"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/02/2022

Jurisprudência 2021 (135)


Procedimentos cautelares;
periculum in mora*


1. O sumário de RP 7/6/2021 (296/20.1T8AVR.P1) é o seguinte:

I - O procedimento cautelar comum constitui um meio processual destinado a obter uma decisão conservatória ou antecipatória que permita afastar o receio de que alguém se possa ver prejudicado pela conduta de um terceiro suscetível de causar lesão a um seu direito.

II - Não basta, porém, a invocação de um mero receio, assim como não se mostra suficiente a verificação de uma simples lesão do direito que se pretenda ver acautelado para que, desde logo, possa ser judicialmente desencadeado o procedimento cautelar.

III - Para que tal possa suceder, mostra-se necessário que se esteja perante a probabilidade séria da existência de um direito e que haja um justificado receio de que a conduta de um terceiro seja suscetível de causar uma lesão grave e dificilmente reparável ao titular desse direito.

IV- Assim, apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum as lesões graves e de difícil reparação, ficando arredadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento, ainda que se mostrem de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são afastadas as lesões que, apesar de serem graves, sejam facilmente reparáveis.


2. Na fundamentação do acórdão escreceu-se o seguinte:

"Nas conclusões de recurso insurge-se ainda o apelante contra a decisão recorrida, sustentando que, ao invés do que nela se afirma, não se mostram, in casu, reunidos os pressupostos para ser decretada a providência ao abrigo do art. 362º, em particular a existência do periculum in mora.

Que dizer?

Preceitua o n.º 1 do citado preceito legal que “[s]empre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito pode requerer a providência concretamente adequada a assegurar a efectividade deste”.

Por seu turno, o artigo 368.º prescreve que a providência é decretada quando houver “[p]robabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão” (nº 1), podendo o tribunal, no entanto, recusar a sua decretação “[q]uando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar” (nº 2 do mesmo normativo).

Tendo por base os referidos normativos vem-se generalizadamente [Cfr., por todos, ABRANTES GERALDES, in Temas da Reforma do Processo Civil, vol. III, 3ª edição, Almedina, págs. 97 e seguintes, LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, in Código de Processo Civil Anotado. Vol. II, 3ª edição, Almedina, págs. 5 e seguintes e CARVALHO GONÇALVES, in Providências Cautelares, 2015, Almedina, págs. 168 e seguintes] entendendo que o decretamento de uma providência cautelar não especificada (ou comum) depende da concorrência dos seguintes requisitos: (i) que muito provavelmente exista o direito tido por ameaçado, ou que venha a emergir de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor; (ii) que haja fundado receio de que outrem antes de proferida decisão de mérito, ou porque a acção não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; (iii) que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas nos arts. 393º a 427º; (iv) que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado; (v) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar.

Como se referiu, no caso sub judicio, a divergência recursiva do apelante centra-se primordialmente na inverificação do segundo requisito enunciado, por considerar que a materialidade indiciariamente apurada não justifica um qualquer receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito de propriedade da requerente sobre os dois veículos automóveis cuja entrega foi decretada.

A propósito deste requisito [Que alguns autores consideram constituir a verdadeira causa de pedir cautelar, assumindo natureza de pressuposto material de concessão da providência cautelar – cfr., neste sentido, RITA LYNCE DE FARIA, in A tutela cautelar antecipatória no Processo Civil Português, Universidade Católica Editora, 2016, págs. 132 e seguintes e RUI PINTO, in A questão de mérito na tutela cautelar – A obrigação genérica de não ingerência e os limites da responsabilidade civil, Coimbra Editora, 2009, págs. 589 e seguintes] no procedimento cautelar comum o legislador foi bem mais exigente (e, portanto, mais restritivo) na sua formulação do que, em geral, para os procedimentos cautelares específicos: enquanto que para estes basta que se verifique “dano apreciável”, “justificado receio de perda da garantia patrimonial do crédito” ou “justo receio de extravio ou dissipação de bens”, para aquele não basta uma qualquer lesão, tornando-se mister que se esteja perante uma lesão grave e dificilmente reparável do direito.

O legislador exige, pois, que a lesão seja grave e dificilmente reparável, sendo que a utilização da conjunção copulativa significa que não é apenas a gravidade da lesão previsível que justifica a tutela provisória, do mesmo passo que não basta a irreparabilidade absoluta ou difícil, de forma que apenas merecem a tutela provisória as lesões que sejam simultaneamente graves e irreparáveis ou de difícil reparação. Por isso, como sublinha ABRANTES GERALDES [[Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 3ª ed. revista e ampliada, pág.] 101], ficam afastadas do “círculo de interesses acautelados pelo procedimento comum, ainda que se mostrem irreparáveis ou de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são excluídas as lesões que, apesar de serem graves, sejam facilmente reparáveis”.

A lei optou, assim, por permitir apenas a utilização do procedimento cautelar, expedito e meramente indiciário - em que se não exige uma comprovação segura dos fundamentos da providência requerida - nos casos em que a lesão cujo perigo de verificação fundamente a providência revista natureza grave e de difícil reparação, sendo que nos demais casos (isto é, de receio de lesão não grave ou que não seja de difícil reparação) o legislador, de acordo com a ponderação de interesses que entendeu fazer, considerou não se justificar a utilização de um expediente sumário e escassamente apurado como é o procedimento cautelar não especificado. Por conseguinte, havendo justo receio de lesão de direito, o titular do mesmo terá de recorrer ao meio processual normal - acção -, com a necessidade de uma demorada, segura e amadurecida indagação dos fundamentos da pretensão, para a adopção da providência reparadora de modo definitivo, no fim do processamento normal da acção, se a lesão em causa não revestir a natureza grave e de difícil reparação; caso a lesão se possa qualificar como grave e de difícil reparação, poderá, então e só então, lançar mão do expedito, sumário e urgente procedimento cautelar comum.

Deste modo, a lesão receada pelo requerente, para ser relevante (no sentido de legitimar a via cautelar), tem de ser grave, gravidade essa que se mede em função da dimensão dos danos que possa provocar, ou seja, apenas a lesão que possa vir a desencadear danos de montante considerável deverá ser considerada grave.

Já no que especialmente se refere à irreparabilidade ou difícil reparação da lesão, importa clarificar o que pretendeu o legislador com tal exigência.

Apelando aos contributos que podem ser colhidos na doutrina e na jurisprudência [Cfr., inter alia, na doutrina, CARVALHO GONÇALVES, ob. citada, pág. 205, ABRANTES GERALDES, ob. citada, pág. 102, RITA LYNCE DE FARIA, ob. citada, págs. 145 e seguintes e ABRANTES GERALDES et al., in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 439; na jurisprudência, acórdãos desta Relação de 22.11.2011 (processo nº 1408/11.1TJPRT.P1) e de 11.04.2019 (processo nº 257/18.0T8AMR.P1), acórdão da Relação de Lisboa de 30.01.2019 (processo nº 7840/17.0T8CBR-B.L1-4), acórdão da Relação de Coimbra de 28.04.2010 (processo nº 319/10.2BPBL.C1) e acórdão da Relação de Guimarães de 10.10.2013 (processo nº 246/12.9TBBCL-A.G2), acessíveis em www.dgsi.pt.], vem-se entendendo que para a densificação do aludido conceito indeterminado se deverá recorrer a dois critérios: um critério subjectivo e um critério objectivo.

Um critério subjectivo, segundo o qual se deverá atender às possibilidades económicas do requerido para vir a suportar a reparação do direito do requerente. Desta forma, atendendo às possibilidades económicas concretas do requerido, a lesão será dificilmente reparável nos casos em que o requerido se encontre em situação económica instável e precária, sendo previsível que a lesão causada ao requerente não irá ser reparada.

Por sua vez, um critério objectivo que terá em conta o tipo de lesão, a natureza do direito em causa, o tipo de sanção prevista pela ordem jurídica e as formas admissíveis de reparação da lesão.

Perante o exposto o julgador deverá ter sempre presente as várias formas existentes para a reparação da lesão: a reconstituição natural, que se traduz na obrigação de reconstituir a situação anterior à lesão (ou seja, o dever de repor as coisas na situação em que estariam caso o evento lesivo não se tivesse produzido) e a indemnização em dinheiro que tem carácter subsidiário, tendo lugar apenas nas situações em que a reconstituição natural não seja viável, quando não repare integralmente o dano ou quando seja excessivamente onerosa para o devedor (cfr. art. 566º do Cód. Civil). A indemnização colocará o lesado numa situação equivalente à situação em que se encontrava antes de se ter produzido o dano ou poderá apenas funcionar como reparação.

Ora, tendo em conta este critério objectivo, terá de se analisar a situação em concreto e as hipóteses existentes para posterior reparação da lesão. Se a lesão for passível de reconstituição natural, isto é, se for possível colocar o requerente/lesado na situação em que se encontrava antes da lesão, a medida cautelar requerida não deverá ser concedida já que nestas situações a lesão não poderá ser considerada dificilmente reparável.

Pelo contrário, nos casos em que não seja possível a reconstituição natural e a indemnização, subsidiariamente, também não seja capaz de compensar totalmente o lesado pelos danos sofridos, deverá então ser concedida a providência cautelar requerida, na medida em que tais situações se enquadram no conceito de lesões dificilmente reparáveis.

Por fim, quando esteja em causa uma lesão que pode ser ressarcida mediante uma indemnização por equivalente (ou seja, lesões susceptíveis de compensação pecuniária equivalente ao valor do dano) tem-se colocado a questão de saber se tais lesões se deverão incluir ou não no conceito de dificilmente reparáveis, sendo que a posição majoritariamente acolhida vem sufragando o entendimento de que se essas lesões são reparáveis mediante uma compensação pecuniária, poderão ser ressarcidas posteriormente, após a ocorrência da lesão, não constituindo, assim, lesões que sejam de difícil reparação.

Postas tais considerações, revertendo ao caso sub judicio verifica-se que o decisor de 1ª instância afirmou a ocorrência do pressuposto em análise em virtude de «estarmos perante veículos de matrícula espanhola que apenas podem circular no país de origem ou por quem tenha legalmente autorização para o conduzir em Portugal, factos que estão fora do domínio de facto da proprietária que fica sujeita a todas as consequências legais que o incumprimento desses deveres acarreta. A ausência do domínio de facto sobre bens móveis, como são os veículos, sendo facto notório que, pela sua natureza móvel, podem facilmente ser deslocados de um local para o outro, justifica igualmente o receio de serem dissipados ou mal utilizados.

Fundado é ainda o receio da requerente em ser responsabilizada, enquanto proprietária, por qualquer infração que venha a ser praticada pelo requerido ou terceiros a quem o mesmo permita o uso dos veículos, receio que já esta consumado em relação ao Ferrari por não ter a inspeção periódica realizada. O justo receio resulta também das várias interpelações efectuadas ao requerido para voluntariamente proceder à entrega dos veículos, sem resposta.»

Portanto, no ato decisório sob censura a afirmação do pressuposto em crise assenta fundamentalmente num (alegado) receio por parte da requerente de que o requerido dissipe ou faça uma má utilização dos ajuizados veículos.

Ora, como a este respeito vem sendo sustentado [Cfr., inter alia, ABRANTES GERALDES, ob. citada, págs. 108 e seguinte e LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, ob. citada, pág. 8], o preenchimento do mencionado requisito há-de aferir-se não através de um juízo de mera probabilidade (como o da verificação da aparência do direito) mas sim através de um juízo de realidade ou de certeza que tem que provir de factos que atestem perigos reais e certos, relevando tudo de uma apreciação ponderada, regida por critérios de objectividade e de normalidade, não bastando simples dúvidas, conjecturas ou meros receios subjectivos.

A esta luz, ainda que se condescenda que o prejuízo decorrente do incumprimento da obrigação da entrega dos ajuizados veículos automóveis por banda do apelante/requerido possa ser rotulado de grave, já será, contudo, discutível que o substrato factual indiciariamente apurado permita afirmar que esse prejuízo seja de difícil reparação, pois nada se concretizou sobre qualquer impossibilidade ou especial dificuldade de os prejuízos que a aludida privação possa ocasionar à requerente não possam vir a ser ressarcidos por aquele.

Ademais, verifica-se estarem em causa interesses meramente patrimoniais, indemnizáveis nos termos dos arts. 564º e 566º, do Código Civil. Só assim não seria se, porventura, a situação patrimonial do requerido o impossibilitasse de pagar a correspondente indemnização. Nesse caso a requerente deveria ter articulado factos concretos evidenciadores da precariedade da situação económico-financeira do requerido/apelante.

Na ausência de alegação e demonstração de quaisquer factos concretos que permitam ajuizar dessa situação económico-financeira, o tribunal não pode presumir que o requerido não disponha de meios que lhe permitam suportar o pagamento da indemnização devida à requerente pelos prejuízos de índole exclusivamente patrimonial decorrentes da eventual perda total ou parcial dos veículos, bem como da sua depreciação, desvalorização ou desgaste ou, inclusive, das eventuais contra-ordenações que possam ser perpetradas [...]. Portanto, a falta da atempada entrega dessas viaturas não privará, só por si, a requerente de receber a correspondente compensação monetária, de modo que, salvo melhor opinião, haveria que alegar e demonstrar factos que apontassem razoavelmente para a ocorrência de um risco superior ao normal, o que, nos sobreditos termos, implicaria a prova (ainda que perfunctória) de uma situação económica deficitária do requerido que tornasse impossível ou muito difícil o ressarcimento dos prejuízos que a demora nessa restituição ocasione ou tenha ocasionado à requerente.

Certo é que o tecido fáctico apurado não permite concluir, com a necessária objectividade e consistência, pela ocorrência de uma situação passível de constituir fundado receio de lesão grave e de difícil reparação do direito da requerente, sendo certo que, como anteriormente se enfatizou, estando, in casu, essencialmente em causa lesão suscetível de reintegração in natura ou de compensação por sucedâneo não pode a mesma ser considerada dificilmente reparável.

Tendo presente o descrito enquadramento, impõe-se, pois, a revogação da decisão recorrida, dada a falta de verificação do requisito do periculum in mora que, como se assinalou, constitui pressuposto material de concessão da providência cautelar.


*3. [Comentário] O acórdão da RP merece uma nota.

O art. 2.º, n.º 2, CPC -- um preceito que frequentemente é esquecido no contexto dos procedimentos cautelares -- determina que estes procedimentos são "necessários para acautelar o efeito útil da acção". Quer dizer: esses procedimentos destinam-se a assegurar que o que venha a ser decido definitivamente na acção seja útil -- ou melhor, ainda seja útil. É nisto que consiste o requisito do periculum in mora dos procedimentos cautelares.

Disto decorre que a "lesão grave e dificilmente reparável" que se refere no art. 362.º, n.º 1, CPC como pressuposto dos procedimentos cautelares comuns não é a lesão que o requerente pode sofrer no momento do proferimento da decisão definitiva, mas antes a lesão que o requerente vai sofrer no momento do requerimento da providência cautelar se esta não for decretada. É precisamente isto que justifica uma tutela que, apesar de provisória, é actual, isto é, produz efeitos, não para o futuro, mas para o presente.

Um exemplo simples demostra que assim é. Se for requerida uma providência cautelar destinada à realização de uma obra urgente num prédio, a lesão grave que justifica o periculum in mora não é aquela que o requerente pode vir a sofrer no momento da decisão da causa principal, mas aquela que esse mesmo requerente vai sofrer se a providência não for decretada.

É por isso que não é possível afirmar que "estando, in casu, essencialmente em causa uma lesão suscetível de reintegração in natura ou de compensação por sucedâneo não pode a mesma ser considerada dificilmente reparável". Note-se que, a seguir-se esta orientação quanto ao periculum in mora, nem sequer poderiam existir providências cautelares de carácter antecipatório, dado que estas tomam necessariamente como referência temporal, não o momento da decisão definitiva na acção principal, mas o momento do seu requerimento.

MTS