DE SOUSA [in Manual de Processo Civil, vol. I, AAFDL Editora, 2022, pág. 669 e seguinte. Em análogo sentido, se pronuncia FERREIRA DE ALMEIDA, in Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, 2015, pág. 606.], ao entenderem que “da circunstância de o caso julgado só ter uma eficácia erga omnes se a ação tiver sido proposta contra todos os interessados diretos decorre que essa eficácia nunca ocorre se se tiver verificado a violação de um litisconsórcio necessário legal”, acrescentando, mais adiante e a propósito da ação de impugnação de paternidade, que nessa ação “devem ser demandados a mãe, o filho e o presumido pai quando nela não figurem como autores; a ausência de qualquer destes interessados impede o caso julgado decorrente da ação lhe seja oponível”.
Deste modo, pelas apontadas razões, no caso sub judicio não pode operar o caso julgado, seja no seu efeito negativo, seja no seu efeito positivo (de autoridade).
*3. [Comentário] O juiz de 1.ª instância decidiu o seguinte:
"[...] declaro a autoridade de caso julgado da sentença proferida no processo n.º 2928/21.5T8STS, que correu termos neste juízo e, em consequência, absolvo os Réus da instância".
Há, aqui, uma confusão: como é claro, a autoridade de caso julgado não é uma excepção dilatória e, por isso, nunca pode determinar a absolvição do réu da instância. Aliás, a autoridade de caso julgado não se "declara", "reconhece-se".
MTS