"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/05/2022

Jurisprudência 2021 (189)


Providência cautelar;
periculum in mora*


1. O sumário de RE 9/9/2021 (662/21.5T8TMR.E1) é o seguinte:

I – A situação de perigo que releva, para efeitos do preenchimento do requisito do periculum in mora de que depende o decretamento da tutela cautelar, deverá ser atual e iminente.

II – Visando a providência requerida – desobstrução pelos requeridos de todos os obstáculos existentes no caminho/estrada que dá acesso ao seu prédio - evitar que a demora inerente à normal tramitação de ação, destinada a obter o acesso àquele imóvel, venha a impedir o efeito útil da decisão a proferir, não se verifica a atualidade do periculum in mora se os requerentes, tendo tomado conhecimento da situação existente e das limitações daí decorrentes há cerca de 12 anos, se conformaram com estes factos, só agora tendo instaurado o presente procedimento cautelar. (sumário do relator)


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Os requisitos do procedimento cautelar comum são os que decorrem do preceituado no art. 362º, nº 1, do CPC [---], onde se prescreve que “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado” [---].

O nº 1 do art. 368º [---], por sua vez, prescreve que «a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão».

Os requisitos legais do procedimento cautelar comum podem assim resumir-se ao fumus boni juris (probabilidade séria do direito), periculum in mora e a proporcionalidade, embora se discuta se esta (proporcionalidade) é requisito constitutivo da causa de pedir ou antes facto negativo cujos ónus impende sobre o requerido [Cfr., por ex., Rui Pinto, in Questão de Mérito na Tutela Cautelar, p. 653].

Não está em causa no recurso a probabilidade séria da existência do direito, a qual foi, aliás, reconhecida pelo Tribunal a quo, mas apenas o periculum.

A lei exige um fundado receio de que outrem “cause lesão grave e dificilmente reparável”, enquanto manifestação do periculum in mora. O critério para aferir a gravidade da lesão parte da repercussão negativa ou desvantajosa que a situação determina na esfera jurídica do interessado, avaliada objetivamente.

O fundado receio deve ser atual e pressupõe a ameaça do direito, e já não uma lesão consumada, que lhe retiraria o efeito útil cautelar, a menos que seja o indício ou prelúdio de outras violações futuras, caso em que se verifica o “estado de perigo de ingerência” a justificar a função preventiva da tutela cautelar [Rui Pinto, ob. cit., p. 382 e ss.; Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III, 2ª edição, p. 88 e ss.].

O periculum in mora tem de provir de factos que atestem perigos reais e certos, relevando tudo de uma apreciação ponderada regida por critérios de objetividade e de normalidade.

Por outro lado, como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3ª edição, p. 8], «a gravidade e a difícil reparabilidade da lesão receada apontam para um excesso de risco relativamente àquele que é inerente à pendência de qualquer ação; trata-se de um risco que não seria razoável exigir que fosse suportado pelo titular do direito».

Escreveu-se na decisão recorrida:

«(…), os factos provados não se afiguram suficientes para preencher o requisito do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável (periculum in mora), sendo certo que nada é alegado no que respeita à (in)capacidade dos requeridos em ressarcir os prejuízos eventualmente causados ao direito de propriedade do requerente.

É que para se obter “o deferimento de uma providência cautelar não especificada, não basta provar que o requerente goza do direito de propriedade sobre a coisa, é necessário demonstrar que da ofensa do direito resulta um prejuízo irreparável ou dificilmente reparável, e que a situação económica do requerido torna inviável a sua responsabilização pelos danos emergentes do seu comportamento ilícito” (Ac. Rel. Porto, 24/06/99, proc. 9921614, www.dgsi.pt).

Ademais, no caso vertente a situação descrita e indiciada já ocorre há cerca duma década, pelo que se afigura flagrante a inexistência do periculum in mora.

In casu, na acção principal a instaurar pode obter-se a satisfação dos interesses dos requerentes, dado que aquela não está sujeita aos mesmos requisitos que os procedimentos cautelares.»

Subscrevemos, no essencial, este entendimento.

Na verdade, não decorre da factualidade provada qualquer elemento demonstrativo de que a demora inerente à normal pendência da ação a intentar seja suscetível de lesar de forma grave e dificilmente reparável o direito de propriedade dos requerentes sobre o imóvel em causa. Não se encontra indiciariamente provado qualquer facto recente, o qual tenha agravado a situação existente desde há mais de uma década, período durante o qual não foi intentada pelos requerentes qualquer ação tendente a obter a restituição do aludido imóvel.

A situação de perigo que releva, para efeitos do preenchimento do aludido requisito de que depende o decretamento da tutela cautelar, deverá ser, além de atual, iminente, o que não se verifica no presente caso.

No que respeita à iminência do perigo, Marco Carvalho Gonçalves [Providências Cautelares, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, pp. 202-203] distingue dois tipos de situações: «o evento danoso já se verificou, mas os seus efeitos prolongam-se no tempo, agravando a lesão do direito do requerente; o evento danoso ainda não se verificou, mas é previsível que venha a verificar-se mediante um conjunto de indícios que demonstram a iminência da lesão».

Afirma ainda este autor que «a providência cautelar deve ser indeferida, porque injustificada, nos casos em que o requerente se tenha conformado com a situação de perigo que ameaça afetar o seu direito, assumindo uma conduta inerte e passiva perante esse facto», acrescentando que «só assim não sucederá se se tiver verificado alguma superveniência objetiva ou subjetiva que, pela sua natureza ou pelas consequências dela resultantes para a esfera jurídica do titular do direito ameaçado, justifique a adoção urgente de uma providência cautelar» [Ibidem].

No caso em apreço, os requerentes encontram-se impedidos de aceder ao seu prédio rústico há cerca de 12 anos, em virtude da atuação da requerida, estando assim há muito impossibilitados de o usufruírem como proprietários, mas a verdade é que só agora, decorridos todos estes anos, instauraram o presente procedimento cautelar, pelo que não se pode dizer que exista um qualquer elemento superveniente suscetível de alterar a descrita situação [Cfr., neste sentido, o Acórdão desta Relação de 10.09.2020, proc. 1207/20.0T8PTM.E1, in www.dgsi.pt].

Ademais, nada foi alegado ou demonstrado que só agora se tenha justificado a instauração do presente procedimento cautelar, tanto mais que, como resultou provado, os requerentes gostam de efetuar tarefas agrícolas, obtendo deste modo produtos hortícolas para si e para os seus filhos, bem como, ao desempenharem tais tarefas, ocupam de forma saudável o seu tempo.

Mas se assim é, então porque permaneceram em total passividade durantes todos estes anos?

O mesmo se diga quanto à obrigação de limpeza do prédio dos requerentes, que existe desde a entrada em vigor do DL nº 124/2006, de 28 de junho.

Dispõe a este respeito o artigo 21º do referido diploma legal, sob a epígrafe “Incumprimento de medidas preventivas”:

«1 - Os proprietários, os produtores florestais e as entidades que a qualquer título detenham a administração dos terrenos, edificação ou infra-estruturas referidas no presente decreto-lei são obrigados ao desenvolvimento e realização das acções e trabalhos de gestão de combustível nos termos da lei.

2 - Sem prejuízo do disposto em matéria contra-ordenacional, em caso de incumprimento do disposto no artigo 12.º, nos n.os 1, 2, 8, 9 e 11 do artigo 15.º e no artigo 17.º, as entidades fiscalizadoras devem, no prazo máximo de seis dias, comunicar o facto às câmaras municipais, no âmbito de incumprimento do artigo 15.º, e à Direcção-Geral dos Recursos Florestais, no âmbito dos artigos 12.º e 17.º

3 - A câmara municipal ou a Direcção-Geral dos Recursos Florestais, nos termos do disposto no número anterior, notifica, no prazo máximo de 10 dias, os proprietários ou as entidades responsáveis pela realização dos trabalhos, fixando um prazo adequado para o efeito, notifica ainda o proprietário ou as entidades responsáveis dos procedimentos seguintes, nos termos do Código do Procedimento Administrativo, dando do facto conhecimento à Guarda Nacional Republicana.

4 - Decorrido o prazo referido no número anterior sem que se mostrem realizados os trabalhos, a câmara municipal ou a Direcção-Geral dos Recursos Florestais procede à sua execução, sem necessidade de qualquer formalidade, após o que notifica as entidades faltosas responsáveis para procederem, no prazo de 60 dias, ao pagamento dos custos correspondentes.

5 - Decorrido o prazo de 60 dias sem que se tenha verificado o pagamento, a câmara municipal ou a Direcção-Geral dos Recursos Florestais extrai certidão de dívida.»

Ora, não alegaram os requerentes que alguma vez tenham sido notificados para proceder a trabalhos de gestão de combustível previstos naquele diploma legal, pelo que não se vislumbra a “urgência” de proceder agora a tais trabalhos, quando é certo que tudo o que se provou, foi que os requerentes se deslocaram ao Posto Territorial de Ferreira do Zêzere da GNR em 2019, dando conta de que pretendiam proceder à limpeza do seu terreno.

Em suma, no caso em apreço, em que os requerentes, tendo tomado conhecimento da impossibilidade de acederem ao seu prédio há mais de uma década com as limitações ao exercício do seu direito de propriedade daí decorrentes, conformando-se com tal situação, só agora tendo instaurado o presente procedimento cautelar, e inexistindo qualquer elemento superveniente suscetível de alterar a descrita situação, não se encontra demonstrada a atualidade do periculum in mora.

Como tal, não decorrendo da factualidade indiciariamente provada o preenchimento de um dos requisitos de que depende o decretamento da providência cautelar requerida, cumpre concluir pela improcedência da pretensão dos requerentes, como bem se ajuizou na decisão recorrida."


*3. [Comentário] O acórdão decidiu -- bem -- um caso interessante. Aproveita-se, no entanto, para procurar atalhar a uma confusão que se vem instalando.

Segundo o transcrito no acórdão, na decisão de 1.ª instância afirmou-se o seguinte:

"(…), os factos provados não se afiguram suficientes para preencher o requisito do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável (periculum in mora), sendo certo que nada é alegado no que respeita à (in)capacidade dos requeridos em ressarcir os prejuízos eventualmente causados ao direito de propriedade do requerente".

Trata-se de uma confusão. O periculum in mora não é aferido em função da maior ou menor dificuldade de reparação pelo requerido dos danos causados ao requerente; esse perigo é antes aferido em função do dano que o requerido sofre se, de imediato, não for concedida a providência cautelar.

Numa expressão coloquial: num procedimento cautelar deduzido contra um oligarca russo também pode estar preenchido o periculum in mora.

MTS