08/05/2024

Jurisprudência 2023 (165)


Acção de reivindição;
causa de pedir; pedido


1. O sumário de RC 26/9/2023 (244/22.4T8SCD.C1) é o seguinte:

I. Se o A. descreve na P.I. , que segundo ele, os RR. terão praticado, com os quais violaram a sua propriedade, ocupando, tal parcela indevidamente, arrancando, as pedras delimitadoras do seu prédio com o do A. e a demove-las do local, fazendo-as desaparecer, começando a plantar bacelo além do limite do seu prédio, dentro do prédio do A., arrancaram várias videiras da sua estacada, para retirar sinais de demarcação dos limites dos prédios, começaram a arrastar as terras que suportavam as pedras, fazendo estender os limites dos seus prédios, colocando piais de cimento nos prédios do A., não está em causa um pedido de demarcação do terreno, ainda que fale em demarcar, mas sim para reivindicar tal parcela, que segundo ele, foi ilegitimamente ocupada pelos RR.

II. Pelo que, não se verifica a ineptidão da petição inicial, por cumulação indevida de pedidos, nem por contradição entre o pedido e a causa de pedir.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] a questão a decidir - consiste em saber se a petição inicial é ou não inepta. [...]

Dito isto, passemos analisar a questão em apreço.

- Saber se a petição é ou não inepta.

Segundo o recorrente, a mesma não é inepta, desde logo, por o Tribunal não poder considerar que houve cumulação de causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis, na verdade, refere não há na petição cumulação de pedidos nem qualquer confusão na causa de pedir, o pedido formulado está de acordo com a causa de pedir e a factualidade invocada nunca e em tempo algum colocou dúvidas ou contradições quanto à causa de pedir e ao pedido.

Mais refere, que apresentou uma petição que preenche todos os requisitos legais e formais para prosseguir como ação de reivindicação e nunca apresentou qualquer factualidade ou pedido que pudesse confundir-se com a causa de pedir de uma ação de demarcação.

Oposição oposta advogou a decisão recorrida.

Vejamos.

Antes demais [sic], iremos dizer algo a respeito da figura em causa – Ineptidão da P.I.

Como é sabido, é a causa de pedir que serve de fundamento à ação, isto é, o facto jurídico concreto em que se baseia a pretensão deduzida em juízo pelo autor (artigo 581.º, n.º 4, do Código de Processo Civil). 

E como é consabido, o processo é de todo nulo sempre que a petição inicial se considere inepta, v.g. quando haja falta ou ininteligibilidade, quer do pedido, quer da causa de pedir ou, ainda, quando o primeiro esteja em contradição com o segundo – art.º 186º do CPC. [...]

Ao delinear o regime da ineptidão da petição inicial a intenção e finalidade da lei foi “impedir o prosseguimento duma ação viciada por falta ou contradição interna da matéria objeto do processo, que mostra desde logo não ser possível um ato (unitário) de julgamento, «judicium»” ( cfr. Castro Mendes, Direito Processual Civil, III, pag. 47), ou dito de outro modo, com “a figura processual da ineptidão da petição inicial visa-se, em primeiro lugar, evitar que o juiz seja colocado na impossibilidade de julgar concretamente a causa, decidindo sobre o mérito, em face da inexistência do pedido ou da causa de pedir, ou do pedido e da causa de pedir que se não encontrem deduzidos em termos inteligíveis, visto só dentro dessas balizas se mover o exercício da atividade jurisdicional declaratória do direito”, sendo certo que além desse propósito de circunscrever e definir os poderes do juiz quanto à atividade decisória, a figura da ineptidão propõe-se “ainda impedir se faça um julgamento sem que o réu esteja em condições de se defender capazmente, para o que carece de conhecer o fundamento do pedido contra ele deduzido” (cfr. A. de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 1981, Vol. II, pp. 219 e 220).

Pode afirmar-se, pois, que com o instituto da ineptidão da petição inicial se visa obstar ao prosseguimento de ações onde esteja logo à partida coartada a possibilidade de o juiz proceder a um julgamento sobre o fundo da causa (julgamento de facto e de direito) por a peça que introduz o feito em juízo padecer de qualquer dos vícios enumerados no n.º 2 do art.º 186.º do C.P.C. – seja porque impede ou dificulta em termos irrazoáveis e desproporcionados a defesa do réu, seja porque não carreia para os autos os factos que constituem o objeto do processo e nos quais o juiz se pode basear para decidir o litígio (art.º 5, n.º 1 a 3 do C.P.C.). [...]

Dito isto, voltemos ao caso em apreço.

Operando à leitura do pedido formulado pelo A., verificamos que são várias as pretensões, desde logo, o reconhecimento de que ele e a requerida são donos e legítimos possuidores dos prédios identificados no artigo 1.º da PI, sendo que os limite dos prédios coincide com a localização das pedras antigas, cepas de videira velhas e piais em pedra antigos, melhor indicados no art.º 15 da PI.

Os RR. insurgem-se, contra tal, por entenderem, estar-se perante uma ineptidão da Petição Inicial, porquanto a causa de pedir assenta em ação de demarcação.

Ainda que a questão, colocada pelo recorrente, não consista em saber se é ou não possível haver cumulação de pedidos na ação de demarcação com a ação de reivindicação, não deixaremos, de dizer, algo a respeito, até por a decisão parecer enveredar, por esse caminho, para a prolação da mesma.

De forma sintética, pode dizer-se que enquanto a ação de reivindicação pressupõe a definição precisa da coisa imóvel reivindicada, nomeadamente dos seus limites [---], operando a restituição dentro desses limites, a ação de demarcação implica necessariamente uma situação de incerteza ou dúvida quanto a uma ou várias estremas do imóvel a demarcar, destinando-se precisamente à definição precisa das linhas que permitem a determinação dos limites dos prédios em que se regista essa incerteza.

Digamos, desde já, que tem sido jurisprudência constante, ao menos à luz da jurisprudência publicada, a afirmação de que existe incompatibilidade substancial de pedidos no caso de cumulação real de pedido de reivindicação e de demarcação (cfr. a propósito sem preocupações exaustivas, por ordem cronológica, os seguintes acórdãos, todos acessíveis na base de dados da DGSI: acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de janeiro de 2003, processo 02A1029; acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09 de outubro de 2008, processo 1192/08-3; acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 31 de outubro de 2013, processo 98/11.6TBNIS.E1; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05 de abril de 2018, processo 75/15.8T8TMC.G1; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25 de janeiro de 2021, relatado pelo Sr. Desembargador segundo-adjunto nestes autos, processo 4029/18.4T8STS.P1; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25 de março de 2021, processo 768/21.0T8BRG-B.G1; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de julho de 2021, processo 500/20.6T8ALB.P1 e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de fevereiro de 2022, processo 768/21.0T8CVL.C1.). [...]

Independentemente da posição advogada sobre este ponto, a questão que temos entre mãos não passa por este ponto.

Como referimos in supra [sic], temos para nós que a questão, colocada no presente recurso consiste em saber se há contradição entre o pedido e a causa de pedir, referindo o recorrente, que tal não se verifica, desde logo, por afirmar, que o pedido formulado está de acordo com a causa de pedir e a factualidade invocada nunca e em tempo algum colocou dúvidas ou contradições quanto à causa de pedir e ao pedido.

Opinião oposta têm os recorridos, tanto assim, que na contestação pugnam pela ineptidão da P.I., por entenderem que o pedido está em contradição com a causa de pedir, pois que o pedido assenta a sua causa de pedir na demarcação dos prédios e, depois, o pedido visa o reconhecimento do direito de propriedade,

Vejamos.

Antes demais [sic] cabe referir, que também nós não vislumbramos que o A. tenha cumulado o pedido de reivindicação com o demarcação.

Dito isto, passemos ao caso em apreço.

Operando à leitura da P.I. podemos constatar, vários “setores”, a saber.

Do art.º 1 ao 11, factos relativos ao terreno propriedade do A., agora recorrente.

Do art.º 12 a 14, factos relativos ao terreno propriedade dos RR.

Dos art.ºs 15 a 18 delimitação que tinham os terrenos, segundo o A.

Dos art.ºs 19 a 48 factos praticados pelo R., que segundo o ponto de vista do A. invadiram a sua propriedade e por consequência alteraram a marcação que os terrenos* tinham, como refere nos art.ºs 19, a 23 e 31 que aqui se transcrevem

19. Acontece, porém, que desde há 3 anos para cá os Réus começaram a arrancar as pedras delimitadoras do seu prédio com o do A. e a demove-las do local, fazendo-as desaparecer,

20. Começaram a plantar bacelo além do limite do seu prédio, dentro do prédio do A.,

21. Arrancaram várias videiras da sua estacada, para retirar sinais de demarcação dos limites dos prédios,

22. Começaram a arrastar as terras que suportavam as pedras, fazendo estender os limites dos seus prédios e

23. Mais grave ainda, colocaram piais de cimento nos prédios do A., muito além do limite demarcador dos mesmos,

31. Tentando estender o limite do seu prédio com a colocação daqueles piais em cimento chumbados no pavimento e tentando apoderar-se da propriedade do A e da requerida.

Quanto a nós, se, numa primeira leitura, poderíamos pensar que a causa de pedir, assentaria em demarcar os prédios em causa, operando a uma leitura mais atenta, afigura-se-nos, que efetivamente assim não é.

Na verdade, o que o A. descreve na P.I. são factos, que segundo ele, os RR. terão praticado, com os quais violaram a sua propriedade, ocupando, tal parcela indevidamente, arrancando, as pedras delimitadoras do seu prédio com o do A. e a demove-las do local, fazendo-as desaparecer, começando a plantar bacelo além do limite do seu prédio, dentro do prédio do A., arrancaram várias videiras da sua estacada, para retirar sinais de demarcação dos limites dos prédios, começaram a arrastar as terras que suportavam as pedras, fazendo estender os limites dos seus prédios, colocando piais de cimento nos prédios do A.

Ou seja, descreve tais factos, não para pedir a demarcação do terreno, ainda que fale em demarcar, mas sim para reivindicar tal parcela, que segundo ele, foi ilegitimamente ocupada pelos RR.

Assim, pelo exposto, temos para nós, não estar a P.I. ferida de ineptidão, procedendo a pretensão do recorrente."


*3.
[Comentário] Neste Blog tem-se defendido a orientação de que não há nenhuma incompatibilidade substantiva entre os pedidos de reivindicação e de demarcação (por exemplo, aquiaqui).

MTS