07/07/2022

Jurisprudência 2021 (235)


Providência cautelar;
periculum in mora*


1. O sumário de RC 15/12/2021 (531/20.6T8FIG.C1é o seguinte:

I) O decretamento de uma providência cautelar não especificada está dependente da verificação dos seguintes requisitos: probabilidade séria da existência do direito invocado; fundado receio de que outrem, antes da acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; não exceder o prejuízo resultante da providência o dano que com ela se quer evitar; e não existência de providência específica para acautelar o mesmo direito.

II) Para efeitos da aferição da existência do requisito do “periculum in mora” só devem ser ponderadas as lesões graves e dificilmente reparáveis, sendo que quanto aos prejuízos materiais o critério de aferição deve ser mais rigoroso do que o utilizado para a aferição dos danos imateriais, pois que, por regra, os primeiros são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva.

III) O requerente da providência tem de alegar e provar factos reais, certos e concretos que mostrem que o receio que invoca é fundado e não é fruto da sua imaginação exacerbada ou da sua desconfiança doentia, não sendo suficiente para o decretamento de uma providência cautelar a mera possibilidade remota de o requerente vir a sofrer danos.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Dispensados os vistos legais, há que decidir.

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se se verificam os requisitos legais para que possa ser decretado o procedimento cautelar intentado pelo requerente, designadamente o “periculum in mora”. [...]

Como resulta do relatório que antecede, o recorrente insurge-se contra a conclusão a que se chegou na decisão recorrida, contrapondo que se deve considerar que os factos alegados, a provarem-se, permitem concluir que se verificam os requisitos exigidos para a procedência do procedimento cautelar em apreço: probabilidade da existência do direito a que se arroga e dano irreparável ou de difícil reparação, pelo que se deverá proceder à produção da prova indicada, a fim de lhe ser possível fazer a demonstração dos factos que alegou.

O que justifica, como resulta das conclusões 13.ª a 16.ª, pelo facto de a conduta dos requeridos se traduzir na “devassa e ocupação de uma parcela de terreno” que pertence ao prédio do requerente e que se impõe “acautelar que no local não se autorize a continuação da construção em prédio do requerente pela requerida, bem como que se reponha o que já se danificou com a construção do muro” e que o dano será irreparável “se se iniciar nova na parte do prédio do requerente construção ou mesmo se se vedar o acesso à entrada do rés-do-chão esquerdo”.

Acrescentando que não se alegou isso no requerimento inicial, porque ainda não teria acontecido, “mas foi o que acabou por acontecer” – cf. conclusão 16.ª, in fine.

O decretamento duma providência cautelar não especificada está – cfr. art. 2.º, n.º 2, 362.º/1 e 2, 365.º/1 e 368.º/2, todos do CPC e 20.º, n.º 5, da CRP – dependente da conjugação dos seguintes 4 requisitos:

-- Probabilidade séria da existência do direito invocado (e deduzido em acção proposta ou a propor, excepto no caso de ser decretada inversão do contencioso);

-- Fundado receio de que outrem, antes da acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito;

-- Não exceder o prejuízo resultante da providência o dano que com ela se quer evitar; e

-- A não existência de providência específica para acautelar o mesmo direito.

“Probabilidade séria da existência do direito invocado” que se basta com um mero juízo de verosimilhança, isto é, com uma prova sumária; outrotanto não acontecendo com a apreciação dos factos integradores do “periculum in mora”, em que se deve usar um critério mais rigoroso.

Efectivamente, em relação aos factos integradores do “periculum in mora”, o requerente tem que alegar e depois provar – não bastando um mero juízo de verosimilhança – o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável.

O que significa, por um lado, que não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes duma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória; só lesões graves e dificilmente reparáveis permitem a tomada de uma decisão cautelar [Por outras palavras, ficam arredadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento cautelar comum, ainda que se mostrem de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são afastadas as lesões que, apesar de serem graves, sejam facilmente reparáveis.] E, por outro lado, que também não é um temor vago e incerto que justifica a medida provisória; só um receio fundado, isto é, apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade, a seriedade e actualidade da ameaça permitem a tomada duma decisão cautelar.

Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC, Anotado, Vol. 2.º, 4.ª Edição, Almedina, pág.s 7 e 8, se quanto à existência do direito ameaçado, dadas a provisoriedade da medida cautelar e a sua instrumentalidade perante a acção de que é dependência, bastará ao requerente fazer uma prova sumária, que já não basta quanto ao “periculum in mora”, “que deve revelar-se excessivo: a gravidade e a difícil reparabilidade da lesão receada apontam para um excesso de risco relativamente àquele que é inerente à pendência de qualquer ação; trata-se de um risco que não seria razoável exigir que fosse suportado pelo titular do direito”.

Nos dizeres de Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, Almedina, 2015, a pág.s 214/5 “o requerente da providência deve trazer ao tribunal a notícia de factos reais, certos e concretos que mostrem ser fundado o receio que invoca e não fruto da sua imaginação exacerbada ou da sua desconfiança doentia, pelo que não é suficiente para o decretamento de uma providência cautelar a mera possibilidade remota de vir a sofrer danos. (…)

o juiz deve fazer um juízo de prognose, colocando-se na situação futura de uma hipotética sentença de provimento, para concluir se há, ou não, razões para recear que tal sentença venha a ser inútil, por entretanto se ter consumado uma situação de facto incompatível com ela, ou por se terem produzido prejuízos de difícil reparação para quem dela deva beneficiar, que obstam à reintegração específica da sua tutela jurídica”.

No mesmo sentido, Lucinda Dias da Silva, in Procedimento Cautelar Comum, Coimbra Editora, que a pág.s 145/6, refere que “importa (…) que o julgador se convença de que existe perigo, isto é, que considere provados factos que permitam concluir existir um conjunto de circunstâncias que tornam altamente provável a ocorrência de um dano futuro”.

Como já se escreveu na RLJ, ano 80, pág. 297 (por referência ao artigo 405.º do CPC de 1939, com redacção semelhante ao actual 362.º) “Este segundo requisito traduz-se no periculum in mora: perigo de insatisfação do direito, proveniente da demora em se obter a decisão definitiva da causa. Receia-se que durante a pendência da acção principal e antes de se alcançar a sentença definitiva, se produzam factos que impeçam a satisfação do direito”.

Por último, colhendo os ensinamentos de Abrantes Geraldes, in Temas Da Reforma Do Processo Civil, III Volume, Almedina, 1998, pág.s 83 a 88, só devem ter-se em conta para a aferição da existência do requisito do “periculum in mora” as lesões graves e dificilmente reparáveis, em que se exigem maiores cuidados, devendo o juiz “convencer-se da seriedade da situação invocada pelo requerente e da carência de uma forma de tutela que permita pô-lo a salvo de lesões graves e dificilmente reparáveis.

A gravidade da lesão previsível deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera jurídica do interessado”.

Acrescentando que “especialmente quanto aos prejuízos materiais, o critério deve ser bem mais rigoroso do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva”.

Ficando afastadas da tutela deste procedimento as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida e as facilmente reparáveis, ainda que graves.

Finalizando que “o receio deve ser fundado, ou seja, apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e a actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo.

Não bastam, pois, simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados, assentes numa apreciação ligeira da realidade”.

Repetindo, o que acima já se aludiu, para que se dê como verificada a existência de receio da lesão grave e de difícil reparação, é preciso que o mesmo seja objetivo, atentos os factos invocados.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 02 de Dezembro de 2020, Processo n.º 19870/19.2T8LSB.L1.S1, disponível no respectivo sítio do itij “para se considerar verificado o requisito das providências cautelares não especificadas relativo ao receio de lesão grave e difícil reparação do direito, não basta a prova da existência de tal receio por parte dos requerentes da providência, sendo ainda necessário que tal receio seja fundado, ou que resulte, objectivamente, de factos que o justifiquem”.

Apreciemos pois – tendo isto presente – o silogismo judiciário efectuado pela decisão recorrida e que não decretou a providência requerida.

Não se deu como devidamente alegado o requisito da probabilidade séria da existência do direito à entrega/restituição pretendida, relativa à parte que se alega fazer parte do prédio do requerente, com o fundamento em que este não alegou nem a forma de aquisição do direito de propriedade sobre a parcela em causa, bem como, igualmente, não alegou os factos dos quais se possa extrair a posse. [...]

Por outro lado, deu-se, igualmente, como não verificado, na decisão recorrida, por não estar devidamente alegado, o requisito do “periculum in mora”.

Ponto com que, no essencial, se concorda com a decisão recorrida.

Na qual, se observou e ponderou, a propósito de tal requisito, o seguinte:

Confrontando o invocado no requerimento inicial com o que se deixa dito, facilmente se conclui que o substrato fáctico alegado não traduz qualquer fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável de direitos do requerente, condomínio, nomeadamente por via da reconstituição natural ou indemnização substitutiva. Com efeito, nada é alegado que leve a concluir que a requerida se prepara para fazer nova obra (e que tipo de obra) ou para vedar o acesso dos condóminos à parcela em causa; não são também concretizados quaisquer prejuízos que para o condomínio advenham das obras e ocupação efectuadas pela requerida na parcela situada na parte em que os respectivos prédios confinam, sendo certo que as “defesas”, cujas portas terão sido emparedadas não são habitadas, não sendo referida a sua utilidade actual, e o prédio cujo condomínio requer a providência terá mais que uma entrada (cfr. arts. 10 e 11 da petição). Por fim, a descrição fáctica constante da petição inicial não permite concluir pela impossibilidade ou sequer dificuldade de ressarcimento de danos através da reconstituição natural ou a indemnização substitutiva.

Assim sendo, ainda que prosseguissem os autos com a produção de prova indicada, jamais se poderia concluir pela probabilidade consistente da existência do direito do requerente, nem pelo perigo sério de que a demora na decisão definitiva lhe acarrete um dano grave irreparável ou de difícil reparação.

No essencial, como já se referiu, concorda-se.

Efectivamente, para o decretamento duma providência cautelar, deve o juiz, repete-se, convencer-se da seriedade do “fundado receio” invocado pelo requerente e da carência de uma outra forma de tutela que permita pô-lo a salvo de lesões graves e dificilmente reparáveis.

Para tal, o juiz terá em conta o interesse do requerente e do requerido, as condições económicas de um e de outro, a conduta anterior e a sua projecção nos comportamentos posteriores; e, não olvidando que, como já referido e se reforça, quando estão em causa prejuízos materiais, o critério deve ser bem mais rigoroso, uma vez que, em regra, tais prejuízos são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva.

Ora, aplicando o que acabámos de dizer ao caso vertente, impõe-se reconhecer que o que foi alegado não consubstancia, com objectividade e distanciamento, lesões graves e irreparáveis.

Não sendo a providência concedida – tendo presente que fique dado como assente, como já se referiu, o requisito da probabilidade séria da existência do direito à entrega/restituição pretendida – a lesão do requerente traduz-se, quando muito, inevitavelmente no dano da privação do uso/gozo da parte do prédio em causa.

Não se contesta, evidentemente, que a privação do uso/gozo de prédios configure uma lesão do direito (de propriedade) do requerente; porém, não representa só por si “lesões graves” – e é isto que se exige (na “economia” dos requisitos da providência em causa).

Para uma lesão poder ser qualificável como grave e dificilmente reparável tem a mesma que ser extraível de comportamentos efectivos e concretos do requerido e não pode resultar apenas da mera privação para o requerente e da consequente utilização pelo requerido.

Vale a pena reflectir no seguinte:

Para as mais graves “usurpações” ao direito de propriedade – ou melhor, à posse causal inerente e também à posse que seja meramente formal – gizou o legislador uma providência tipificada, isto é, a restituição provisória de posse; que, porém, exige que a usurpação/esbulho tenha uma especial “gravidade” e “qualificação” – ser violenta.

Não havendo violência – vedado o uso à restituição provisória de posse – é a própria lei que prevê expressamente o uso do procedimento cautelar comum.

É justamente o nosso caso. [...]

Ora – é o ponto – não supera tal inconsistência o vir dizer-se, nos termos em que é dito, que, a não se decretar a providência “… a mossa será irreversível, nomeadamente se se iniciar nova na parte do prédio do requerente construção ou mesmo se se vedar o acesso ao rés-do-chão esquerdo” – cf. artigo 46.º do requerimento inicial ou; que “o decurso da acção será fatal além de o prédio ter ficado devassado o que pode tornar a lide numa lide meramente platónica” – cf. artigo 47.º do mesmo requerimento.

Do alegado não resulta nenhum dano que não possa ser ressarcido mediante indemnização a atribuir na ação definitiva ou que a reconstituição natural não possa resolver (esta, no que respeita à alegada destruição de muros e “defesas” e emparedamento das portas). [...]

Em conclusão, o que foi alegado é insuficiente para poder consubstanciar uma lesão grave e dificilmente reparável, porém, a insuficiência não decorre do quadro fáctico alegado padecer de insuficiências ou imprecisões na sua exposição, decorrendo, isso sim, de tal quadro fáctico ser por natureza e definição insuficiente.

Enfim, tudo visto e ponderado, os factos alegados não configuram, salvo o devido respeito por contrário entendimento, uma situação de “periculum in mora” que justifique e careça da tutela provisória e urgente conferida pela providência cautelar comum, tal como se considerou na decisão recorrida, a qual, assim, é de manter.

Consequentemente, face ao exposto, improcede o presente recurso."

*3. [Comentário] É com preocupação que se vê espalhar-se na jurisprudência um equívoco sobre a aferição do periculum in mora.

Como a própria expressão indicia, o periculum in mora é o perigo resultante da mora na atribuição de uma tutela imediata ao direito do requerente; o periculum in mora não é o perigo relativo ao eventual não cumprimento da tutela definitiva pelo requerido. Remete-se, quanto ao mais, para o que se disse em Jurisprudência 2021 (135)Jurisprudência 2021 (189).

MTS